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Como nos tornamos isso daí?

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O governador do Rio, apelidado de "Auschwitzel", criou uma política oficial de extermínio das populações pobres
O governador do Rio, apelidado de "Auschwitzel", criou uma política oficial de extermínio das populações pobres - Tomaz Silva/Agência Brasil
Quanto ainda teremos que sofrer para sabermos que já sofremos demais?

O goleiro Bruno, ex-Flamengo, foi condenado por homicídio triplamente qualificado e ocultação de cadáver. Tomou 20 anos e nove meses de prisão. Como o Brasil inteiro sabe, a vítima foi sua ex-namorada. Ela teve o corpo cortado em pedaços e jogado aos cães. Com direito ao regime semiaberto, Bruno foi contratado pelo Poços de Caldas (MG). Foi acolhido com aplausos e pedidos de selfies. Como alguém, envolvido em assassinato e esquartejamento, é recebido como ídolo? Quem são essas pessoas? Somos nós? Se somos, como nos transformamos nisso?

No Pará, detentas do presídio de Ananindeua são colocadas sobre formigueiros vestindo apenas calcinha e sutiã. No mesmo Estado, agentes federais são acusados de tortura sistemática, incluindo empalamento. O ministro da justiça falou em “mal entendido”. O presidente tachou tudo como “besteira”. Como nos tornamos isso daí?

Um funcionário subalterno do Estado de Exceção atreve-se a chamar de “sórdida” e “mentirosa” a primeira-dama das artes cênicas do Brasil, uma mulher de 89 anos. Ao contrário do que aconteceria em qualquer nação civilizada, não é posto porta à fora a pontapés. De onde veio essa nossa leniência? Quando toleramos antes coisa tão torpe assim?

A batalha de uma menina de 16 anos pela sobrevivência do planeta aqui foi interpretada como “falta de homem” e “histeria”. O autor dessa indecência acabou punido, mas na eterna noite dos mortos-vivos das redes sociais, o imbecil ganhou a defesa apaixonada de seus iguais. De onde surgiu tanta atrocidade?

No Rio, em 180 localidades da capital e da periferia, as milícias não se contentam mais apenas com a exploração clandestina do transporte, segurança, da construção civil, da venda de gás, energia e da TV a cabo. Estão firmes e fortes no narcotráfico. São as narcomilícias. Como deixamos isso acontecer?

Ágatha Félix, de 8 anos, tornou-se a quinta criança morta por bala perdida no Rio em 2019. Antes, caíram Kauan Peixoto, de 12, Kauan Rosário, de 11, Kauê Ribeiro, de 12, e Jenifer Cilene, de 11. Dezesseis crianças já foram baleadas no Rio em 2019. O que é isso? Como aprendemos a aceitar o horror como se fosse inevitável?

No Rio, aliás, matar tornou-se política pública. É exercida do alto de helicópteros que, em rasantes, atuam no controle populacional dos mais pobres. Apesar do espanto e dos protestos, ela prossegue. De positivo, apenas um apelido definitivo dado ao governador: Auschwitzel. É pouco, praticamente nada.

Caso único na história republicana, temos ministros escolhidos para suas pastas não pela afinidade com o tema, mas pelo ódio que nutrem por ele. É assim no meio ambiente, na educação, na economia, nas relações exteriores, na justiça, nos direitos humanos... Também se reproduz um escalão abaixo, como sucede nas áreas de cultura, comunicação, política indígena, agricultura familiar...

Por sinal, com as revelações das tripas da Lava Jato, em qualquer país que se desse ao respeito, seus protagonistas já teriam renunciado meses atrás. Aqui não. Apegam-se aos cargos como cracas aderem ao casco das embarcações. Como se fossem sua propriedade privada e inviolável. Como se decência fosse uma palavra de uma língua morta. E não questionamos a naturalização do absurdo.

Enquanto isso, rara é a semana em que o personagem principal dessa tragédia não comete algum ato passível de ser descrito como crime de responsabilidade. As instituições, piedosamente, fazem que não veem. Resta saber quando também deixaremos de apenas contemplar o abismo. Resta saber, parodiando o poeta Bob Dylan, quanto ainda teremos que sofrer para sabermos que já sofremos demais.

Edição: João Paulo Soares