Coluna

Enfrentar o discurso de ódio na América do Sul é salvar a democracia

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Multidão protesta na Argentina depois da tentativa de assassinato de Cristina Kirchner; a vice-presidenta da Argentina é uma das vítimas da violência política na América do Sul - JUAN MABROMATA / AFP
Eleições pacíficas parecem estar cada vez mais distantes da realidade que se apresenta no continente

09/07/2022: o guarda municipal e tesoureiro do PT em Foz do Iguaçu, Marcelo Arruda, é assassinado a tiros na festa em que comemorava seu aniversário por um simpatizante do Presidente Jair Bolsonaro, Jorge Guaranho. O Ministério Público do Paraná ofereceu denúncia em face de Guaranho por homicídio duplamente qualificado, cuja conduta foi desencadeada por “preferência político partidária antagônica”, segundo o órgão acusatório. A denúncia foi aceita pelo juiz da 3ª Vara Criminal de Foz do Iguaçu que determinou a prisão de Guaranho no Complexo Médico Penal em Pinhais.

17/07/2022: o vigilante Claudinei Coco Esquarcini, de 44 anos, responsável pela vigilância das câmeras de segurança no local em que ocorreu o assassinato de Marcelo Arruda é encontrado morto. A principal suspeita é que tenha tirado a própria vida. O Ministério Público do Paraná afirmou não ser possível, com os elementos colhidos até então, afirmar alguma relação com a morte de Marcelo Arruda.

25/08/2022: A comitiva presidencial do Presidente da Colômbia Gustavo Petro é atacada com armas de fogo em uma falsa blitz policial quando se dirigia à região fronteiriça com a Venezuela. Não houve feridos e nem maiores danos às viaturas por serem blindadas. 26/08/2022: quatro apoiadores do candidato Marcelo Freixo foram espancados durante um ato no município de Campos dos Goytacazes. Ao estacionar o carro, o grupo foi cercado por sete homens armados que iniciaram agressões físicas e verbais. Um dos apoiadores de Freixo deverá ser submetido a cirurgia no maxilar em razão das agressões sofridas. Os demais conseguiram fugir.

01/09/2022: faltavam três dias para a votação do plebiscito da nova Constituição do Chile, ondas de tensão e violência tomaram as ruas da capital do país. Nesse contexto, o irmão do presidente, Gabriel Boric, foi agredido por um grupo opositor ao atual governo chileno. Simón Boric foi espancado na frente da Universidade do Chile e conseguiu escapar, com apenas lesões leves. O secretário-geral da Presidência, Giorgio Jackson, definiu o caso como "gravíssimo". Noite de 01/09/2022: um homem aponta um revólver calibre 38 para a cabeça da vice-presidente da Argentina Cristina Kirchner. Ele chegou a disparar o revólver com 5 balas que, por alguma razão, falhou na hora do tiro. Cristina não se feriu. O homem, um brasileiro que vive na Argentina desde 1993, é Fernando Andrés Sabag Montiel, que ostenta tatuagens de símbolos neonazistas em seu corpo, foi imediatamente detido.

No curto período de dois meses, fatos graves inseridos em contextos de violência política na América do Sul deixam um saldo altamente preocupante para a região. Ainda que não seja possível traçar com segurança uma linha comum entre todos esses eventos, uma circunstância os une: o discurso de ódio político que circunda tais ocorrências. Na Colômbia, o Presidente eleito Gustavo Petro tem sido alvo de ataques por seus opositores que têm se utilizado de seu passado como guerrilheiro do grupo M-19, quando tinha pouco mais de 20 anos, para desqualificá-lo como líder político que busca pacificar o país. Francia Marquez, primeira mulher negra eleita vice-presidenta da Colômbia, tem sido alvo de uma série de repugnantes ataques racistas e misóginos.

Na Argentina, o ex-juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos e ex-juiz da Suprema Corte Argentina, Eugenio Raúl Zaffaroni, tem denunciado com vigor o processo de "Lawfare" direcionado contra Cristina Kirchner. Segundo Zaffaroni, "o lawfare está funcionando em duas velocidades sincronizadas. Agora, se encerra e protege-se ao (ex-Presidente Mauricio) Macri e, ao mesmo tempo, intenta-se proscrever a vice-presidenta para as eleições do ano que vem. Setores judiciais querem obter uma condenação rápida contra ela, como todo um escândalo midiático. E logo, obter uma condenação firme para que a justiça eleitoral diga que não pode apresentar-se para nenhum cargo". A necessidade de uma ampla repercussão nos meios de comunicação, como exige a configuração do fenômeno do "lawfare", mobiliza discursos de ódio que podem trazer amargas consequências. Dentre elas, a conversão de discursos em atos e condutas que podem, efetivamente, configurar crimes de ódio motivados por razões políticas em intersecção com outros critérios de escolha da vítima, dentre os quais, a violência de gênero.

No contexto brasileiro, o assassinato de Marcelo Arruda acendeu um gravíssimo sinal de alerta na preocupante conjuntura eleitoral brasileira. Fatos preocupantes já haviam sido registrados recentemente, tais como a utilização de um drone para jogar veneno e o arremesso de uma bomba de fabricação caseira em eventos de pré-campanha.

As preocupações são ainda maiores diante da notícia de que o número de armas registradas nas mãos de caçadores, atiradores e colecionadores – os chamados CACs – atingiu a marca de 1 milhão, efeito direto da política de flexibilização e facilitação do acesso a armamentos adotada pelo Presidente Jair Bolsonaro. Nesse aspecto, muitos candidatos têm adotado em suas campanhas eleitorais o discurso de glorificação do uso de armamentos como suposta "defesa da liberdade". Outros têm insinuado que os Colecionadores, Atiradores e Caçadores, beneficiados pela política armamentista do governo federal, poderiam sair em defesa do Presidente como "soldados", prontos para "lutar pela liberdade e combater o comunismo". A mensagem de incitação à violência contra os adversários políticos, transformados em "inimigos" é evidente, resgatando a tradição nazifascista de eleger dissidentes como bodes expiatórios como técnica de mobilização de afetos circulantes numa sociedade em crise.

Diante do grave contexto de violência política instalado nos países da América do Sul, dentre os quais, a conjuntura brasileira é especialmente preocupante em razão da proximidade das eleições, organismos internacionais têm chamado a atenção para as obrigações do Estado no sentido de "criar um ambiente propício para a liberdade de expressão e o direito à informação" como "meio fundamental para promover um debate sólido e aberto sobre assuntos de interesse público". Essas recomendações estão contidas na Declaração Conjunta das Nações Unidas sobre proteção e promoção à liberdade de opinião e expressão, firmada juntamente com representantes da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Comissão Africana de Direitos Humanos e dos Povos (CADHP).

O referido documento reconhece que "líderes políticos e pessoas que exercem a função pública desempenham um papel importante na configuração da agenda dos meios de comunicação, no debate público e na opinião, e que, em consequência, o comportamento e atitudes éticas por sua parte, inclusive em suas comunicações públicas, são essenciais para promover o Estado de Direito, a proteção dos direitos humanos, a liberdade dos meios de comunicação e o entendimento cultural, e para garantir a confiança do público no sistema democrático de governo". A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por sua vez, já expressou que "mesmo quando um discurso oficial pode não ter autorizado, instruído ou incitado diretamente a violência, muitas vezes pode colocar potenciais vítimas de violência em uma situação de maior vulnerabilidade ante o Estado e a determinados setores da sociedade. Nesse sentido, recorda-se que as pessoas que exercem liderança política estão sujeitas a certas limitações de suas manifestações além das aplicáveis a outros indivíduos, devido, por exemplo, às altas investiduras de suas posições e ao amplo alcance, poder e influência de suas expressões na esfera pública. Em relação a isso, reitera-se que, à luz das obrigações do Estado de respeitar, garantir e promover os direitos humanos, particularmente as pessoas que exercem funções públicas estão em uma posição de especial de garantia dos direitos humanos; e têm o dever de garantir que, quando exercem sua liberdade de expressão, não estão ignorando esses direitos".

Tais parâmetros internacionais de proteção aos direitos humanos de livre expressão política sem violências, discriminações e ódios, de exercício do direito ao voto, em eleições pacíficas e seguras parecem estar cada vez mais distantes da dura realidade que se apresenta nos países da América do Sul e no Brasil em particular.

Os discursos da mais alta autoridade do Poder Executivo nacional situam-se em orientação oposta às recomendações dos órgãos internacionais. Recentemente, em entrevista concedida ao Jornal Nacional, o Presidente Jair Bolsonaro impôs condições à aceitação do resultado das eleições. Em Convenção do Partido Liberal, em tom de ultimato, o Presidente convocou seus apoiadores a irem às ruas "pela última vez" e atacou ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), chamando-os de "surdos de capa preta". Diante de mais de 40 embaixadores, o Presidente mais uma vez atacou ministros do STF e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e desacreditou as urnas eletrônicas. Em debate promovido por um pool de órgãos de imprensa, o presidente desferiu ofensas a duas mulheres – à jornalista Vera Magalhães e à candidata e Senadora Simone Tebet – reiterando manifestações anteriores de discriminação e ódio em face de mulheres da cena política e no jornalismo.

Os fatos acima relatados são apenas uma pequena amostra da forma como os discursos de ódio sob suas mais diversas formas: ódio por razões de raça, gênero, origem regional, orientação política, glorificação de torturadores e do uso de armamentos, fabricação de "fake news". Esses discursos – que claramente não podem ser qualificados como manifestações de liberdade de expressão – para além do já nefasto efeito silenciador das minorias políticas, estão fomentando crimes, deixando atrás de si um rastro de assassinatos, suicídios, espancamentos, tentativas de assassinato e emboscadas, sem falar na permanência do "lawfare" como técnica da guerra híbrida contra lideranças.

Deter o avanço do ódio na América do Sul, como tarefa urgente, significa salvar a própria ideia de democracia, pluralismo e diversidade no continente.

*Cláudia Maria Dadico é Doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS, juíza federal, integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato

Edição: Thalita Pires