Coluna

O Supremo e a cocaína

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"Depois de adulterada e “anabolizada”, a cocaína era embalada em potes de Creatina Powderest Turbo" - Dorivan Marinho/SCO/STF
Cabeça de Ovo é interrogado, mas prefere o silêncio obsequioso

Reginaldo Melhado*

 

Cena inicial

O céu ainda se levanta sonolento, avermelhando nuvens brancas no firmamento, quando a Polícia Federal estoura o laboratório de refino de cocaína em um condomínio de luxo de Curitiba e prende o narcotraficante Luciano Huang. É o auge da Operação “Laborem exercens”, longa investigação da intelligentsia das forças de segurança do Paraná, cumprindo mandado judicial que resulta na apreensão de mais de duas toneladas de cocaína, equipamentos de laboratório, carros de luxo e motocicletas esportivas, além de milhares de unidades de ternos de cor verde-periquito e gravatas amarelas contrabandeados do Paraguai. Huang, conhecido como Cabeça de Ovo, não resiste à prisão.

Participam da Operação “Laborem Exercens” dezenas de policiais federais e procuradores da República, com apoio de promotores de Justiça do Gaeco e de helicópteros e blindados da Polícia Militar especializados no combate a professores grevistas. A impressionante mobilização bélica causa suspiros de volúpia no grupo de patriotas ainda acampado na portaria do requintado Condomínio Vivendas da Barra Pesada, imaginando que a “intervenção” finalmente começava. Caminhões fazem o traslado da droga, equipamentos e veículos apreendidos. O material ainda será periciado e avaliado, mas o delegado Ugo Fioravanti, coordenador da operação, estima em “dezenas de milhões de bidens o valor do açúcar e da muamba”. O quilo da droga é comprado na Bolívia por cem dólares e vendido na Europa por cinco mil euros, explica Fioravanti.

O laboratório é equipado com prensas industriais, estufas de temperatura extrema, embalagens falsas de creatina e sistemas controlados por inteligência artificial de sintetização farmacodinâmica, entre outros instrumentos próprios para o refino da droga. Além de cocaína, os policiais apreendem diversas substâncias químicas usadas no incremento da mais-valia gerada pela pasta da droga, como cafeína, analgésicos, tetracaína, benzina, soda cáustica, éter, solução de baterias de automóveis BMW e até sildenafil de uso restrito às alta patentes das forças armadas. 

Depois de adulterada e “anabolizada”, a cocaína era embalada em potes de Creatina Powderest Turbo, marca badalada conhecida no mercado de suplementos alimentares por uma das empresas do grupo Huang. A creatina do fabricante é conhecida pela textura fina e coloração branca e límpida, muito semelhante à cocaína, e pela Estátua da Liberdade no seu rótulo frondoso. São apreendidos quatro mil potes da droga com a marca Powderest Turbo, prontas para a distribuição feita por outra empresa do grupo Huang, a Bozo Deliveries.

Cena intermediária

Concluído rapidamente, o inquérito é logo remetido à Justiça pelo delegado Ugo Fioravanti. O juiz Gueropardo Appion, da 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba, determina a realização de exame pericial e avaliação da droga e demais substâncias encontradas no laboratório, assim como dos equipamentos do laboratório de refino da cocaína e dos veículos apreendidos. Durante o processo criminal, são ouvidas 127 testemunhas, inclusive vários dos patriotas acampados no local, bem como pejotizados e MEI’s que trabalhavam no local sem ter consciência da atividade ilícita do narcotraficante.

O laudo pericial identifica pasta-base de cocaína mesclada com muito sildenafil, além de cafeína, analgésicos, tetracaína e benzina, já no interior das embalagens de Creatina Powderest Turbo. O perito descobre também que a imagem da Estátua da Liberdade é contrafação grosseira.

Cabeça de Ovo é interrogado, mas prefere o silêncio obsequioso.

Depois de dois anos de idas e vindas na instrução criminal mais volumosa da Justiça Federal, o juiz Gueropardo Appions dá a sentença condenando Luciano Huang, vulgo Cabeça de Ovo, à pena de 15 anos de prisão, em regime fechado, sem direito a creatina. Na sentença, Appion faz referência minudente à prova pericial, aos depoimentos testemunhais e ao conjunto dos fatos, mostrando que o réu importou a droga, transportou-a, vendeu-a e distribuiu-a por meio da sofisticada rede de empresas da organização criminosa, sendo proprietário de maquinários, aparelhos e instrumentos destinados à preparação, produção e transformação da cocaína. Dos olhos de Cabeça de Ovo exsurgem áscuas com promessa de vingança, ao ouvir a sentença.

Os advogados de Huang recorrem, mas o Tribunal Regional Federal da 4º Legião confirma a decisão condenatória. Em seguida, a defesa faz o processo chegar ao Superior Tribunal de Justiça Divina, excelsa corte que igualmente mantém o decreto condenatório de Cabeça de Ovo. O relator no STJ, Ministro Pôncio Luís Pilatos, lava suas mãos e não conhece do recurso, propondo conciliação às partes (rejeitada pela turma). O caminho até essa fase final do processo é árido, permeado de chicanas, mas a via-crúcis procedimental finalmente parece chegar ao fim.

Parece. O chefe da equipe da defesa de Cabeça de Ovo é o advogado Antônio Carlos Jobino, o Kakoyo, conhecido no universo paralelo do garantismo penal por sua vivacidade intelectual e sua cabeleira indômita. Kakoyo “subtrai” uma carta da manga de seu terno bem cortado: a reclamação constitucional ao Supremo Tribunal Federal, para “garantia da autoridade divina das decisões da Corte”.

A uma multidão de atônitos jornalistas apinhados no plenário do Excelsibilíssimo, o notável causídico explica ter concedido incluir Cabeça de Ovo em sua clientela seleta por sua fé no sagrado direito à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal, corolários do direito fundamental ao uso da creatina. 

O voto do relator

Começa o julgamento da reclamação no Supremo. Kokayo, que já surpreendera o mundo cantando ao lado do Rei Roberto, um de seus ilustres clientes, sobe à tribuna da Corte Supremíssima e canta Eric Clapton: “If you wanna get down, down on the ground, Cocaine. She don't lie. She don't lie. She don't lie. Cocaine”. Quebrando o protocolo, a audiência circunspecta não contém o aplauso entusiasmado.

Relator da reclamação, o ministro Harry Monaguillo é o primeiro a votar. Com enormes óculos redondos, capa preta com forro interno na cor Gryffindor, camisa branca feito pó contrastando com as calças pretas, gravata listrada e suéter, Monaguillo começa seu relatório destacando ter o réu apresentado contrato de fornecimento de xistos e outras rochas metamórficas, com a exibição de notas fiscais correspondentes. O pó branco identificado como cocaína fora extraído em atividade lícita da fornecedora, diz ele, mencionando nos autos o alvará de funcionamento do laboratório de refino de creatina, além do Alvará de Vistoria do Corpo de Bombeiros, PCMSO e PGR. Portanto — arremata o relator —, os documentos provam que a substância apreendida não era cocaína e sim de material lícito, regularmente adquirido pelo acusado. Também faz referência a documentos legais de compra de sildenafil (também utilizado pelo glorioso Exército Brasileiro), cafeína, analgésicos, tetracaína, benzina, soda cáustica, éter e solução de baterias automotivas, todos produtos comercializados licitamente no País.

Para o ministro Monaguillo, a licença prévia da autoridade competente para produção da Creatina Powderest Turbo, mediante preparo e transformação de substâncias lícitas, adquiridas mediante contratos válidos, caracteriza exercício do direito à livre iniciativa, não podendo a Justiça Criminal imiscuir-se direta e abusivamente nessa atividade econômica do acusado, para sua indevida caracterização como tráfico de drogas.

São igualmente válidos os contratos de terceirização do comércio do produto, confiada a distribuição e a exportação a empresas especializadas. A terceirização é considerada pelo Supremo como alternativa lícita do empreendedor, sem peias na ordem constitucional, diz o ex-capitão do time de quadribol do colégio, citando a ADC 5657984/1879.

Além disso, o material apreendido como sendo cocaína, anota o ministro Monaguillo, encontrava-se devidamente embalado e rotulado como Creatina Powderest Turbo, não se podendo fundar a condenação criminal em meras ilações ou indícios, devendo ser reconhecido aqui o princípio da primazia do contrato, da livre manifestação volitiva das pessoas e da força probante dos documentos, que prevalecem em face da realidade. 

Para Monaguillo, a creatina é produto industrial de liceidade inequívoca, conforme inúmeros precedentes da Corte, inclusive em decisões com efeito erga omnes. “Mineral característico do metamorfismo que age sob rochas ricas em silicatos de magnésio”, assinala Sua Excelência, “o material apreendido na planta industrial não pode ser tomado como corpo de delito de conduta típica e antijurídica do acusado, empreendedor cuja atividade legal já foi igualmente reconhecida em diversas decisões da Supremíssima Corte”. Monaguillo também destaca que “a livre iniciativa não deve ser limitada pelo aparato penal do Estado, estando o juiz proibido de atribuir a dadas relações econômicas, sob o primado do direito de empresa, qualificação jurídica diversa daquela eleita pelos contratantes, em especial quanto aos contratos de aquisição da pirofilita, matéria prima essencial nos processos industriais do réu”. 

Enfatizando que a Corte não examina fatos e provas no exercício de sua jurisdição, o ministro Harry Monaguillo conclui seu voto cassando o decreto condenatório, determinando a imediata soltura do réu Cabeça de Ovo e ordenando ainda que a Justiça Criminal proceda a nova decisão, com base no entendimento da Corte Supremíssima sobre a matéria. Fugindo de seu estilo sereno de coroinha de paróquia de interior, Monaguillo conclui seu voto quase gritando, com a voz esgarçada: “O contrato é nossa Pedra Filosofal!”

Os demais ministros votam

O voto do relator é acompanhado pelos demais ministros, à unanimidade.

Aderindo ao relator, o ministro Zeus O’Great — para muitos, a mais brilhante mente do Supremo — observa que “cerca de 40% das reclamações recebidas na Corte Suprema envolvem decisões da Justiça Federal sobre a produção da creatina. Em que pese nós decidamos, isso vem sendo desrespeitado, e volta a esta Supremíssima Corte". O’Great enaltece a inocência do empreendedor injustamente acusado. “O teu cabelo não nega: você é inocente”, dispara, citando seu próprio voto no RE 359659/2016 pela absolvição de jovem acusado do roubo de xampu. Além disso, Sua Excelência critica a condução do das investigações policiais pelo delegado Ugo Fioravanti. O’Great só confia nos seus próprios inquéritos.

Com o topete rescendendo laquê, vestindo Ermenegildo Zegna e camisa com abotoaduras de rubi, o ministro Dionísio Pijito mostra-se irritado: há juízes que "se obstinam" em não cumprir decisões do Supremo, que, na ADC 48-1789 e em outros julgados, já decidiu que a Constituição não impõe uma única forma de estruturar a produção da creatina”. Para o ministro, “o princípio da livre iniciativa garante aos agentes econômicos liberdade para eleger suas estratégicas empresariais dentro do marco vigente”. A questão do narcotráfico, prossegue, está "pacificada neste Tribunal Altíssimo e é injustificável a divergência renitente até mesmo do STJ, de viés ideológico de esquerda, gerando insegurança jurídica”. Isso é “inaceitável”, conclui Dionísio Pijito, ajeitando o nó da gravata de crochê sobre o alfinete de ouro do colarinho.

Com os cantos da boca arqueados para baixo, como se estivessem empurrando o queixo, o ministro Ares Mürrisch faz cara de quem não gostou da cicuta do café da manhã e inicia sua manifestação encolerizada. Os lábios são densos e soberanos, mas o inferior recobre o de cima e empresta ao semblante severidade ainda maior. Mürrisch manifesta-se a favor de Cabeça de Ovo, mandando recados aos juízes criminais. Tem ocorrido — diz, enfático feito torpedos da IDF — "reiterado descumprimento de entendimentos Supremos ao se confundir atividade lícita da livre iniciativa com o narcotráfico”. Cáustico, com inúmeras ações trabalhistas de capangas da fazenda e intelectuais PJs e MEIs do Instituto falando alto em seu inconsciente, Mürrisch parece sentir prazer em finalmente julgar ele próprio uma reclamação. “É a vingança dos inocentes”, pensou com os botões semiconscientes de sua camisa alaranjada, que, sem nenhuma harmonia, jaz sob o blazer cáqui axadrezado, para o reproche do eminente colega Dionísio.

“Esse desrespeito à jurisprudência suprema é insulto, é assédio institucional”, arremata o ministro-ancião, propondo o envio de ofício ao Conselho Nacional de Justiça requisitando a apuração das "reiteradas decisões da Justiça Federal em matéria criminal contra as teses do Excelso Olimpo. É preciso punir exemplarmente esses punitivistas da livre iniciativa e da creatinidade!”. 

Numa exaltação inédita na corte, a proposição nem é formalmente votada. Os ministros sussurram entre si, seus olhos brilham e um rugido uníssono e avassalador do colegiado faz as colunas da morada de Têmis vibrarem. Eles gritam como colegiais, entoando palavras de ordem, e a aprovação da proposta de Ares Mürrisch é anunciada sob eletrizante ovação. Suas Excelências levantam-se em coro, enquanto surram suas bancadas com as duas mãos ao mesmo tempo: “Ofício! Ofício!”

A sessão é concluída nesse clímax evanescente. Os ministros agora arfam sofregamente, com a face enrubescida e a frequência cardíaca aumentada. As contrações musculares do início do julgamento enfim dão lugar ao relaxamento que sobrevém ao orgasmo.

Post scriptum 

Aos veículos de imprensa, o advogado Kakoyo, com um bóton de Eric Clepton na lapela do paletó e indisfarçável regozijo, declara que “o setor está em êxtase, com os neurotransmissores da indústria funcionando a todo vapor para produzir mais riqueza para a pátria”. Segundo o nobilíssimo causídico, a euforia e a excitação tomaram conta de empreendedores e consumidores da creatina, antevendo futuro de prosperidade branca. “Os empresários do setor estão sem dormir faz três dias, inspirados nos seus produtos e nas decisões alvissareiras da nossa Corte Maior”, declarou, com pupilas dilatadas quase extravasando a íris cor de mel.

O professor de Direito Comercial da FGV Tales de Milei, com MBA em “international trade of creatine powder” pela Universidade de Harvard, elogiou o voto do ministro Harry Monaguillo. Para ele, novos paradigmas jurisprudenciais viabilizarão plataformas de produção creatineira e sua distribuição no Brasil e no mundo. As decisões do Monte Olimpo — continua o catedrático — adensam e renovam a ultramoderna teoria neocontratualista do Iluminismo Refundado, tomando a vontade livre plasmada no contrato como substância primordial de todas as coisas e princípio único a ser respeitado numa economia liberal. “Esperamos agora” — acrescenta, efusivo, o professor — “o avanço dessa jurisprudência rumo ao fim do Banco Central e à dolarização da economia brasileira”.

Ouvidos por telepatia sobre as decisões do Supremo pelas agências internacionais, os filósofos iluministas ressuscitados pelo Supremo se dividiram. “Contractus est lupus homo homini: homo creatonus quom qualis sit non novit”, disse Thomas Hobbes (o repórter não consegue traduzir a frase do latim para o inglês). Mais crítico a Monaguillo. Hobbes argumenta que, se puderem chafurdar-se no pó da creatina livremente, os homens se digladiarão dantesca e brutalmente até a eliminação da sociedade humana da face da Terra Plana. Para John Locke, ao contrário, só o contrato faz os homens livres e iguais, permitindo-lhes a vida e a dignidade. Por isso, diz ele, o Estado só se justifica no contrato e para assegurar a eficácia e a eticidade do contrato, um direito natural autêntico, ao lado do direito à vida, à liberdade, à propriedade privada e à creatina. Quase romântico, como sempre, Jean-Jacques Rousseau — olhar fixo em uma estrela cadente — diz à reportagem estar convencido de que os contratos nascem bons e por isso o julgamento da Corte Suprema merece encômios, mas se preocupa com os riscos. “Como a Estátua de Glauco”, pondera o genebrino, “os contratos podem ser conspurcados pelo limbo urdido no longo dos anos de consumo da creatina e do convívio em sociedade”. Karl Marx vaticina secamente: “Isto já é a barbárie”.

Metido em seu terno verde, gravata amarela com o nó grande feito luva de box, Cabeça de Ovo deixa a Penitenciária de Piraquara sorrindo atrás de seus óculos escuros, com um palito de dentes no canto da boca.

Nota do autor

Este é um texto de ficção: uma paródia desajeitada. Qualquer semelhança com fatos reais terá sido mera coincidência. Só é verdadeira a personagem cocaína, cujo nome de batismo é relação de emprego.

*Membro da AJD e da ABJD, doutor em Teoria Geral e Filosofia do Direito (Universidade de Barcelona/USP), professor da UEL e juiz titular da 6ª Vara do Trabalho de Londrina.
 

Edição: Rebeca Cavalcante