ESTE ANO VAI?

PL que criminaliza racismo policial está parado na Câmara

Autor do texto, senador Paulo Paim cobra votação; relatora vê projeto como prioridade em 2024

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Jovens negros são os principais alvos da violência policial no estado de São Paulo, segundo levantamento da Rede de Observatórios - Tomaz Silva/Agência Brasil

A proposta que criminaliza ações policiais baseadas em racismo e outros tipos de discriminação está parada e sem previsão de votação na Câmara dos Deputados, para onde foi enviada desde dezembro de 2020, após receber aval do Senado.

O texto proíbe que agentes públicos ou profissionais da área de segurança privada ajam com base em “preconceito de qualquer natureza, notadamente de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional, gênero ou orientação sexual”.

O projeto voltou à tona esta semana, depois que um motoboy negro foi detido pela Polícia Militar (PM) em Porto Alegre (RS) após pedir ajuda por ter sido ferido à faca por um homem branco. O caso, que ocorreu no sábado (17), despertou uma série de críticas e reações, inclusive por parte de autoridades, como é o caso do ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida.

A medida que enquadra esse tipo de postura policial tramita como Projeto de Lei (PL) 5231/2020 e, no começo de 2021, foi alvo de um despacho do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), indicando que o texto precisaria passar por quatro colegiados. Eram eles: Comissões de Defesa do Consumidor (CDC), de Direitos Humanos e Minoria (CDHM), de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado (CSPCCO) e ainda a de Constituição & Justiça (CCJ). Em um segundo despacho ocorrido cerca de um mês depois, o pepista revisou a decisão anterior e indicou que somente os três últimos colegiados deveriam apreciar o texto, o que fez com que a CDC saísse do percurso da matéria.

Na sequência, depois de avaliação por parte das três comissões, o PL precisará ainda ser avaliado pelo plenário para que possa ser definitivamente analisado e eventualmente aprovado no Legislativo. Se por acaso a proposta receber aval final na Câmara com alterações em relação ao conteúdo aprovado pelos senadores, precisará ainda retornar ao Senado para nova análise. 

A lembrança em torno do atual status do projeto veio à tona no último domingo (18), quando o senador Paulo Paim (PT-RS) fez uma cobrança pública pela análise do texto. Autor do PL, o parlamentar é também presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH) do Senado e se manifestou sobre o assunto pelo “X”, ex-Twitter. “Volto a insistir: a Câmara não pode se omitir. É urgente a aprovação do projeto que trata da abordagem policial, já aprovado pelo Senado. Chega de abordagens truculentas, racistas, homofóbicas, discriminatórias e preconceituosas, veemente ataque aos direitos humanos e à vida”, apelou. 

 

 

 

Dois dias antes o petista, em uma outra postagem, havia destacado o combate ao racismo como ponto importante para a construção da democracia. Na noite de segunda (19), desta vez em entrevista à RedeTV, o senador ressaltou que a aprovação do PL seria importante também porque o projeto é “educativo”, pois prevê que cursos de capacitação de agentes de segurança pública e privada incluam em seus módulos conteúdos de direitos humanos, combate ao racismo e a outras formas de discriminação.  

Sociedade civil

O apelo de Paim se soma ao de vozes da sociedade civil organizada. O próprio conteúdo do PL 5231/2020 partiu de sugestão legislativa encaminhada ao Congresso Nacional por parte da Associação Franciscana de Defesa de Direitos e Formação Popular, mantenedora da Uneafro Brasil. O texto recebeu o apoio de 117 organizações do movimento negro de vários pontos do país, todas elas integrantes da Coalizão Negra por Direitos, e ainda de 31 outras entidades parceiras. Assim, é uma das pautas consideradas prioritárias para o movimento negro, que vê com preocupação o avanço de casos de violência e racismo policial sobre a população negra.  

“Tirar esse projeto da gaveta é uma resposta respeitosa à sociedade brasileira. É o que a gente exige do Congresso, da Câmara. Exigimos que esse PL saia da gaveta, seja debatido e que seja aprovada uma legislação que dê freio e estabeleça controle por parte da sociedade civil à atuação das polícias. A gente não pode ter uma polícia que continue atuando dessa maneira”, defende Douglas Belchior, uma das lideranças da Uneafro.   


Protesto popular em defesa da dignidade da população negra / Miguel SCHINCARIOL / AFP

Trâmite

Curiosamente, no despacho dado por Lira em 2021, o presidente indica que o PL deve tramitar em “regime de prioridade”. Em seu Artigo 151, o regimento interno da Câmara prevê essa modalidade para alguns tipos de propostas legislativas, mas sem dispensar formalidades regimentais – conforme ocorre na tramitação de urgência, por exemplo – e ainda sem fixar prazos específicos de análise. Tecnicamente, a tramitação de prioridade é um regime intermediário entre o percurso comum e o de urgência.

Uma resolução de 1994 aponta que as comissões permanentes devem avaliar projetos prioritários em dez sessões, mas, na prática legislativa, no entanto, essa especificação não é garantia de celeridade aos textos, que costumam ganhar maior velocidade na Casa quando são tratados como “urgência urgentíssima”.  No caso do PL 5231, a relatora da proposta, deputada Reginete Bispo (PT-RS), aponta dificuldades políticas colocadas pela ala bolsonarista para que o texto avance na CDHM. 

“É um projeto fundamental na pauta da segurança pública, mas, infelizmente, teve dificuldade de tramitar por conta das obstruções impostas pela bancada da bala, sobretudo pelo PL. Tenho absoluto acordo com o apelo do senador Paulo Paim no Twitter. Não podemos mais conviver com naturalidade com cenas como essas que a gente tem visto Brasil afora.” 

Na ficha de tramitação do projeto na Câmara, o sistema indica que, em setembro, o PL recebeu parecer favorável da deputada. Ainda segundo os registros oficiais da Casa, o texto foi colocado na previsão de votação da CDHM no dia 4 de outubro do ano passado, mas acabou sendo retirado de pauta por “ausência da relatora”. Questionada sobre o assunto, a deputada argumenta que estaria em missão à Rússia na data para participar de encontro que teria reunido parlamentares da América Latina, do Caribe e do país asiático.


Ficha de tramitação de PL 5231/20 registra ausência de relatora como motivo para retirada da proposta de pauta da votação no dia 04/10/2023 / Site Câmara dos Deputados

“Eu estava em Moscou. De qualquer sorte, isso [minha presença] não era garantia de que o projeto passaria porque esse é um dos PLs que a gente sabe que têm sido alvo de grande obstrução. A Comissão de Direitos Humanos foi, em 2023, palco de ação do bolsonarismo, do fundamentalismo religioso atacando as pautas de segurança pública e obstruindo outras pautas, como as que tratavam de direitos das mulheres. Foi um ano muito difícil na comissão”, acrescenta a petista. Ela afirma que pretende levar o PL adiante este ano e que irá defender que a proposta seja vista como “prioridade”.

A tendência é que a proposta continue enfrentando o antagonismo da ala mais conservadora, que materializou seu posicionamento em um voto em separado apresentado em outubro pelo deputado Junio Amaral (PL-MG). O parlamentar é policial militar reformado e integra a bancada da bala, formalmente chamada de “Frente Parlamentar da Segurança Pública”, grupo com mais de 250 deputados na Câmara. Em seu parecer, ele se manifesta contrariamente à aprovação do PL 5231 sob a alegação de que os casos de violência policial seriam exceção no país e de que os tipos de discriminação listados no projeto já são tratados na legislação brasileira.  

Racismo estrutural

A pesquisadora Ana Cláudia Farranha Santana, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), esteve entre os especialistas que compuseram, em 2021, uma comissão de juristas criada pela Câmara para analisar e propor estratégias que pudessem qualificar a legislação de combate ao racismo no país. Ao comentar a situação do PL 5231/2020 a pedido da reportagem, ela observa que não é possível dissociar a lentidão no trâmite do PL do debate sobre o racismo estrutural no Brasil.   

“Essa é a primeira coisa que a gente tem que falar. Quando a gente pensa que um projeto desse, que tem tantas contribuições a dar, está parado, há aí uma demonstração de que é algo que não está no cerne das reocupações. E ele foi aprovado no Senado, mas isso não significa necessariamente que vá andar na Câmara. Tem uma certa paralisia que não é algo novo e que pede saídas. Diante disso, é preciso que os deputados façam alguma coisa, que sejam pressionados, porque estamos falando de uma proposta que envolve discriminação, envolve as pessoas, o exercício da cidadania.”  

A jurista acrescenta que a demora em se analisar o projeto é algo intimamente ligado à configuração conservadora do Legislativo atual. “A velocidade e a agenda do parlamento têm a cara da própria composição dele. Os deputados representam um povo, que pode ser que não seja o mesmo que está interessado no PL, mas eles representam. Essa representação é recheada de símbolos, signos e interesses. Penso que essa pauta pode ser um ponto importante da atuação da bancada negra em 2024, já que no final do ano passado eles ganharam um assento com direito a voto no Colégio de Líderes da Câmara.”

Edição: Rodrigo Durão Coelho