Coluna

Invisibilidade social: a cor da desigualdade

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Combater a invisibilidade social requer luta, conscientização, mudanças nas estruturas sociais e também na legislação - Monyse Ravena
Na sociedade, um fenômeno prejudicial persiste, muitas vezes ignorado: a invisibilidade social

*Por Ana Paula Alvarenga 

Hoje, 20 de novembro, dia em que escrevo este breve artigo, é dia de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra. Não tenho a pretensão de explicar as causas do racismo, as causas da invisibilidade e exclusão da população negra e as causas das muitas formas de violência real e simbólica vivenciadas cotidianamente pelas pessoas pretas no Brasil. No breve espaço de um artigo a intenção é apenas denunciar, me juntando às muitas vozes, que a desigualdade e a miséria têm cor, que a violência tem cor e que a exclusão social também tem cor. A cor negra. A cor preta.  

Na sociedade contemporânea, um fenômeno insidioso e prejudicial persiste, muitas vezes ignorado ou negligenciado: a invisibilidade social. Embora todos os indivíduos e grupos mereçam igual reconhecimento e oportunidades, a invisibilidade social afeta desproporcionalmente aqueles que enfrentam discriminação, marginalização e falta de representação. Grupos invisibilizados, ignorados, sub-representados ou negligenciados na sociedade, sob várias formas e em diversas esferas, incluindo a social, a política, a econômica, e a cultural. Dentre esses grupos, as pessoas negras, que segundo os dados do IBGE representam 56% do total da população brasileira.  

Os dados estatísticos que serão apresentados estão recheados de subjetividades, são histórias, memórias, vivências, vidas reais. São rostos pretos e histórias de pessoas pretas que enfrentam diariamente as consequências de um sistema racista que as invisibiliza e marginaliza, uma realidade vivida por seres humanos que veem suas oportunidades limitadas devido a barreiras sistêmicas baseadas em preconceitos.  

Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (PnadC-IBGE) e referente ao 2º trimestre de 2023, apontam que no mercado de trabalho brasileiro a população negra representa 56,1% da população em idade de trabalhar, entretanto, representam 65,1% dos desocupados no país. Os dados ainda apontam que 46% da população negra está inserida no mercado de trabalho em ocupações precárias e trabalhos desprotegidos; que a remuneração média da população negra é 39,2% menor que da população não negra e apenas 33,7% dos cargos de direção e gerência são ocupados por pessoas negras.  

Em relação as mulheres negras, os dados são ainda mais dramáticos, a mesma pesquisa comprova que as mulheres negras acumulam as desigualdades não só de raça, mas também de gênero: Uma em cada seis mulheres negras ocupadas (15,8%) trabalha como empregada doméstica, uma em cada quatro das mulheres negras aptas a compor a força de trabalho (26,6%) estavam desocupadas, desalentadas ou subocupadas, número muito inferior à população não negra em geral, e sobretudo em relação ao percentual de homens brancos nas mesmas situações.  

Carolina de Jesus, uma das mais importantes escritoras brasileiras, autora do livro Quarto de Despejo, lançado em 1960, protestou: “Não digam que fui rebotalho, que vivi à margem da vida. Digam que eu procurava trabalho, mas fui sempre preterida. Digam ao povo brasileiro que meu sonho era ser escritora, mas eu não tinha dinheiro para pagar uma editora”.  

Mas se o mercado de trabalho no Brasil é marcado pelo racismo, os dados do encarceramento e da violência, não são diferentes. A pesquisa com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), que dizem respeito ao primeiro semestre de 2023, aponta que o Brasil encarcera majoritariamente pessoas negras e persiste na recusa em prover condições dignas de vida e garantia de direitos para essa população. Os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em julho de 2023 mostram que até o ano passado, 397.145 pessoas negras estavam encarceradas no País, o que representa 67,78% do total de presos, considerando apenas a população carcerária com informação racial.  

Segundo o relatório do Fórum de Segurança, o sistema prisional brasileiro reproduz um quadro de violência racial institucionalizada, que adere incondicionalmente à desumanização das pessoas negras, sob o aparato legal vigente. E considerando que a “prisão é a opção pelo controle social, que opera pela sujeição constante das pessoas encarceradas”, viabilizada por meio do sistema de justiça criminal, explicita que “o Judiciário desempenha papel expressivo na chancela do aniquilamento dos corpos negros”.  

Conforme, ainda, os dados do Anuário, 76,5% das vítimas de mortes violentas intencionais, considerando os crimes graves, eram pessoas negras, o principal grupo vitimado pela violência independente da ocorrência registrada, chegando a 83,1% das vítimas de mortes de intervenções policiais. O recorte em termos de raça/cor das mulheres vítimas de violência letal no país reafirma os elementos de racismo que atravessam todas as modalidades criminosas no país. Entre as vítimas de feminicídio, 61,1% eram negras e 38,4% brancas. Nos demais assassinatos de mulheres, o percentual de vítimas negras é ainda maior, com 68,9% dos casos, para 30,4% de brancas.  

E mais uma vez, com razão Carolina de Jesus alertava em sua célebre frase: O negro só é livre quando morre.  

Estes são apenas alguns dados estatísticos recentes sobre a abjeta persistência do racismo estrutural no Brasil, mas muitos outros poderiam ser apresentados. Os dados da fome, da insegurança alimentar, da miséria, da escravização, do acesso à saúde e à educação, da discriminação e do preconceito, não fogem a esta regra que invisibiliza socialmente a população negra no Brasil. Não são fenômenos isolados, mas sim componentes interconectados de um sistema que historicamente invisibiliza a população negra, deixando uma marca profunda em nossa estrutura social. São dados de vidas reais, recheados de subjetividades, experiências. São comunidades inteiras impactadas por essa estrutura racista e discriminatória. São histórias de pessoas negras que enfrentam diariamente as consequências de um sistema que as coloca à margem, uma realidade vivenciada por mulheres e homens que veem suas oportunidades limitadas devido a barreiras sistêmicas baseadas em preconceitos exclusivamente em razão da cor de sua pele.  

Combater a invisibilidade social requer luta, conscientização, mudanças nas estruturas sociais e também na legislação, promovendo a inclusão e a real igualdade. Neste processo é fundamental reconhecer e dar voz aos grupos invisibilizados, a fim de construir uma sociedade mais justa e equânime. Certamente, o caminho a percorrer é longo e árduo, e será necessário superar as barreiras impostas por aqueles que desfrutam de privilégios sociais e que têm, portanto, interesse na manutenção da invisibilidade de outras pessoas, como única possibilidade para a preservação do seu domínio e do controle sobre subjetividades, recursos, oportunidades e tomadas de decisão.  

É crucial compreender que a mudança social requer esforços conscientes para superar os sistemas de privilégios e discriminação que perpetuam a invisibilidade social de 56% da população brasileira. E o primeiro passo para denunciá-la é reconhecer a sua existência, porque, nas palavras de Luiz Gama: “Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime. Mas nossos críticos se esquecem que essa cor, é a origem da riqueza de milhares de ladrões que nos insultam; que essa cor convencional da escravidão tão semelhante à da terra, abriga sob sua superfície escura, vulcões, onde arde o fogo sagrado da liberdade.” 

 
*A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelo juiz federal José Carlos Garcia e pela juíza do Trabalho Ana Paula Alvarenga, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e do Conselho da Associação das Juízes e Juízas para a Democracia (AJD). 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Vivian Virissimo