Rio de Janeiro

MORADIA

Retratos da crise: histórias de moradores de prédio desocupado em Niterói (RJ)

Relatos revelam atuais condições de vida da classe trabalhadora; Prédio da Caixa foi desocupado na última sexta (7)

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Edifício com 392 apartamentos e 13 lojas abrigava proprietários que moravam no local há mais de 40 anos, inquilinos e ocupantes
Edifício com 392 apartamentos e 13 lojas abrigava proprietários que moravam no local há mais de 40 anos, inquilinos e ocupantes - Foto: Jaqueline Deister

“Eu me senti pior do que um animal porque eles [policiais] têm animal em casa. Eu falei: ‘nem fomos animalizados, porque animais vocês têm em casa e tratam bem, tem vacina, tem pet shop’. Eu me senti brutalizado, coisificado, fomos desumanizados”. O relato que abre esta reportagem é do morador do edifício Nossa Senhora da Conceição Esdras Marcio, de 41 anos. Na última sexta-feira (7) o prédio, localizado no centro de Niterói, foi alvo do cumprimento de uma ação judicial de desapropriação movida pelo Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPE-RJ) devido as “precárias condições de segurança e habitação”. 

Marcio é uma das 50 pessoas que permaneceu no edifício até o fim do prazo da desocupação. Nascido em Salvador, na Bahia, o estudante saiu da sua terra natal em direção ao Rio de Janeiro em 2010 em busca de emprego e melhores condições de vida. O soteropolitano é formado em Comunicação Social, está concluindo uma pós-graduação em História além de mais duas graduações, em Direito e Teologia e é um dos ocupantes do conhecido Prédio da Caixa. 

Com o agravamento da crise no estado do Rio e o fechamento de postos de trabalho, o estudante, que atuou desde o ramo do comércio até à indústria naval, passou a não mais conseguir um emprego fixo e foi parar no campo da informalidade, vendendo cookies e livros para sobreviver. Com o dinheiro escasso e impossibilitado de arcar com um aluguel, ele encontrou no número 327 da Avenida Ernani Amaral Peixoto uma opção para não ficar na rua. 

“Eu fui pra lá porque estava sem emprego. Quando eu passei pra pós, eu não estava com bolsa, o instituto que eu faço a pesquisa não emite bolsas de incentivo, permanência ou pesquisa. Como eu não estava gerando renda, ali [Prédio da Caixa] era uma possibilidade. Enquanto eu vendia os biscoitos e livros, que eu estava vendendo bastante, consegui ficar um tempo fora, mas eu fui para lá pela questão do desemprego”, relata Marcio que desde 2014 mora como ocupante no edifício. 

Segundo ele, o local se tornou uma opção de moradia para muitas pessoas de baixa renda por estar localizado numa região de fácil acesso aos principais pontos da cidade de Niterói e por ser um lugar onde com frequência ocorre trabalho social que fornece comida para a população vulnerável.  

Esdras Marcio é uma das 50 pessoas que permaneceu no edifício até o fim do prazo da desocupação

O baiano Esdras Marcio de 41 anos é estudante de pós-graduação e morador do Prédio da Caixa/ Foto: Jaqueline Deister

 

“Ali no prédio é bom porque mesmo que você não tenha nada, você consegue se alimentar. Existem as entidades religiosas e também não religiosas que distribuem comida na rua de segunda à sábado. Domingo tem uma só que vai. Você tem essa garantia de pelo menos conseguir R$2 e comer no restaurante popular e de noite comer por ali mesmo”, conta. 

Assim como Marcio, boa parte dos ocupantes do edifício Nossa Senhora da Conceição encontraram nos apartamentos abandonados do prédio uma opção de moradia e a oportunidade de deixar as ruas, mesmo diante da má conservação do local, principalmente dos quatro primeiros andares do prédio onde a falta de limpeza e manutenção se tornam mais evidentes.  

O sonho da casa própria 

Lindalva Borges é aposentada e há quatro anos mora no edifício com a filha Lorena Gaia que no dia 26 de maio foi eleita a nova síndica do prédio, após uma assembleia que destituiu a antiga administradora que estava desde novembro de 2018 na função.  

A paraense de 62 anos vendeu a sua casa em Belém e mudou-se para Niterói para acompanhar a filha que estava ingressando na universidade em 2015.  Ela conta que foi parar no edifício primeiro como inquilina, pois foi o único apartamento que visitou e não exigia fiador para alugar. 

“Achei um apartamento no Prédio da Caixa, no sétimo andar e a moça não pedia fiador, a proprietária. Isso foi em 2015. Era no 723. Quando eu entrei [no prédio] eu senti um choque, mas tudo bem. Pegamos o elevador ‘capenga’, mas chegamos lá. O sétimo andar estava muito bonito, tudo limpo, encerado, o apartamento arrumadinho, pronto para morar. Ela [proprietária] terminou a obra, me pediu dois meses de depósito, eu paguei logo três meses”, relata.  

Com o fim do contrato a aposentada resolveu utilizar as economias para comprar um imóvel e fugir do aluguel. Após conversar com o então síndico descobriu que havia um apartamento conjugado necessitando de reformas para vender no 1101 por R$30 mil. Lindalva adquiriu o imóvel numa transação efetuada pelo próprio síndico que emitiu uma declaratória de posse para a aposentada. Posteriormente a aposentada também comprou uma sala, anexa ao apartamento pelo valor de R$15 mil. 

A moradora afirma que está com o condomínio, no valor de R$240, pago até o mês de agosto. O carnê do Imposto Territorial e Predial Urbano (IPTU) apresentado à reportagem confirma também que a proprietária está com a prestação, no valor de R$ 50,13, referente ao mês de junho, quitada.  

Lindalva Borges é aposentada. A paraense,  que é proprietária de imóvel no edifício da Caixa, está com condomínio e IPTU pagos em dia/ Foto: Jaqueline Deister

Depois do despejo 

Tanto Marcio, quanto Lindalva seguem sem poder pegar os seus pertences no edifício. Roupas, documentos, livros e móveis estão presos no prédio. Moradores afirmam que animais de estimação também ficaram presos no local. A entrada do edifício foi concretada na tarde de sexta-feira (7) impedindo a circulação dos moradores. Ambos estão desalojados até o momento e aguardam o encaminhamento do aluguel social pela prefeitura.  

A aposentada e a sua filha foram acolhidas na casa de um amigo, já Marcio ficou abrigado na quadra da APAE junto com outras 50 pessoas que ficaram desabrigadas. Na segunda-feira (10) os desalojados foram transferidos para a quadra da Unidade Municipal de Educação Infantil Rosalda Paim, na Rua Ismael Coutinho, no centro de Niterói. 

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), junto a Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Nitérói pelos mandatos dos vereadores Renatinho e Paulo Eduardo Gomes, ambos do Psol, realizaram uma campanha para arrecadação de alimentos e roupas para as pessoas do prédio. Os mandatos têm atuado também no diálogo dos moradores junto à prefeitura, além de apoiar o projeto de moradia popular mista apresentado pela nova gestão. 

De problema à solução 

O Prédio da Caixa possui uma das configurações mais complexas com relação à moradia. No edifício com 392 apartamentos e 13 lojas residem proprietários que moram no local há mais de 40 anos, inquilinos e ocupantes. Há um conflito de interesses no local que já foi alvo de operação policial cinco anos atrás, quando a Polícia Civil entrou no edifício e pôs fim a prostituição que ocorria nos quatro primeiros andares do prédio. 

O abandono das últimas administrações fica evidente para quem entra no prédio. Nos primeiros andares o recolhimento de lixo não é feito com frequência e a presença de insetos acaba sendo constante.  

De acordo com a nova síndica do prédio, Lorena Gaia, a intenção da nova administração é implementar um projeto de consciência ambiental junto aos moradores para evitar a ocorrência de situações insalubres no local.  

Lorena está a frente de um projeto voltado para a habitação mista que foi desenvolvido em conjunto com os moradores. A intenção da nova gestão é criar uma iniciativa que conte com o apoio do poder público para que os apartamentos abandonados tornem-se habitação de interesse social para pessoas de baixa renda. 

“A gente tem que trabalhar ideias na possibilidade de uma parceria com o poder público, pra manter ali uma habitação social. Parte do prédio com o objetivo de habitação social e a outra com proprietários e, assim, poder manter essas famílias lá porque são famílias que precisam de lares. A gente não quer que o prédio continue um problema, queremos que o prédio se torne uma solução pro centro de Niterói e uma referência que dá sim para manter as pessoas de forma digna com uma parceria com o poder público”, explica. 

Para Guilherme Basto Lima, doutorando em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a moradia mista pode ser uma saída para os moradores do Prédio da Caixa e também para a prefeitura que possui um alto déficit de moradia no município. Segundo o Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (Nephu) da Universidade Federal Fluminense (UFF), há cerca de 40 mil moradias em assentamentos precários na cidade.   

“A própria cidade de Niterói tem um plano de habitação de  interesse social. Esse plano não foi colocado em operação, foi feito um diagnóstico, mas você tem a partir de vários instrumentos jurídicos e legais como operacionalizar a introdução dessa solução de moradia que seria mista e inovadora em Niterói. Só em São Paulo, no centro, têm vários movimentos de moradia que recuperaram prédios com esse arranjo da moradia mista de interesse social”, destaca.  

Lorena apresentou o projeto também numa audiência pública promovida pela bancada do Psol sobre a situação do prédio realizada no dia 4 de junho na Câmara Municipal de Niterói. Na ocasião, foi decidido que ocorreria uma visita técnica em caráter emergencial, com especialistas do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (CREA) e técnicos do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ) para que os especialistas elaborassem um laudo a ser enviado a tempo ao MPE RJ. Não houve tempo hábil para a visita. 

Interdição 

A decisão judicial que interditou o prédio alegou que o edifício encontra-se em situação de risco. O fornecimento dos serviços de água e eletricidade foram cortados em março sob a alegação de risco de incêndio pela precariedade das instalações. 

A juíza Andrea Gonçalvez Duarte Joanes acolheu na íntegra o pedido do MPE RJ por meio da Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania do Núcleo Niterói/Maricá e determinou que o município promove-se a retirada dos moradores do prédio e a proibição da circulação de pessoas.   

Os moradores questionam a decisão. Segundo eles, uma vistoria poderia ser realizada antes do despejo para averiguar se de fato seria necessária a saída dos moradores do edifício para as obras de reparo. 

Em nota à imprensa, o MPE RJ anunciou que com a desocupação concluída, a Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania do Núcleo Niterói/Maricá solicitará ao Juízo o cumprimento da segunda etapa, que prevê a vistoria conjunta de todos os órgãos. O promotor Luciano Mattos disse que será feito um diagnóstico para saber do risco de estrutura e definir as medidas que devem ser executadas para a regularização do imóvel.  

Posicionamentos 

A reportagem procurou o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPE RJ) para explicações a respeito das denúncias feitas por moradores, da data que as pessoas poderão reaver os pertences que ficaram nos apartamentos e também sobre os animais. 

O promotor de justiça Luciano Mattos, responsável pela ação, disse por e-mail que “a diligência foi conduzida por Oficiais de Justiça em cumprimento à determinação judicial. Importante lembrar que a desocupação foi pedida em 25/03, a juíza determinou em 10/04 a desocupação voluntária em 25/05. Somente no dia 07/06 foi feita a operação e uma semana antes ficou na frente do prédio um caminhão e funcionários da prefeitura para auxiliar na retirada dos móveis e na mudança. E em todo esse período a prefeitura manteve a estrutura para realização do cadastro do aluguel social”.

Sobre a data do diagnóstico que será realizado no prédio para averiguar se existem danos estruturais, o promotor diz não ter previsão. “Uma vez autorizado por todos os órgãos públicos responsáveis, a juíza analisará se poderá retirar a interdição. Os direitos de todos os moradores devem ser respeitados, conforme a legislação civil vigente”, ressalta 

Por sua vez, a assessoria de comunicação da prefeitura de Niterói afirma que “por determinação judicial, deu suporte às famílias para a desocupação e pagamento de benefício assistencial aos moradores que se enquadram nos critérios definidos em lei”. 

De acordo com o município, até segunda-feira (10), 260 famílias haviam procurado o serviço e 137 foram consideradas aptas a receber o benefício de R$ 782,69 por um período de 12 meses. O pagamento já começou a ser realizado. Segundo o órgão, as famílias que não foram contempladas apresentaram pendências na documentação ou não cumprem algum requisito previsto na lei.  

A assessoria da prefeitura destaca ainda que cinco famílias manifestaram o interesse em ir para abrigos e foram acolhidas. O órgão pontua que o aluguel social é uma atribuição do governo do estado, mas que a prefeitura não recorreu da decisão judicial e assumiu o pagamento. 

O Brasil de Fato entrou em contato com o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), mas não obteve retorno até o fechamento desta reportagem.