Coluna

Um grito de desespero e uma advertência

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Cerca de duas mil crianças palestinas já foram mortas pela operação militar israelense em Gaza - m.z.gaza
Ontem, o grito de desespero era judeu; hoje, é palestino

* Por José Carlos Garcia

Acordei cedo naquele sábado frio e chuvoso, 12 de maio de 2012. Comi algo apressado, juntei as coisas poucas que iria levar – casacos, água, dinheiro, passaporte – e dirigi-me à van que me levaria de Cracóvia para Oswiecin e, de lá, para o complexo de campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Desde a infância tinha uma certa obsessão pelo Holocausto: como aquilo poderia ter sido possível, como se pôde construir uma engrenagem para assassinar em massa milhões de pessoas, milhares delas por dia? A obsessão nascida em filmes e séries de televisão foi-se alimentando com a leitura de muitos textos sobre o nazi-fascismo, o antissemitismo, as múltiplas violências nazistas, desde a Aktion T4, a partir de 1939 e que esterilizava pessoas “em desconformidade” com o regime e praticava “eutanásia” contra pessoas com deficiência – estima-se que mais de 200.000 pessoas tenham sido assassinadas no bojo da T4 – até a Solução Final decidida em Wannsee, em 20 de janeiro de 1942, com deportação em massa de milhões de “indesejados”, em sua maioria judeus de toda a Europa, para o Leste, sobretudo Polônia, onde seriam escravizados e exterminados.  

Foi visita dura, tensa, difícil. Que experiência impactante ver à minha frente os portões e trilhos pelos quais passaram os trens tão meticulosamente organizados por Adolf Eichmann – cujo julgamento, em Jerusalém, foi tão impecavelmente descrito e analisado por Hannah Arendt como correspondente da revista New Yorker em Eichmann em Jerusalém; ou, sobre outro portão do campo, a inscrição Arbeit macht frei, “o trabalho liberta”, tão típica dos eufemismos nazistas para as atrocidades que cometiam; salas inteiras reunindo malas, óculos, sapatos, muletas, próteses, pertences pessoais, cabelos, enfim, espólios das vítimas aos quais se daria destinação econômica, reutilização do ouro de próteses dentárias, cabelos para fazer tecidos, pele humana para fabricação de objetos... eram barracões, muros de fuzilamento, celas solitárias em que a pessoa não podia ficar nem em pé, nem deitada, crematórios, maquetes e ruínas das câmaras de gás, cenários que se nos tornaram tão familiares pelo cinema e pela literatura, e que terminavam em um memorial onde se liam as seguintes palavras, das quais extraí o título deste artigo: “Que este lugar onde os nazistas assassinaram um milhão e meio de homens, mulheres e crianças, em sua maioria judeus de diversos países da Europa, seja para sempre para a Humanidade um grito de desespero e uma advertência”. Foi uma das viagens mais marcantes e importantes da minha vida, tanto que gesta um livro que ainda escreverei, e deu-me uma pálida noção sobre os motivos pelos quais o filósofo alemão Theodor Adorno disse que, depois de Auschwitz, a filosofia já não era mais possível. Aquele grito desesperado e aquela advertência jamais deixaram de soar em minha alma. 


Sapatos de judeus vítimas do holocausto nazista / José Carlos Garcia

Pouco menos de oito anos mais tarde, fiz outra viagem chocante e inesquecível. Entre fins de janeiro e começo de fevereiro de 2020, semanas antes do início da pandemia de Covid, fui com amigos e amigas da Associação Juízas e Juízes para a Democracia – AJD a um giro por Israel e Palestina. Quando entrei em Rammalah, capital da Autoridade Palestina, era noite e fomos cercados por soldados israelenses fortemente armados, passaportes analisados, van revistada, luzes acesas – mas não estávamos entrando em uma cidade israelense, e sim na capital palestina. Uma capital cercada por muros, portões de ferro e arame farpado, controlada por torres de vigilância e uma força de ocupação estrangeira, as forças de defesa de Israel. Naquele momento, voltei a ouvir a advertência terrível do grito de desespero de Auschwitz. 

A comoção da opinião pública mundial é unânime e plenamente justificada na condenação à ação do grupo Hamas do dia 7 de outubro. Eu não sou exceção. Atacar população civil, uma festa, kibutzin, entrar nas casas e assassinar civis a sangue frio, tomar mais de duzentos civis como reféns, inclusive crianças e bebês, isso é uma ação de terror em toda a sua acepção, e só pode ser rechaçada e condenada. Não há qualquer “mas” ou relativização possível quanto a isso. Nada do que foi dito antes ou será dito por mim abaixo neste texto pode ser legitimamente interpretado como qualquer tipo de relativização a essa condenação ao uso do terror. Deixo-o absolutamente claro para evidenciar que qualquer tentativa de atribuir-me alguma condescendência para com a ação do Hamas, ou pior, qualquer traço de antissemitismo, será fruto de desonestidade intelectual e retorção de minhas palavras. No entanto, como salienta com extrema felicidade a filósofa judia estadunidense Judith Butler, em artigo publicado na London Review of Books em 19 de outubro, esta condenação não nos exime de analisar o passado e as responsabilidades pela construção da situação que permite que toda essa violência se perpetue. Não basta condenar a violência praticada, pelo Hamas ou por Israel, é preciso entendê-la em sua história e estancá-la. Tampouco basta dizer que a violência das ações do Hamas em 7 de outubro são mera resposta ao regime de apartheid imposto por Israel aos palestinos não desde o começo do atual governo, mas há décadas – com maior intensidade, há 56 anos. Isso retiraria do Hamas a responsabilidade por suas decisões e ações, e isso não é admissível: atacar covardemente civis em massa é sempre um ato política, jurídica e moralmente inaceitável e que merece todas as condenações. 

Minha visita a Israel e à Palestina, em 2020, não era apenas uma viagem de turismo: tivemos inúmeros encontros com organizações, intelectuais e lideranças israelenses e principalmente palestinas, jornalistas, empresários, ativistas de direitos humanos, advogados e parlamentares do Knesset. Fui à Cisjordânia, não consegui entrar em Gaza, visitei campos de refugiados palestinos. Vi de perto o apartheid a que são submetidos mesmo os palestinos com cidadania ou residência em Israel: nenhum tem os mesmos direitos de israelenses judeus, únicos a terem cidadania plena no país, que se orgulha em dizer-se “a única democracia do Oriente Médio”. Até a maioridade penal é diferente entre israelenses judeus e palestinos, pois para estes aplicam-se as leis coloniais do Mandato Britânico, anteriores à formação do Estado de Israel, legislação militar de exceção que permite prisão administrativa de crianças a partir de 12 anos e manutenção de presos sem ordem judicial e sem acusação formal. Carros de israelenses judeus e palestinos têm placas de cores diferentes, porque não podem trafegar nas mesmas rodovias – há estradas diversas, ladeadas por muros e cercas, para cada um. Presenciei as provocações de religiosos judeus em passeios escoltados pelas forças israelenses na Esplanada das Mesquitas, em Jerusalém, onde está um dos lugares mais sagrados do Islã, a Mesquita de Al-Aqsa, de onde os fiéis acreditam que o profeta Maomé tenha ascendido aos céus; esta mesquita teve severas restrições de acesso aos muçulmanos no início de outubro, em face de uma ocupação ilegal por colonos judeus, respaldada pelas forças de segurança israelenses, em repetição de cenas comuns no local.  

Visitei Hebron, cidade palestina que pertence aos palestinos e fica na Palestina, segundo os Acordos de Oslo, de 1993, onde fomos guiados por uma militante da ONG Breaking the Silence: trata-se de uma organização composta exclusivamente por judeus israelenses veteranos das forças de defesa de Israel que atuaram na repressão aos Palestinos e que, tendo testemunhado as violências praticadas por aquelas forças contra populações civis, as denunciam para o mundo. Hebron é cercada por assentamentos israelenses que a ONU considera em si mesmos violações ao Direito Internacional. Mais do que isso, Hebron é ocupada por forças israelenses, que proibiram o acesso de palestinos às ruas principais da cidade, que ficam desertas – eles as chamam, abjetamente, de “ruas esterilizadas”. Aos palestinos é destinada uma área absolutamente cercada, com roletas de corpo inteiro como entrada e saída, rigorosamente controladas pelo Exército de Israel. Um verdadeiro gueto.


Rua "esterilizada" em Hebron / J.M.Gaza

No dia em que chegamos a Hebron, havia intensos protestos palestinos no gueto, porque forças israelenses teriam matado com um tiro de fuzil um garoto palestino de 15 anos. Quando chegamos, tropas israelenses preparavam-se para reingressar no gueto a fim de reprimir a manifestação. Fomos seguidos por uma israelense que insistia em filmar-nos com seu celular, de forma ostensiva e agressiva, dirigindo-nos impropérios e ofensas em hebraico. O mesmo fez um colono que se preparava para entrar com as forças israelenses no gueto, em procedimento de muito discutível legalidade – no Brasil, seria manifestamente ilegal, mas não sei se as leis coloniais britânicas autorizam ou não que civis armados participem de ações de repressão contra cidadãos palestinos junto com tropas israelenses.  

Conheci a família palestina Tamimi, que mora em um vilarejo na Cisjordânia alvo constante de incursões das forças de segurança israelenses (como deixam claro as inúmeras bombas de gás recolhidas pela família e mantidas à entrada de sua casa, uma "decoração" que lhes lembrava as constantes agressões que sofrem). Fomos muito gentilmente recebidos e acolhidos, ouvimos muito e soubemos que um de seus filhos, adolescente, ainda carregava fragmentos de munição israelense no corpo, fragmentos que não podem ser retirados pelo risco de morte na cirurgia. No dia 5 de junho deste ano, o mundo noticiou que um dos membros mais jovens daquela mesma família, Muhammad Haitham al-Tamimi, de apenas três anos de idade, foi assassinado a tiros de fuzil pelas tropas israelenses. Tropas que não deveriam estar lá, mas estavam, protegendo assentamentos que não deveriam existir, mas existem, e que são considerados violações ao direito internacional pela ONU, como expresso na Resolução 2334 do Conselho de Segurança, de 2016. 

Conheci três irmãos octogenários, duas mulheres e um homem, que têm uma pequena plantação de oliveiras na Cisjordânia, em pleno território palestino. Fomos à sua casa e compramos deles o melhor azeite que já provei em minha vida, totalmente artesanal. Ouvimos, também, suas narrativas sobre quantas vezes tiveram oliveiras ancestrais destruídas, a casa apedrejada e eles próprios foram espancados por colonos judeus que, como disse, não poderiam estar lá segundo o Direito Internacional – mas não apenas estão, como agridem violenta e covardemente uma família de palestinos idosos, reiteradas vezes. 

Notem: quase tudo o que presenciei e descrevi, as provocações, o apartheid, as violências, os ataques, a segregação, os assentamentos, as agressões, nada disso se passou em Israel, nem na Faixa de Gaza, controlada pelo grupo fundamentalista islâmico Hamas, que luta pela destruição do Estado de Israel; tudo isso aconteceu na Cisjordânia, em território internacionalmente reconhecido como pertencente aos palestinos e teoricamente sob a administração da Autoridade Palestina, onde o Hamas não tem presença política relevante, e sim o Fatah, partido secular e laico que reconhece o Estado de Israel e luta pela efetivação das Resoluções da ONU, especialmente das Resoluções  181, de 1947, e 194 (III), de 1948, com a criação de dois Estados independentes na região, Israel e Palestina. 

Estabelecida a premissa de que a ação do Hamas em 7 de outubro é absolutamente inaceitável, como crer ser uma reação normal a ela bombardeios massivos em áreas civis palestinas densamente povoadas e confinadas, como na Faixa de Gaza? Como achar moral ou politicamente aceitável o que até mesmo o maior jornal israelense, o Haaretz, denunciou, em editorial, como uma política de Israel para a anexação da Cisjordânia e limpeza étnica em Gaza, ignorando inteiramente os direitos dos palestinos? Como aceitar, em suma, que um Estado nacional iguale-se a uma organização terrorista em sua forma de atuação, desconsiderando inteiramente a vida e a segurança de milhares de civis não combatentes? Ordenar o deslocamento forçado de mais de um milhão de pessoas em poucas horas? Bombardear pesadamente áreas civis com uma das maiores densidades demográficas do mundo, onde vivem 2,5 milhões de pessoas? Bloquear o ingresso de água, energia e medicamentos? Não é isso também atacar covardemente civis em massa?  

Em duas semanas de conflito em Gaza, já passam dos 6.000 os mortos, quase 5.000 dos quais, palestinos – dentre eles, quase 2.000 crianças. Os dados são do Ministério da Saúde da Palestina, mas podem ser subestimados, pelas próprias dificuldades de locomoção, trabalho e registro na Faixa de Gaza sob bombardeio constante. Estes números, por si sós, já demonstram o caráter desproporcional e inaceitável dos bombardeios israelenses: ainda que os alvos não fossem especificamente civis – mas vimos bombardeios a hospitais, escolas, supermercados, mesquistas – e sim instalações que o Hamas utilizasse como base, o número imenso de civis mortos indica claramente a prática de crime de guerra, ao expor essas populações não combatentes a enorme risco de morte e supressão de seus direitos fundamentais. Outro indicador importante da gravidade dos ataques de Israel a Gaza é o número de jornalistas mortos neste conflito. Segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas, desde o dia 7 de outubro, portanto, em apenas 16 dias de guerra quando escrevo este artigo (23 de outubro), já perderam a vida 23 jornalistas – 19 palestinos, 3 israelenses e 1 libanês. Em todo o ano de 2022, morreram 15 jornalistas cobrindo a guerra da Ucrânia, segundo a mesma organização. O elevado número de jornalistas mortos é um indicativo importante dos riscos a que está submetida a população civil em Gaza. 

É notável, ainda, a desproporção do número de mortos entre palestinos e israelenses. Dos mais de 6.000 mortos até aqui, cerca de 1.400 deles são israelenses, a imensa maioria dos quais no brutal ataque terrorista do Hamas em 7 de outubro, segundo autoridades de Israel e noticiado pelo maior jornal do país, o Haaretz. O Ministério da Saúde palestino registrou até este domingo, dia 22, 4.651 vítimas fatais palestinas, sendo 40% delas (cerca de 1.860), crianças. O jornal Folha de São Paulo cruzou dados da organização israelense de direitos humanos B’Tselem (Centro Israelense de Informação sobre Direitos Humanos nos Territórios Ocupados) com os divulgados pelo Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários – OCHA, na sigla em inglês, e concluiu que quase metade das mortes de crianças e adolescentes palestinas registradas neste século em conflitos com as forças israelenses, 46,7% do total, ocorreram nas últimas duas semanas – o número de crianças e jovens mortos na última quinzena é três vezes maior do que em todo o ano até então com mais mortes na faixa etária até 18 anos no século, 2014, quando 548 crianças e adolescentes palestinos foram vítimas de ofensiva de Israel em Gaza para destruir túneis e foguetes. Do lado israelense, das poucas mais de 700 vítimas já identificadas, autoridades acreditam que 20 sejam crianças, segundo a mesma fonte – seguramente, este número crescerá com o avanço dos reconhecimentos. 

Os mais de 4.600 palestinos civis assassinados por Israel em bombardeios generalizados em Gaza valem menos do que os 1.300 israelenses civis assassinados pelo Hamas? As vidas das 2.000 crianças palestinas mortas nos bombardeios valem menos do que as 20 crianças israelenses assassinadas pelo Hamas e até aqui reconhecidas? O Hamas não é o povo palestino, os cidadãos palestinos não são o Hamas, tanto quanto os civis israelenses assassinados ou mantidos como reféns não eram e não  são suas forças de defesa ou seu governo. Por que as condenações deveriam ser seletivas? Por outro lado, é justo, correto e suficiente, de um ponto de vista político, jurídico e moral, igualar as posições do invasor e do invadido, do ocupante e do ocupado, do agressor e do agredido? 

Não são questões fáceis, e obviamente não se trata de uma competição por números. A morte de civis, especialmente de crianças, é sempre um preço absurdo demais para qualquer conflito. O que estou procurando ressaltar aqui é o paradoxo de um discurso de parte da mídia, e do próprio governo de Israel, que demoniza o ataque do grupo Hamas que matou cerca de 1.400 pessoas – que sem dúvida deve ser objeto das mais contundentes críticas e do mais indignado luto – enquanto se normaliza a reação brutal israelense, que matou mais de 5.000 pessoas em duas semanas. 

Não se trata apenas, e isso precisa ser dito claramente, de uma ofensiva de agora, da coalização de extrema-direita que sustenta o atual mandato de Benjamin Netanyahu, ainda que sejam crescentes as vozes israelenses que exigem sua renúncia, seja pelas suspeitas de corrupção, pela postura antidemocrática de procurar restringir a independência do Poder Judiciário, seja ainda pela incapacidade de comandar a guerra de modo a garantir um mínimo de segurança aos cidadãos israelenses. Os palestinos têm suas terras usurpadas desde a criação do Estado de Israel, em 1948, num cenário agravado a partir da Guerra de 1967. Os territórios de Israel e da Palestina foram fixados conjuntamente ainda em 1947, pela Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas, mas os territórios palestinos têm sido ilegalmente reduzidos, controlados, asfixiados por Israel, em clara violação aos tratados e acordos internacionais editados sobre o tema, desde 1948. Tudo o que ingressa nas áreas palestinas – água, energia elétrica, gás, sinais de rádio e televisão, internete, medicamentos, absolutamente tudo, inclusive pessoas – é controlado em check-points das forças israelenses, ao longo de muros de 8m de altura com torres de vigilância. Eu vi e passei por estes check-points. 

A violência deriva de uma postura sistemática, e reiterada ao longo de pelo menos 56 anos, por parte do Estado de Israel em descumprir resoluções da ONU e não aceitar a existência da Palestina nas áreas demarcadas em Gaza e na Cisjordânia, em não permitir a efetivação dos Acordos de Oslo de 1993, em fomentar assentamentos israelenses ilegais na Palestina, em asfixiar seus territórios e violar os direitos humanos de seu povo, de quem o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, disse, nesta segunda-feira, dia 23 de outubro: “Estamos impondo um cerco total à Gaza. Sem eletricidade, sem comida, sem água, sem gás, tudo bloqueado. Estamos lutando contra animais e agimos em conformidade”. 

Nada disso exime, relativiza, justifica as ações terroristas do Hamas, repito. Mas como não ver que se trata de uma punição coletiva não ao Hamas, mas ao povo palestino em Gaza como um todo, um massacre de civis? Como não perceber que uma tal postura somente reforça o poder e a popularidade de facções extremistas como o Hamas, em detrimento de posições mais moderadas como as do Fatah? Como esperar com sinceridade que um povo mantido sob permanente estado de sítio e bombardeio, violado em seus direitos e sua dignidade, vá submeter-se a isso passivamente? Irão apoiar grupos moderados para negociar com o opressor, ou votarão em grupos extremistas, que prometem demagogicamente destruí-los? Enquanto a atuação de Israel basear-se na asfixia, no controle total e nas ocupações ilegais de territórios que a comunidade internacional reconhece como Palestina, e não como Israel, e na violação sistemática dos direitos humanos de palestinos, não haverá segurança para ninguém na região, sequer para os cidadãos israelenses, e grupos extremistas como o Hamas ou o Jihad Islâmica seguirão crescendo, vistos pela juventude palestina como única alternativa ante as sucessivas agressões militares israelenses.  

A opinião pública mundial precisa erguer-se com determinação e denunciar a violência do Hamas, condená-la e exigir a imediata liberação de todos os reféns. Isso é incontornável. Mas precisa, também e sobretudo, denunciar a violência e a responsabilidade do Estado de Israel, que não é, ou ao menos não deveria comportar-se como, um grupo terrorista, em promover anexações ilegais de território e assassinato em massa de civis, caracterizando o que o próprio Haaretz chamou de limpeza étnica em Gaza.  

É preciso que as pessoas entendam que não há simetria possível, aqui. Se o apartheid imposto por Israel aos palestinos não exime a responsabilidade do Hamas pelos ataques do começo do mês, e não a exime, os crimes do Hamas tampouco afastam a responsabilidade de Israel pela violência de sua resposta e, principalmente, pela construção da conjuntura que torna o Hamas mais forte e capaz de ataques assassinos como o de 7 de outubro. Esta responsabilidade não é do povo palestino, é do Estado de Israel, um Estado Nacional, que deve obediência ao direito internacional, que não pode violar direitos humanos, que não tem o direito de ocupar territórios que não lhe pertencem, que não pode desprezar a vida de civis, nem desumanizá-los no discurso para facilitar seu extermínio, Israel que é maior, mais forte, mais poderoso, mais bem armado e treinado do que qualquer grupo na região. É de Israel que devem partir as medidas de distensão, negociação e bom senso, e não a repetição de práticas abjetas de contenção, deslocamento forçado e massacre de populações civis inteiras, práticas que foram usadas contra o povo judeu no passado e que hoje não devem ser utilizadas contra nenhum povo por nenhuma nação, não importam os motivos ou razões que suponha ter. 

Qualquer coisa diferente disso será a triste constatação de que a tragédia imensa do Holocausto pouco ou nada nos ensinou, e que os milhões de judeus mortos na Europa na década de 1940 tiveram sua memória apagada, e não mais representam “um grito de desespero e uma advertência” a toda a Humanidade. Ontem, o grito de desespero era judeu; hoje, é palestino. Que não cessemos jamais de ouvir esses gritos de dor e essas severas advertências.

* José Carlos Garcia é juiz federal, doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio.

** A coluna mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelo juiz federal José Carlos Garcia e pela juíza do Trabalho Ana Paula Alvarenga, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e do Conselho da Associação das Juízes e Juízas para a Democracia (AJD).

Edição: Rodrigo Durão Coelho