Rio de Janeiro

Coluna

Maternidade Quilombola: entre ancestralidades e desafios racistas no Brasil

Nos quilombos, de norte a sul do Brasil, compreende-se a importância do espaço de produção e reprodução cultural - Acervo Brasil/ Facebook
O trabalho das mulheres negras quilombolas vai muito além do cuidado infantil e doméstico

Thiago Santana*

Há histórias aqui que se contam lá.

Histórias que atravessaram o Atlântico, as águas são testemunhas de sua resistência.

As águas que foram Kalunga para corpos negros, são também geradoras de tudo, pois as águas de Kalunga são águas mães, como nos conta Conceição Evaristo (2023).

Há histórias aqui que se contam lá.

O tecer das relações, orikis e itans, memórias repassadas pelo sangue e pela pele.

O choro de nossas mães, seus corpos na escuridão do mar. 

O preceito de Yemanjá, sacrificando-se pelos seus filhos. Oxum criando aqueles que gerou e também as crianças de suas irmãs. Iansã protegendo seus filhos e em sua saia.

Há, sim, histórias aqui que se contam lá. Os sussurros das Yabás, Senhoras Mães, resistiu ao sequestro e a morte, reformulou nossos corpos, refez nossas vidas, refundou nosso modo de cuidar. São símbolos de maternidade que, como nos aponta Jurema Werneck (2010): “atuaram e ainda atuam como modelos, como condutores de possibilidades identitárias para a criação e recriação de diferentes formas de feminilidade negra”, demonstrando o papel central das mulheres na construção e transformação da identidade negra. Dito isso, se Kalunga foi o fim, foi também o recomeço de uma organização política formada por agentes históricos: as mulheres negras.

Kalunga é, para a pesquisadora Lorraine Leu, uma ramificação do Quilombo, e com base em uma tecnologia afro-confluente rizomática, é o quilombo também ramificação de Kalunga, isto porque, ainda que experiências diferentes, estão conectados.

Há um mundo dentro do quilombo. O quilombo é portador de saberes ancestrais e sabe subverter a vulnerabilidade, enfrentar as ameaças e refazer-se das adversidades. O medo não encontra morada no quilombo. Ainda que perseguidos, vilipendiados e assombrados, os quilombolas resistem. Resistir não é apenas uma condição, mas uma necessidade. Ser quilombola é entender que a morte não é um fim e que o nascimento não é um começo, mas parte de um ciclo espiralar que conecta passado, presente e futuro.

Nos quilombos, de norte a sul do Brasil, compreende-se a importância do espaço de produção e reprodução cultural, onde o cuidado se manifesta como fundamento essencial. Cuidar é um ato de amor, resistência e política; é uma prática histórica que permeia essas comunidades. Quando nasce uma pessoa quilombola, renascem as mães e os avós, não apenas em um sentido simbólico, mas como agentes concretos de cuidado e socialização. Cuidar de uma criança é uma tarefa coletiva: cada palavra dita, cada conquista alcançada, cada derrota enfrentada e cada passo dado são valores vivenciados em comunidade. Esses atos constituem estratégias de continuidade cultural e reforçam a responsabilidade compartilhada na preservação e renovação das identidades quilombolas.

Uma mãe quilombola nunca está sozinha.

Além dos ancestrais, ela caminha com seus pares. Juntas, essas mulheres preservam saberes culturais, protegem e incentivam a continuidade de tradições. Suas forças não emanam apenas do ventre que gera vidas, mas também das mãos que constroem caminhos, das pernas que transmitem saberes e do corpo negro, que se torna guardião das ferramentas de luta política e social.

O trabalho das mulheres negras quilombolas vai muito além do trabalho de cuidado infantil e doméstico: elas são protagonistas na vida econômica de suas comunidades. Essa atuação cria uma carga de trabalho intensificada, que ultrapassa o conceito de "dupla jornada". Trata-se de uma sobrecarga estrutural, agravada pela precarização da vida, que evidencia a necessidade de formas de cuidado comunitário.

No entanto, em uma sociedade estruturada pelo racismo, essa sobrecarga é frequentemente interpretada de maneira distorcida. Instituições, como o sistema judiciário, tendem a rotular práticas maternas como negligência, utilizando esse termo como um "guarda-chuva" para abarcar diversas situações. Tal abordagem, ampla e vaga, desvia o foco da ausência de políticas públicas eficazes e do racismo estatal que marginaliza as mulheres negras. Em vez de enfrentar as condições estruturais que precarizam suas vidas, o judiciário e o Estado, frequentemente reforça estigmas e negam a sua responsabilidade em promover o bem-estar dessas mães e de suas comunidades.

Mas uma criança quilombola nunca aprende sozinha.

No quilombo, não existe o caminhar isolado; não há aprendizado sem troca. A aprendizagem é relacional, forjada nas interações e experiências compartilhadas. Certa vez, no quilombo Toca, em Santa Catarina, observei crianças pequenas de mãos dadas, caminhando entre o correr e o andar, guiadas por suas mães no retorno da escola. Juntos, desciam e subiam os caminhos. Juntos, obedeciam e desobedeciam. Juntos, construíam o sentido de pertencimento e continuidade.

O trauma colonial permanece latente nessas comunidades, sustentado por uma continuidade hierárquica e familiar que remonta ao período colonial. Como afirma o filósofo Jacques Derrida, o colonialismo carrega consigo uma sombra do passado que assombra o futuro. Essa sombra manifesta-se como um espectro, um desejo de retorno aos tempos antigos, marcado pela subjugação dos corpos negros. Embora as formas mudem, os desejos permanecem: uma reprodução de hierarquias que colocam o homem branco no centro das relações.

Um exemplo emblemático disso nos últimos anos está na exaltação da "família tradicional", que espelha, de maneira inquietante, a estrutura familiar colonial. Nesse modelo, o homem ocupa o núcleo das relações, enquanto mulheres, crianças e “servos” orbitam ao seu redor. Mas, e aqueles que não se enquadram nessa idealização? São considerados portadores de uma "não-família"? Se esse modelo é visto como o único correto, o que dizer das inúmeras famílias formadas exclusivamente por mulheres e crianças no Brasil?

A família, nesse contexto, emerge como o núcleo mais profundo do discurso colonialista que as elites brasileiras continuam a reproduzir, especialmente sob os estímulos da extrema direita. Essa lógica, inserida nas instituições, naturaliza-se como algo estrutural e enraizado na sociedade. O preconceito contra “mãe solo”, casais homoafetivos e pessoas em situação de pobreza, por exemplo, reflete essa continuidade histórica e culmina em práticas violentas, como o racismo obstétrico, homofobia, aporofobia, entre outros.

Esses padrões de exclusão flertam de forma alarmante com políticas de esterilização de mulheres pobres, frequentemente realizadas sem consentimento – uma prática que ainda persiste no Brasil. A ideia de “família” é constantemente utilizada como um metáfora para mascarar relações de trabalho análogas à escravização. Trabalhadores negros, especialmente mulheres e homens em condições de exploração, são retratados como "quase da família" ou "quase da casa", em uma narrativa que busca negar a opressão vivenciada. Um exemplo emblemático é o caso de Sônia Maria, mulher negra e surda que vivia em condições escravocratas na casa de um desembargador em Santa Catarina.

Essa mesma lógica também se manifesta na retirada de crianças de famílias que não se enquadram na visão normativa imposta por agentes do poder público, perpetuando um modelo que marginaliza e violenta aqueles que não se alinham ao ideal hegemônico. Esse processo reflete a continuidade do colonialismo sob novas formas.

Caso Gracinha

Quando se trata de mulheres negras quilombolas, a arbitrariedade institucional ganha contornos ainda mais graves. No caso de Maria das Graças de Jesus, conhecido como Caso Gracinha, essa dinâmica atingiu níveis extremos. Gracinha, uma mulher quilombola, teve suas duas filhas – de um e três anos – retiradas de casa por policiais armados com fuzis, acompanhados por uma assistente social que justificou a ação alegando que as levaria para vacinar.

O processo judicial foi marcado por racismo explícito, sendo apontado em sentença a retirada das crianças por sua mãe ser  “descendente de escravos", utilizando esse elemento como condenatório, como identifiquei em minha pesquisa. Além disso, Gracinha foi acusada, sem provas, de "promiscuidade" por ter cinco filhos, de "agressividade", por não aceitar a retirada de suas filhas de maneira sórdida, e de não cumprir o papel social de mãe, sob a alegação de que sua cultura não valorizaria cuidados básicos de saúde, educação e afeto. Essas acusações revelam a instrumentalização do racismo para deslegitimar a maternidade quilombola e justificar intervenções violentas do Estado em territórios historicamente marginalizados.

Como se pode observar, o corpo negro e quilombola de Gracinha foi, praticamente sem defesa, lido e condenado com base nas estruturas racistas que permeiam a sociedade, um processo que podemos entender como uma "hermenêutica dos corpos". Em minha pesquisa, busco compreender a leitura social com base em estereótipos racistas imbuídos naquele que avalia o outro. A partir das construções raciais intrínsecas à sociedade brasileira, como apontado por Lélia Gonzalez (1974), Gracinha não se encaixava nas representações típicas da mulher negra. Ela não se conformava à imagem da mãe preta, associada à afabilidade e dedicação, figura idealizada para o cuidado maternal, nem à da doméstica, que serve nos lares dos brancos, tampouco à da mulata, concebida no imaginário racial como objeto de desejo sexual.

Ao não corresponder a esses estereótipos historicamente produzidos para subordinar a mulher negra, Gracinha se torna um corpo que escapa às categorias preconcebidas, sendo desumanizada e reduzida a uma figura abjeta, desprovida de valor humano. A sua ausência de utilidade dentro desses moldes – como cuidadora dos filhos dos brancos, objeto de desejo ou submissa responsável por limpar a sujeira alheia – faz com que sua presença, na lógica racial dominante, tenha apenas uma função: reforçar, por meio de sua exclusão e estigmatização, a suposta superioridade daqueles que se colocam no topo da hierarquia racial.

Gracinha e sua comunidade quilombola jamais recuperaram suas filhas, apesar dos apelos aos juízes sobre a importância de uma criança remanescente de quilombo viver dentro da comunidade para preservar sua cultura, um direito garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. É indiscutível que as comunidades quilombolas em Santa Catarina sentiram-se ameaçadas pela possibilidade de retirada de crianças, em um estado com um histórico de remoção de filhos de suas famílias, baseado em preconceitos racistas, classistas e aporofóbicos.

A ascensão de discursos políticos extremistas, que tentam impor uma única concepção de família, baseada na ideologia cristã dominante, tem causado danos irreparáveis à população brasileira, tão diversa em sua constituição. A assombração do colonialismo ainda se faz presente nas comunidades quilombolas, em um país que, apesar de seu discurso de emancipação, ainda busca submeter o negro, mantendo-o em um estado de servidão ou tentando destruir sua identidade. 

No entanto, a resiliência, característica fundamental das comunidades quilombolas, e a força para enfrentar os discursos de ódio, a alegria para retomar suas vivências culturais, a determinação de manter seus quilombos, suas famílias e seus legados estão nas mãos das mulheres negras quilombolas, porque elas conhecem e valorizam as histórias, estão em forma de cicatrizes em sua pele, ressoam em seus cantos, transbordam em seus olhos, palpitam em seus corações, elas sabem que não existe saída sem luta.

Há histórias aqui que se contam lá.

Histórias de resistência.

Histórias de recomeço.

Histórias de busca por justiça.
 

*Doutorando e Mestre em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC). Membro do Projeto Pesquisa e Extensão permanente Ebó Epistêmico (UFSC) e pesquisador vinculado ao Grupo de Estudos em Oralidade e Performance (GESTO/UFSC).

**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Edição: Mariana Pitasse