IGUALDADE RACIAL

Especialistas reforçam importância do Novembro Negro e necessidade de enfrentamento ao racismo institucional

Adriana Moreira, da Uneafro, e José Vicente, da Universidade Zumbi dos Palmares, refletem sobre desafios e perspectivas

São Paulo (SP) |
135 anos após abolição da escravidão, obstáculos para população negra ainda são muitos devido a preconceito estrutural - Foto: iStock

Ser negro no Brasil segue como sinônimo de desafio, luta, resistência e força em busca de oportunidades e combate à desigualdade racial existente há séculos. Apesar de compor mais da metade da população do país, os negros seguem prejudicados pelo racismo estrutural, mesmo após mais de 135 anos da abolição da escravidão, origem do problema. 

Adriana Moreira, doutoranda em Educação e Desigualdades pela Universidade de São Paulo e militante da Uneafro Brasil, ao refletir sobre os desafios ainda colocados pela frente, destaca a importância de marcar datas e o mês da Consciência Negra para tratar com seriedade o tema. Ela conta que o processo já é difícil desde o início da aprendizagem. 

“Os meninos pretos são os mais vulnerabilizados neste processo. Eles aprendem menos, as meninas pretas aprendem menos. Eles tendem a ser mais reprovados. O dia 20 de novembro é um dia muito representativo. Ele coloca uma demanda histórica da ruptura do contrato racial estabelecido na sociedade brasileira, em que determinados grupos sociais, isto é, os brancos, por meio dos contratos estabelecidos de maneira tácita, tenham privilégios em relação aos não brancos. Em particular, em relação à população negra, em relação à população indígena."

Por essa razão é que foi criada a Lei de Cotas em 2012. A lei garante reserva de vagas em universidades para estudantes pardos e pretos e também para indígenas, egressos de escolas públicas, grupos de baixa renda e pessoas com deficiência. Recentemente, às vésperas do Dia da Consciência Negra, a lei teve a primeira atualização, após passar pelo Congresso e ser sancionada pelo presidente Lula.

Entre as mudanças, está sua ampliação, com cotas em universidades também para quilombolas, e diminuição da renda permitida para participar dos programas do governo que dão acesso às universidades públicas e particulares com bolsas. Pessoas negras também vão ter uma chance a mais de entrar para o ensino superior, podendo concorrer às vagas de ampla concorrência se tiverem nota suficiente, antes mesmo de serem ranqueadas como cotistas. 

Análise

O reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, comemorou a atualização da Lei de Cotas, que já deveria ser revista após 10 anos desde a criação e havia dúvida sobre sua permanência depois desse período.

“A lei tinha aí um elemento que indicava a necessidade da sua revisão depois dos seus 10 primeiros anos. Podendo ter resolvido isso com a edição de uma nova lei, ela, de fato, então, permitiu que essa segurança, essa estabilidade fosse restabelecida. Essa é a primeira coisa."

"A segunda característica muito importante da lei é que ela avança um pouco mais, seja porque traz agora a previsão da bolsa permanência, ou porque ela também estende, de uma forma um pouco mais clarificada aos quilombolas o acesso ao programa e também estende para os cursos de pós-graduação. Mestrado e Doutorado e Pós-Doutorado passam a ser agora também alcançados pelas cotas nas universidades”, observa o reitor.

José Vicente, porém, também tem ressalva. Ele diz que, entre alguns pontos que faltaram na atualização da lei está a definição e previsão sobre heteroidentificação, quando uma banca verifica se a pessoa que se autodeclarou negra realmente tem direito à vaga para qual se candidatou. Hoje, algumas universidades fazem por conta própria. 

“Como é que, ao final, você faz o combate às fraudes e como é que você garante também a segurança de que aquele que cumpriu os requisitos, de fato, possa fazer uso dessa política? A realização ao longo desses últimos 10 anos da lei, mais os 10 anos que antecederam a própria lei foi uma construção das próprias universidades, dos conselhos universitários, criando as comissões de heteroidentificação."

"Ou seja, um grupo de professores que dizia se o indivíduo era negro ou não era negro pra evitar a burla da lei. Então, se a lei tivesse regulado isso, ela iria uniformizar e iria, da mesma maneira, criar uma regra geral para você operar essa questão em todas as universidades em que ela fosse implementada”.

Contrato racial

Apesar de avanços como a atualização da lei, dados preocupantes indicam a longa distância para atingir a igualdade racial. De acordo com um estudo do Espro, Ensino Social Profissionalizante, 84% dos jovens negros brasileiros são vítimas de preconceito na sala de aula. Quando falamos em mercado de trabalho, um levantamento do Linkedin mostra que 93% dos trabalhadores pardos e pretos enfrentam obstáculos para chegar à liderança. A violência do estado também tem alvo. Segundo levantamento da Rede de Observatórios da Segurança, a cada 100 mortos pela Polícia em 2022, 65 eram pessoas negras. A proporção aumenta para 87% se considerar apenas aqueles com cor/raça informada.

Para a integrante da Uneafro Brasil, rede de cursinhos populares que é referência de luta na educação transformadora na vida de pessoas periféricas e pretas, é preciso romper o contrato de racismo estabelecido no Brasil.

“Enquanto a sociedade brasileira não se pautar pela ideia de que o contrato racial que organiza nossa sociedade precisa ser rompido, que a gente deve produzir políticas pensando na garantia do direito de todas as pessoas e que os grupos sociais têm trajetórias diferentes, que constroem processos de desigualdade e que a nossa função e que a função do estado é produzir ações de desconstrução dessas desigualdades, o racismo vai permanecer porque o contrato racial vai permanecer intocável", conclui Adriana Moreira.

José Vicente, que é reitor da Universidade que leva o nome de Zumbi dos Palmares, morto em 20 de novembro de 1695 e símbolo da resistência negra, também reflete sobre a data e o mês de novembro.

“Esse dia continua sendo o mais importante pra reflexão de todos nós brasileiros. Que ele possa se manter e estabelecer como esse ponto de inflexão, reflexão e de referenciamento. E até por conta disso, ele deveria ser um feriado nacional e não só um feriado em dois mil municípios, algumas capitais e alguns estados… Mas ele remete para esse desejo e essa necessidade desse encontro do Brasil com todos os brasileiros. Nós somos um país de miscigenados, negros, brancos, índios e trajetória histórica de toda essa compartimentação da nossa estética, da nossa realidade histórica, precisa ser contemplada, referenciada e valorizada. E o povo brasileiro está fazendo isso. Tornou Zumbi dos Palmares um herói nacional, tornou o dia da sua morte feriado em muitas localidades, inclusive na locomotiva do Brasil que é São Paulo e isso demonstra que ele continua sendo necessário, importante, urgente e inexorável”. 

Na semana em que se celebrou o Dia da Consciência Negra, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar uma ação protocolada por sete partidos (PT, PSB, PCdoB, Psol, PDT, PV e Rede Sustentabilidade) e mais de 250 organizações, entidades, coletivos e movimentos populares que trata sobre racismo estrutural no Brasil. É a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 973 pelas Vidas Negras. 

O julgamento pode obrigar o Estado a admitir a prática de racismo estrutural e formular um plano para combater a situação. Uma outra sessão do STF ainda será marcada para a apresentação dos votos a respeito do Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho