Coluna

Sobre as dificuldades de “colocar o pobre no orçamento”

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Ainda que se entenda que responsabilidade fiscal e austeridade são, de fato, necessárias, há uma outra pergunta que deve ser respondida: austeridade para quem?  - Rovena Rosa/Agência Brasil
A erradicação das terríveis desigualdades que marcam o Brasil é tarefa tão complexa, quanto urgente

*Claudia Maria Dadico

Um dos principais objetivos do governo do Presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva foi anunciado em vários momentos de sua campanha: “colocar o pobre no orçamento e o rico no imposto de renda”. Essa prioridade foi dita e repetida em vários momentos da campanha: comícios, eventos, reuniões, debates, entrevistas. Não é surpresa, portanto, que essa seja uma das primeiras medidas a ser enfrentada pela transição de governo. 

A bem da verdade, nenhum candidato poderia ter outra prioridade.  

Segundo dados do IBGE, do ano de 2021, o Brasil apresentou pioras significativas nos índices que medem a desigualdade na distribuição de rendimentos. Esses dados posicionam o Brasil  entre os dez países mais desiguais do mundo, sendo o único país latino-americano a figurar nessa lista, ao lado de 9 países do continente africano. 

Pesquisa realizada pelo Instituto Oxfam Brasil em parceria com o Instituto Datafolha aponta que 96% dos brasileiros acreditam que é obrigação dos governos garantir recursos para programas de transferência de renda e de assistência social, especialmente para quem mais precisa. A mesma pesquisa revela que 85% dos brasileiros concordam com o aumento de impostos de pessoas muito ricas par financiar políticas sociais. 

A urgência da meta estabelecida pelo Presidente eleito expressa-se nos indicadores econômicos e sociais dos vários institutos que se dedicam a estudar os fenômenos da desigualdade e da pobreza no Brasil e em extensa bibliografia sobre o tema. 

Como afirma Daniel Sarmento: “a desigualdade é o mais grave problema do país. Não se trata de uma desigualdade apenas econômica, ligada à concentração de renda e de riqueza, que atingem entre nós níveis absurdos e inaceitáveis. Cuida-se de desigualdade multidimensional, que se manifesta em vários outros planos, como na submissão à violência estatal – por exemplo, pobres e negros são mortos pela polícia com muito mais frequência do que os ricos e brancos -, no acesso assimétrico a serviços públicos adequados, na sub-representação política, no desprezo às identidades não hegemônicas, na exposição desproporcional a riscos e danos ambientais”. 

Além da comprovada necessidade, o estabelecimento dessa prioridade encontra eco nos mais de 60 milhões de eleitores que deram a vitória ao Presidente eleito Lula, além da percepção da quase unanimidade dos brasileiros, de que o governo deve se ocupar prioritariamente da erradicação das desigualdades, utilizando inclusive mecanismos tributários para tal objetivo, tal como revelam os dados da pesquisa Oxfam. 

No campo jurídico, a meta traçada pelo Presidente eleito não poderia ser mais acertada: o artigo 3º, III, da Constituição Federal elenca como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. 

No entanto, uma das condições para que a meta seja alcançada minimamente, desde a posse do novo governo, qual seja, a continuidade do pagamento dos benefícios do bolsa-família nos valores atuais, vem encontrando toda sorte de dificuldades. 

Isso porque o orçamento proposto pelo governo Jair Bolsonaro garantiu o pagamento dos benefícios em valores insuficientes, de apenas R$ 405,00. Para que os benefícios não sofram redução, vários caminhos são possíveis, no entanto, as propostas já apresentadas pela equipe de transição foram sendo paulatinamente recusadas, tal como aquela que previa a exclusão dos valores do benefício do teto de gastos de forma definitiva, depois pelo período de 04 anos. Agora, fala-se em exceção à regra do teto por apenas 01 ano e agora, começa-se a cogitar, até mesmo em solução que não implique em modificação do texto da Constituição.  

O impasse entre o Congresso e a equipe de transição, causado por uma atitude irresponsável do atual governo, nos obriga a uma reflexão: apesar de todas as evidências estatísticas, do apoio da quase unanimidade dos brasileiros e da força normativa da Constituição Federal a respaldar a medida, porque é tão difícil “colocar o pobre no orçamento”? 

Inicialmente, é preciso relembrar, com Celso Furtado, que o Brasil foi constituído sob o modelo primário-exportador, em que a exploração extensiva de recursos naturais e humanos abundantes perdurou por longos períodos. Tudo isso contribuiu para que a elevada concentração de renda fosse uma das marcas constitutivas do sistema econômico brasileiro. Somos um país constituído sob o signo da escravidão e do genocídio indígena, em que a “dita acumulação primitiva do capital”, cujo controle dos trabalhadores pressupõe o uso da violência, não se revela como mera etapa de desenvolvimento do modo de produção capitalista, mas, ao contrário, resiste ainda hoje como dura realidade em vastos territórios, sob o manto da democracia. 

Além disso, não se pode ignorar que o Brasil se encontra inserido na nova ordem mundial ditada pelo neoliberalismo: um modo de acumulação marcado pela massiva financeirização das economias globais que tornou obsoletas as relações de trabalho tradicionais e jogou massas de trabalhadores na precarização, no abandono e na indigência. 

O que parece chocante e perverso do ponto de vista ético – manter pessoas em situação de pobreza ou de extrema pobreza, sem condições mínimas de dignidade humana – parece não constranger vários atores da arena política, notadamente aqueles que criam embaraços às agendas de redistribuição de renda como ação programática ou como cálculo de ocasião. 

Há muitas críticas à inevitabilidade das medidas de austeridade. Mas, ainda que se entenda que responsabilidade fiscal e austeridade são, de fato, necessárias, há uma outra pergunta que deve ser respondida: austeridade para quem? 

Austeridade como “sacrifício compartilhado”, nos dizeres de Judith Butler, deveria envolver renúncias por parte daqueles que têm sido beneficiados há séculos pelos fluxos de concentração de renda que posicionam o Brasil no ranking das nações mais desiguais do mundo. No entanto, os sacrifícios da austeridade têm sido impostos sempre aos mesmos, sob a forma de perda de empregos, desalento, terceirização, cortes, reengenharias, reduções de benefícios, cortes na saúde, na farmácia popular e na merenda escolar, na educação pública. 

A primeira batalha do governo recém-eleito é simbólica das mazelas de que padece o Brasil, país estruturalmente desigual, cuja certidão de nascimento é manchada, historicamente, pelo sangue de milhões de pessoas escravizadas e exterminadas em função de um sistema de acumulação de riquezas que se concentraram em tão poucas mãos.  

Tudo isso mostra que há, de fato, muitas dificuldades em se “colocar o pobre no orçamento” que não decorrem tão somente da má vontade de adversários políticos. Trata-se de um ponto nevrálgico, revelador das concepções do papel do Estado, de justiça social e do lugar do Brasil na ordem mundial. 

Como se vê, as dificuldades são muitas, mas não invencíveis. É preciso compreendê-las, para conseguir superá-las. A erradicação das terríveis desigualdades que marcam o Brasil é tarefa tão complexa, quanto urgente e necessária. Nessa direção é que devem se alinhar todas as forças que prezam pelos valores democráticos, constitucionais e civilizatórios. 

*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD). 

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Glauco Faria