Coluna

Quem tem medo das urnas eletrônicas?

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As urnas funcionam de forma isolada, ou seja, a única conexão possível durante o processo de votação é o cabo de energia - Evaristo Sa / AFP
Estamos sendo obrigados a repetir que as urnas eletrônicas são seguras, confiáveis e auditáveis

*Claudia Maria Dadico

A pandemia de desinformação que assola o mundo e o Brasil torna obrigatória a repetição do óbvio, muitas e muitas vezes.

Estamos cansados, é verdade, mas não nos é permitido parar de repetir que a terra é redonda, que não há tratamento precoce para a covid-19, que as vacinas para a covid-19 não transmitem HIV e que tampouco são feitas de células de fetos abortados.

Agora, estamos sendo obrigados a repetir, à exaustão, que as urnas eletrônicas são seguras, confiáveis e auditáveis.

Poderíamos, como sociedade, estar noutro estágio, engajados na reflexão coletiva em torno de um grande projeto nacional e nas prioridades para a execução desse projeto.

Poderíamos ter os olhos voltados para o futuro, para o País que queremos deixar para as próximas gerações, em meio às ameaças da crise climática e do esgotamento dos recursos naturais acelerado pela razão neoliberal.

Também poderíamos estar pensando, coletivamente, no aprimoramento da democracia brasileira e na efetividade substancial da noção de cidadania, entendida não apenas como um exercício mecânico e meramente formal do direito ao voto, mas sim como conceito indissociável do pleno exercício das liberdades – de opinião, de expressão, de convicções filosóficas e políticas, de religião, de manifestação, de associação e de reunião -, da superação das desigualdades, com pleno acesso ao conjunto de direitos sociais que perfazem o direito à existência digna - alimentação, educação, saúde, segurança, cultura, lazer e, na centralidade desse plexo de direitos, o direito ao trabalho não precarizado. Um projeto de país que não permita a normalização da fome de 33 milhões de compatriotas e o vertiginoso aumento da população em situação de rua.

No entanto, nos vemos obrigados a revisitar e repetir o óbvio.

Apesar de cansados, não podemos nos furtar às nossas obrigações cívicas. É preciso (re)dizer aquilo que deve ser dito e (re)dito.

O sistema eletrônico de votação, adotado pelo Tribunal Superior Eleitoral, é fruto de evolução que deita raízes na própria criação da Justiça Eleitoral, em 1932. Desde então se sentiu a necessidade de diminuir a possibilidade de intervenção humana nas várias etapas do processo eleitoral, com o objetivo de eliminar fraudes.

O antigo processo de votação manual, diante da grande margem de intervenção humana em todas as suas etapas, possibilitava todo tipo de fraudes, desde a preparação das urnas de lona, que já podiam vir com votos em seu interior, até nos momentos da própria votação, com a apresentação de documentos falsos de identificação do eleitor, estendendo-se até os momentos do transporte das urnas de lona ao local da apuração e apuração, com a inserção de dados nos espaços não preenchidos das cédulas de papel.

Com a finalidade de reduzir essas fraudes e aumentar a credibilidade do processo, a Justiça Eleitoral veio implementando progressivamente soluções tecnológicas. Assim, em 1986 efetuou o recadastramento eletrônicos de mais de 70 milhões de eleitores. A utilização de um computador central para totalização das eleições gerais veio em 1994.

O ano de 1995 foi um marco nesse processo, com a apresentação de um protótipo de urna eletrônica por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais e do Centro Técnico Aeroespacial – CTA, vinculado à Força Aérea Brasileira. Sim, é isso mesmo, o protótipo de urna eletrônica foi desenvolvido com a participação ativa de militares da aeronáutica. O desenvolvimento do protótipo por uma comissão de juristas e pesquisadores resultou na utilização das urnas eletrônicas, pela primeira vez em 1996, quando 32 milhões de eleitores votaram em 77.969 urnas em todo território nacional.

Desde 1996, as urnas eletrônicas têm sido utilizadas e aperfeiçoadas com ampla colaboração da sociedade civil. Veja-se, por exemplo, os processos de abertura do código-fonte, em que respeitadas instituições de ensino e pesquisa auxiliam no aperfeiçoamento tecnológico da ferramenta. Nesse sentido, é importante destacar a participação, neste ano de 2022, de três das mais respeitadas universidades brasileiras – a Universidade de São Paulo (USP), a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) que realizaram estudos aprofundados nos códigos-fonte do sistema eletrônico de votação e no modelo de urnas eletrônicas de 2020, que será utilizado pela primeira vez nas eleições de 2022. Todas estas instituições foram unânimes e categóricas no sentido de atestar a segurança e a auditabilidade dos sistemas e dos equipamentos que registrarão os votos das brasileiras e brasileiros no próximo domingo.

A segurança das urnas eletrônicas é reforçada pelo emprego de tecnologias de criptografia, assinatura digital e resumos digitais. Os programas (softwares) que funcionam nas urnas eletrônicas são dotados de cadeia de confiança, ou seja, somente programas desenvolvidos pelo próprio TSE podem ser executados nas urnas eletrônicas. Ao final da votação, os boletins de urnas (BU) são assinados de forma digital e são enviados por um canal exclusivo aos computadores do TSE nos quais serão feitas as totalizações. Esse canal possui elevados níveis de criptografia e múltiplas barreiras de segurança.

As urnas funcionam de forma isolada, ou seja, a única conexão possível durante o processo de votação é o cabo de energia. Não são possíveis conexões a uma rede (internet) e nem qualquer outra conexão com ou sem fio. Em caso de queda de energia, as urnas são dotadas de baterias com duração de 10 horas.

A urnas modelo 2020 contam com um processador 18 vezes mais rápido que os processadores do modelo anterior, de 2015.

As urnas eletrônicas também são sustentáveis, já que 99% dos componentes são reciclados quando de seu descarte.

Além da já mencionada inspeção do código-fonte, o processo eleitoral passa por uma série de auditorias: antes, durante e depois das eleições.

Antes das eleições são realizados testes públicos de segurança, nos quais qualquer brasileiro pode apresentar um plano de ataque cibernético aos sistemas eleitorais envolvidos na geração de mídias, votação, apuração, transmissão e recebimento de arquivos. O teste é considerado finalizado apenas quando eventuais vulnerabilidades são corrigidas, momento em que o TSE convida os envolvidos para testar novamente o sistema e atestar a correção das falhas.

Durante as eleições são realizadas outras auditorias, tais como os testes de integridade – a chamada “votação paralela”, a verificação de autenticidade e integridade dos sistemas instalados nas urnas, a impressão da zerézima. A presença de missões de observação eleitoral e de convidados internacionais também é considerada uma modalidade de auditoria do processo eleitoral.

As missões de observação eleitoral possuem caráter independente, com autonomia dos observadores que a integram e são consideradas um fator de “fortalecimento da democracia no mundo”, como destacou o assessor-chefe de assuntos internacionais do TSE, Gilberto Scandiucci Filho.

Neste ano, além da missão da Organização dos Estados Americanos (OEA) que já executou observação eleitoral nos pleitos de 2018 e de 2020, o TSE também credenciou as missões do Parlamento do Mercosul (Parlasul), da Rede Eleitoral da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), Carter Center, International Foundation for Electoral Systems (IFES), da Unión Interamericana de Organismos Electorales (UNIORE) e da Rede Mundial de Justiça Eleitoral. Também participarão das eleições de 2022 convidados internacionais do TSE: autoridades eleitorais, especialistas no tema e mesmo ex-chefes de Estado para reforçar mecanismos de cooperação e de troca de informações. Dentre as autoridades convidadas estão integrantes do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (Idea Internacional): a ex-presidente da Costa Rica Laura Chinchilla, a ex-presidente da Colômbia Marta Lucía Ramírez, a senadora uruguaia Mónica Xavier, o secretário-geral Kevin Casas-Zamora e o diretor regional para América Latina, Daniel Zovatto.

Por sugestão da Missão de Observação da OEA, o TSE pela primeira vez abriu edital para credenciamento de Missões de Observação Eleitoral nacionais. Dentre as entidades credenciadas como MOE nacional estão a ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia, a AJD – Associação Juízes para a Democracia, a ANADEP – Associação Nacional de Defensores Públicos, o MCCE – Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral, a Universidade de São Paulo – USP, a UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a Transparência Eleitoral Brasil e a Faculdade de Direito de Vitória.

Mas não é só.

Há ainda auditorias após a votação: verificação de relatórios e cópias de arquivos de sistemas, recontagem de votos por meio do registro digital do voto, contabilização dos votos por meio da comparação dos boletins de urna impressos pelas urnas eletrônicas, emissão dos boletins de urna com assinatura dos mesários e fiscais presentes antes do envio do registro para totalização, a impressão de boletins de urna mediante códigos QR, possibilitando cópia e gravação em celulares e tablets e, se necessário, verificações extraordinárias.

O que se verifica, de todas essas informações, é que o sistema eletrônico de votação não é obra apenas do Tribunal Superior Eleitoral, mas representa, em verdade, o produto de uma longa evolução na qual várias forças criativas da sociedade brasileira e internacional atuaram em sinergia, com a finalidade de dotar o Brasil de um dos mais ágeis, confiáveis e seguros sistemas de votação do mundo. As urnas eletrônicas são um patrimônio do Brasil.

É certo que, como toda criação humana, o sistema eletrônico de votação brasileiro comporta aprimoramentos. Todavia, essa robusta conjugação de tecnologia, expertise e dedicação, em seu atual estágio de desenvolvimento, confere à cidadania brasileira uma potente arma contra qualquer tentativa de ruptura democrática.

Diante disso, não é demais dizer e repetir: a terra é redonda; as vacinas são eficazes para a prevenção das formas graves de doenças; o homem já chegou à Lua e as urnas eletrônicas são confiáveis, seguras e auditáveis.

*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD). 

**A coluna Avesso do Direito mostra uma visão mais ampla do Direito e suas relações com a vida, a democracia e a pluralidade. É escrita pelos juízes federais José Carlos Garcia e Cláudia Maria Dadico, ambos membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Leia outros textos.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo