Coluna

Desilusão

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O anúncio de Lula deixou Haddad falando sozinho, mas serviu como recado ao Congresso - Evaristo Sá / AFP
Fato é que Lula nunca escondeu suas preferências pelo investimento público em lugar da austeridade

Camélia ficou viúva, Joana se apaixonou… Lula matou o déficit zero, deixou o Mercado desnorteado e Haddad sozinho dançando sozinho ao som de Paulinho da Viola.

.Uma escolha nem um pouco difícil. Depois de semanas sem turbulências na política interna, todos os olhares se voltaram novamente para o Planalto e os efeitos políticos da fala de Lula sobre não alcançar o déficit zero. De imediato, o Mercado chiou e acionou a bateria de tiros vindos de seus jornalões. O fato é que Lula nunca escondeu suas preferências pelo investimento público em lugar da austeridade. Manter a meta significaria bloquear o PAC e as emendas parlamentares em pleno ano eleitoral. O fator decisivo foi o quadro preocupante para o governo que as últimas pesquisas de opinião mostraram: aumento dos índices de rejeição, resiliência do bolsonarismo e manutenção da polarização política. Além disso, mesmo com a melhora no número de empregosa produção industrial continua estagnada, o que é um problema para manter a curva descendente do desemprego. Por isso também, o governo retomou 5,6 mil obras de educação e outras 5,4 mil na saúde. O anúncio de Lula deixou Haddad falando sozinho, mas serviu como recado ao Congresso: vamos garantir as emendas, mas garantam aí os projetos de aumento de arrecadação. É possível, ainda que caiba ao Congresso o trabalho de definir a nova meta fiscal, o que diminuiria o desgaste do governo com o Mercado, ou pelo menos, dividiria o ônus. Fora isso, a verdade é que ninguém além do Mercado está preocupado com os déficits do governo, desde que este consiga gerar crescimento, manter a inflação controlada, reduzir o desemprego e melhorar a renda da maioria.

.Todas as flores. Não há dúvida nenhuma que o grande perdedor no episódio foi Fernando Haddad, que vinha dedicando-se a cultivar cuidadosamente a esperança de um déficit zero nos jardins da Faria Lima. O que, aliás, é uma jabuticaba no atual contexto de altos déficits públicos no mundo todo. Haddad até teria motivos para comemorar esta semana: além dos índices de emprego, o país voltou a ser atrativo para os investimentos estrangeiros, o segundo maior a atrair recursos, perdendo apenas para os EUA. E a economia brasileira recebeu elogios do insuspeito Banco Santander, para quem, surpreendentemente, a mudança da meta fiscal é um detalhe que não interferiria na capacidade de crescimento do país. Porém, em se tratando da taxa de juros, a Faria Lima é sempre mais pessimista que a matriz em Wall Street. Apesar de indicarem queda na inflação neste ano, o mercado financeiro, que errou todas as previsões até aqui, aponta que ela voltará em 2024, endossando o argumento de Campos Netos para manter a Selic em queda lenta, muito lenta, com um corte de apenas meio ponto percentual esta semana. E, obviamente, tudo pode piorar com o conflito na Palestina, a começar pelo aumento no preço dos combustíveis, que pode chegar a 13% na previsão otimista feita pelo Banco Mundial em relação à média do trimestre em curso. Além disso, a instituição alerta para o impacto da guerra na segurança alimentar e no custo dos alimentos. É verdade que o Brasil fez a sua parte - e com louvor- para buscar a paz. Mas o período à frente do Conselho de Segurança da ONU terminou e sob nova direção chinesa é improvável que qualquer proposta seja aprovada pelos Estados Unidos. A diplomacia brasileira ainda sai fortalecida do período pelo esforço empreendido, mas além das incertezas econômicas, após quase um mês de guerra, a pergunta que todos se fazem é: para que mesmo serve a ONU?

.Chocadeiras. O que bolsonarismo, aparato de inteligência e Estado miliciano têm em comum? As ligações foram ganhando contornos concretos nas últimas semanas. O primeiro capítulo foi a descoberta do uso indiscriminado e ilegal de um software de espionagem isralense. Novos indícios levantados pela PF mostram que o esquema pode ser muito maior do que o imaginado até agora, envolvendo contratos milionários da empresa Cognyte com o governo federal, governos estaduais, polícias e até com o Ministério Público. Com um detalhe: todos os caminhos levam à ABIN, então sob a direção da eminência parda de Bolsonaro, Alexandre Ramagem. O segundo capítulo da história foi a condenação de Bolsonaro e Braga Netto no TSE esta semana, tornando ambos inelegíveis. Afora o recado dada pela Justiça Eleitoral de que um general, uma vez na política, será tratado como qualquer outro político, o que só é reforçado pela esforço de distanciamento das Forças Armadas do caso, a condenação de Braga Netto tem um segundo efeito: inviabiliza sua candidatura à prefeitura do Rio de Janeiro. E quem agora pretende ocupar seu lugar é - vejam só! -  o ex-ABIN Alexandre Ramagem, que agora conta com o apoio do cacique do PL, Valdemar Costa Neto, para a sucessão na capital carioca - dominada pelas milícias - mas que terá que enfrentar a oposição de Flávio Bolsonaro. Fazendo a ponte aérea ou seguindo a Dutra, quem se prepara para dar o bote em 2026 é o PSD de Gilberto Kassab, que tem seu ninho aquecido no governo paulista de Tarcísio de Freitas e em três ministérios do governo Lula. Nas últimas eleições, Kassab já desbancou o ex-todo-poderoso PSDB das prefeituras do estado de São Paulo, e agora sonha em consolidar a hegemonia regional do PSD e fazer do partido um dos fiéis da balança do governo federal.

 

.Ponto Final: nossas recomendações.

.Como o Brasil virou o paraíso da espionagem ilegal. No Intercept, como a espionagem política cresceu nos governos Temer e Bolsonaro.

.Um raio-x das 50 empresas donas da água no Brasil. Apuração da Agência Pública revela que metade da água do país é controlada por apenas 50 empresas.

.Água contaminada: testes encontram agrotóxicos acima do permitido em 28 cidades do Brasil. No Repórter Brasil, como agrotóxicos proibidos pela lei chegam à torneira da população.

.A possível correlação entre soja e câncer infantil no Brasil. Na Agência DW, pesquisa americana indica relação entre cultivo da soja e mortes por leucemia entre crianças do Brasil.

.Entregadores e motoristas de app ganham 2 salários mínimos e trabalham mais de 40 h por semana, aponta pesquisa. O G1 repercute a pesquisa inédita do IBGE sobre os trabalhadores de aplicativos, 1,7% da população ocupada no setor privado.

.Parece inocente, mas é xenofobia. Na revista Gamma, como “elogios” ao nordeste escondem preconceito e xenofobia.

.Tudo o que queremos em Gaza é viver. No Instituto Humanitas, o depoimento de Mohammed R. Mhawish, jornalista, escritor e pesquisador palestino que mora na cidade de Gaza.

.Guilhotina #218. O podcast do Diplô Brasil entrevista o pensador marxista Michel Lowy.


Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Vivian Virissimo