Coluna

Por que a representatividade no Supremo é importante?

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Aposentadoria da ministra Rosa Weber vai abrir nova vaga no Supremo Tribunal Federal em outubro - Fabio Rodrigues Pozzebom/ Agência Brasil
Democracia é um governo de iguais

Por José Carlos Garcia*

Nos últimos meses, vem-se notando uma pressão crescente pela indicação de uma mulher ou de uma pessoa afrodescendente (idealmente, uma mulher preta), ou mesmo de uma pessoa indígena, para uma das vagas abertas no Supremo Tribunal Federal (STF). Com a indicação de Cristiano Zanin para a vaga deixada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, ampliaram-se as cobranças para que o Presidente Lula indique uma mulher à vaga a ser deixada pela atual presidenta da Corte, a ministra Rosa Weber, ao menos preservando o atual número de duas mulheres. Hoje, o Supremo tem ela própria e a Ministra Carmen Lúcia, em um total de onze togas. Esta demanda está ligada ao tema da representatividade.

Algumas pessoas contestam essas cobranças, ao argumento de que o Judiciário, em especial o Supremo, não é órgão de representação, não é eleito, como os parlamentos ou os governos, e, portanto, o mais importante não é que a mais alta corte do país seja composta de forma representativa, e sim pelos melhores juristas do país, pessoas, como exige a Constituição, no artigo 101, “de notável saber jurídico e reputação ilibada”, com mais de trinta e cinco e menos de setenta anos de idade.

Creio não haver discordância no fato de que se busquem os e as melhores juristas para compor o STF, como, de resto, em tese é o que se quer em todas as estruturas do Poder Judiciário, e mesmo da Administração Pública em geral. Mas, para que se compreenda adequadamente de que tipo de representatividade estamos falando aqui, e os motivos pelos quais as críticas a esta representatividade não têm qualquer pertinência, vale a pena pensarmos juntos um pouco sobre estes conceitos. 

Em primeiro lugar, um Poder Judiciário moderno, no sentido de um juiz imparcial que julgue com justiça com base em um devido processo legal – aquele que assegura a todos os acusados o amplo direito de defesa e o contraditório, com todos os meios e recursos a eles inerentes (grosso modo, o que consta do artigo 5.º, LV, da nossa Constituição), não foi necessário para a aplicação da lei e de punições na maior parte da história humana. Para punir, basta uma autoridade com a capacidade material de punir. Um rei, ou alguém por ele delegado, que tenha o poder, físico, material e simbólico, de exercer sobre o outro a força, seja através de castigos físicos, de encarceramento, de perda de propriedade ou mesmo da morte. 

A necessidade de um juiz imparcial, de anterioridade da lei que preveja o crime para que ele possa ser punido, de que seja observado um processo previsto na lei, com contraditório e ampla defesa, sem surpresas para os acusados (falo aqui em sentido amplo, já que muitos desses princípios aplicam-se às partes tanto em processos criminais quanto em cíveis), é algo bastante recente, em termos históricos.

A rigor, isso somente passa a existir com a superação das sociedades pré-modernas, com o advento das grandes revoluções burguesas do século XVIII, especialmente a Francesa de 1789 e a Americana de 1776, a partir de quando se vão consolidando os princípios daquilo que hoje, muito particularmente após a segunda metade do século XX e a derrota do nazifascismo na II Guerra Mundial, chamamos de democracias modernas de tipo ocidental, conceito suficientemente amplo, genérico e vago para ser bastante problemático.

O fundamento destas sociedades é a de que o Poder Político deixa de ser uma dádiva entregue por Deus a um monarca, ele próprio o Soberano, e passa a ser algo constituído pelas próprias pessoas comuns: não mais monarca algum, e sim o povo passa a ser o Soberano. Todos, portanto, passam a ser “iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, com “direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”, como consta da cabeça do artigo 5.º da nossa Constituição e, com ligeiras modificações, de quase todas as Constituições democráticas do mundo. 

Desta maneira, um conceito muito básico de democracia é aquele que remete à ideia de um governo do povo e pelo povo; dito de outra forma, um governo de iguais, onde não haja diferenças de qualidades das pessoas por castas ou estamentos – todos terão os mesmos direitos e os mesmos deveres, na forma da Lei. E se ampliarmos a ideia de governo para a de Estado, ou seja, aquele conjunto de órgãos governamentais que criam, estabelecem, gerenciam, decidem políticas públicas ou tomam decisões que afetem diretamente às pessoas, sejam físicas ou jurídicas, perceberemos que não será diferente com o Judiciário: para que ele seja coerente com um regime democrático, não pode ser composto por algum tipo de estamento ou segmento mágico da população; deverá, antes, ser escolhido por algum mecanismo que selecione os melhores, os mais aptos, dentre os iguais (em direitos e deveres), pois que esta é a democracia, um governo de iguais.  

Há muitas problematizações possíveis nos conceitos abstratos que listei acima, e que não caberão neste pequeno artigo. Ainda assim, eles funcionam como princípios de nosso sistema constitucional. E todo princípio tem a finalidade de estabelecer uma medida de validade para todas as demais regras jurídicas de um sistema legal – quanto mais me aproximo da realização do princípio, mais justas e adequadas e constitucionais tendem a ser as normas e as práticas sociais deles derivadas, e quanto mais me afasto daqueles princípios, dá-se o oposto, maior tenderão a ser a injustiça, a inadequação e a potencial ilegalidade ou inconstitucionalidade das práticas consideradas. 

Basta olhar para a nossa sociedade para vermos que ela não é formada por pessoas homogêneas. Apesar da igualdade formal e abstrata de direitos, prevista na Constituição, as pessoas concretas vivem em profunda situação de diferenciação e de desigualdade. A diferenciação, se entendida como diferença, multiplicidade, pluralidade, variedade de formas de pensar, de expressar-se, de existir, de estar no mundo, de amar, de crer ou não crer, de viver, enfim, é uma das maiores riquezas que uma sociedade pode almejar construir, pois é a partir dela, e dos debates e mesmo eventuais confrontos e crises que estes embates possam gerar, que nascem o criativo, o novo, o legítimo e o futuro – uma verdade que já não escapava a Nicolau Maquiavel, nos seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, escritos por volta de 1517. A diferença, portanto, tende a potencializar direitos e democracia, e tende a ser algo geralmente positivo para o fortalecimento de uma sociedade. 

A desigualdade, ao contrário, é sempre algo negativo. Ela estabelece as diferenças como formas de subordinação, submissão ou exclusão, a partir de variados critérios. Os mais comuns são étnicos, de classe, de gênero, de orientação sexual, de orientação religiosa, dentre outros. O Brasil é dos países mais desiguais do mundo, e isso pode ser percebido ao caminhar-se nas ruas do país, encontrar inúmeros moradores de rua ou crianças trabalhando nos semáforos. Os dados estatísticos corroboram esta constatação visual.

Em 2021, o Brasil estava entre os dez países mais desiguais do planeta. Dentre 180 países, tinha a segunda maior concentração de renda (considerando a fatia do Produto Interno Bruto engolida pelo 1% mais rico), ficando atrás apenas do Catar. Esta situação foi ainda mais agravada pela pandemia de covid-19. Relatório do World Inequality Lab da Escola de Economia de Paris divulgado no fim de 2021 diz que a desigualdade social no Brasil “é marcada por níveis extremos há muito tempo”, e aponta que, aqui, os 10% mais ricos ganham quase 59% da renda nacional; que os 50% mais pobres ganham 29 vezes menos do que os 10% mais ricos; que a metade mais pobre do Brasil possui menos de 1% da riqueza nacional.

Para que as cidadãs e cidadãos brasileiros sejam julgados por iguais, por pares, é indispensável que haja algum caráter geral de representatividade nos órgãos jurisdicionais. Não uma representatividade eleitoral, ainda que haja países em que alguns órgãos do Judiciário são eleitos, como nos Estados Unidos. O célebre Dicionário de Política organizado por Norberto Bobbio indica que existem três formas fundamentais de representação política, em sentido amplo: a representação como delegação, a representação como relação de confiança e a representação “espelho” ou representatividade sociológica. 

Maurizio Cotta, autor do verbete “representação política” naquele dicionário, diz:  

“No que tange ao conteúdo da função representativa e ao papel dos representantes na bibliografia política foram longamente discutidos três modelos interpretativos alternativos. Vejamo-los: 1) a representação como relação de delegação; 2) a representação como relação de confiança; 3) a representação como "espelho" ou representatividade sociológica. 

O terceiro modelo — o da representação como espelho — diferentemente dos dois primeiros é centrado mais sobre o efeito de conjunto do que sobre o papel de cada representante. Ele concebe o organismo representativo como um microcosmos que fielmente reproduz as características do corpo político. Segundo uma outra imagem corrente poderia ser comparado a uma carta geográfica.” 

Quando se menciona representatividade, portanto, no contexto geral de órgãos de poder, especialmente nos não eleitos, como no Judiciário, a representatividade a que se alude é a de espelho, ou sociológica: o pluralismo e a democracia exigem que estes órgãos representem, de uma maneira geral, a composição do todo que é a nação, e não apenas de segmentos restritos seus. A imensa desigualdade de renda, de que falei acima, reproduz-se quando o assunto é gênero, cor da pele e orientação sexual. 

De acordo com os dados do Censo Demográfico de 2022, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 56% da população brasileira declara-se preta ou parda. Mas, quando falamos de vítimas de toda forma de violência, esse percentual é em muito superado. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, elaborado por equipe do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve um grande crescimento dos casos de feminicídio e de violência em geral contra as mulheres.

Mas mesmo esta violência, que afeta todo o gênero feminino, em todas as classes sociais, é distribuída diferentemente: 61,1% das vítimas de feminicídio são mulheres negras, de 18 a 24 anos, e 68,9% das vítimas de homicídios contra mulheres são negras, de 18 a 29 anos. 76,5% das vítimas totais, homens e mulheres, de homicídio doloso são pessoas pretas, em sua maioria homens negros, assim como 83,1% das vítimas fatais decorrentes de intervenção policial e 58,5% das vítimas de latrocínio.

Mesmo nas mortes violentas intencionais de policiais civis e militares, 67,3% dos vitimados em 2022 eram pessoas negras, mais uma face brutalmente irônica do racismo estrutural brasileiro, em que homens pretos são treinados para controlar e matar homens pretos em benefício de uma ordem econômica e financeira quase exclusivamente branca. Por outro lado, em 2017, 63,7% da população carcerária brasileira era formada por negros.

Os dados do 1º Censo do Judiciário, realizado em 2013, indica o tamanho da distorção na ocupação de posições relevantes, por pessoas pretas, no Poder Judiciário. Entre 2012 e 2013, cerca de 71% dos servidores ingressantes no Poder Judiciário, em todos os seus ramos, eram brancos, e 29%, negros – números menos representativos, para etnias afrodescendentes, do que os que ingressaram entre 1962 e 1971, quando os percentuais eram, respectivamente, de 62,4% e 37,6%. Quando olhamos os juízes e juízas, o quadro agrava-se ainda mais: cerca de 81% dos magistrados e magistradas que ingressaram nas carreiras de magistratura entre 2012 e 2013 eram brancos, e apenas 19%, negros; não havia registro de indígenas.

Mesmo a representação feminina nas instâncias do Judiciário, que notoriamente vem crescendo nas últimas décadas, não espelha nem de longe a realidade demográfica do país, e se reduz à medida em que se sobe nas estruturas das carreiras judiciais. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, no IBGE, as mulheres eram 51,1% da população brasileira em 2022. Em 2018, entretanto, as mulheres ocupavam 44% dos cargos de juiz substituto, aquele de ingresso nas carreiras; 39% dos de juízes titulares; 23% dos de desembargadores dos tribunais.

O 2º Censo está em curso ao longo do ano de 2023, mas ainda com baixo índice de adesão entre servidores e magistrados – pouco menos de 24% da população total, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Além disso, demandas historicamente invisibilizadas, como a luta pelos direitos das pessoas LGBTQIA+ e dos povos e culturas originárias do país, passaram a ter muito mais destaque no cenário político nacional, destaque que vem se materializando na eleição ou nomeação de homens e mulheres trans ou assumidamente homossexuais e de pessoas de etnias indígenas organicamente ligadas a seus povos e culturas para parlamentos e executivos. Toda esta luta por reconhecimento exige, política e moralmente, que sejam retirados os bloqueios de representação a estes imensos contingentes de pessoas nos organismos que decidem sobre suas vidas. 

Todas estas situações são impactantes, graves, urgentes e envolvem casos de inominável violência, como todo dia se vê em face de pessoas LGBTQIA+ e comunidades indígenas. Mas, talvez pela sua dimensão, inclusive demográfica, o caso mais evidente é o da discriminação contra afrodescendentes. Saber que 56% da população afirma-se preta ou parda no Censo Demográfico, confrontar esse índice com os 76,5% de vítimas negras de homicídio, com os 83,1% das vítimas fatais de violência policial, com os 67,3% de policiais negros assassinados, com os 61,1% de mulheres negras vítimas de feminicídio, com os 63,7% de pessoas negras na população carcerária, e depois perceber que apenas 19% dos juízes e juízas do país são negros não pode deixar de nos despertar indignação e perplexidade, ante a conclusão evidente: o contingente étnico majoritário de nossa população ocupa um lugar absolutamente definido no sistema de Justiça, o de vítima ou de criminoso. A este segmento não é conferida a possibilidade efetiva de fazer a diferença ao examinar os casos judiciais correspondentes, a visualizar, nas entrelinhas dos processos judiciais, as entranhas estruturais de uma sociedade violenta, racista, patriarcal.  

Sob este ponto de vista, é sem dúvida indispensável que se amplie a representatividade social. No Supremo Tribunal Federal, para muito além de homens brancos héteros cisgêneros, é sem dúvida preciso que a mais importante Corte do país espelhe minimamente a pluralidade e a diversidade do Brasil real, concreto. Mas é preciso também que esta representatividade espraie-se por todo o Judiciário e todas as instâncias de poder.

Passos importantes vêm sendo dados no sentido de sensibilização para esses temas, como a aprovação da Resolução 492 do Conselho Nacional de Justiça, de 17 de março de 2023, que torna obrigatória a adoção do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero para todos os órgãos  do Judiciário nacional – um documento atual e arrojado, que não se limita a adotar uma perspectiva restritiva de gênero, antes abordando esta temática a partir de suas múltiplas interseccionalidades com inúmeros outros marcadores sociais, como raça, classe, escolaridade, origem, etnia, deficiência, idade, identidade de gênero e sexualidade. É, talvez, dos documentos mais importantes da história de nosso Poder Judiciário. Mas ele não basta. E seguirá não bastando enquanto as instâncias de poder não refletirem o país real, tal como é composto em sua multiplicidade, heterogeneidade e variadas formas de existência. 

O surgimento recente do neofascismo entre nós, com seus dispositivos intensamente racistas, homofóbicos e misóginos, exige de nós a resposta histórica de reconhecer empoderamento aos segmentos perseguidos historicamente por este amplo e profundo arco de violências sistemáticas e estruturantes, forma única de redigir uma nova história para o Brasil.

Democracia, dizia ao início deste texto, é um governo de iguais. Se o governo manifesta-se em três poderes, independentes e harmônicos entre si, estes poderes devem representar o povo de iguais, e comprometer-se material e politicamente com a redução das desigualdades. Julgamento por pares pressupõe iguais julgando.  

Quando o hiato é grande demais, não se prejudica apenas o resultado do julgamento: deixa-se esvair o próprio conceito de Justiça. 

*José Carlos Garcia é Doutor em Direito Constitucional pela PUC-Rio, juiz federal, membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

** A coluna mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. Escrita pelo juiz federal José Carlos Garcia e pela Juíza do Trabalho Ana Paula Alvarenga, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e do Conselho da Associação das Juízes e Juízas para a Democracia (AJD).

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Geisa Marques