Hoje, jovens se apresentam como crias da favela, como quem reconhece o valor da própria história
Renata Melo*
Em 2005, Lícia do Prado Valladares anunciava um novo personagem que entrava em cena nos enredos urbanos: aquele vindo da favela e com diploma superior. Os “doutores da favela”, previa a socióloga, questionariam dogmas, renovando a forma como se encara temas como pobreza e segregação. É com essa aposta que a autora encerra o clássico livro “A invenção da favela: do mito de origem à favela.com”, nos convidando a seguir o fio de uma história que estava apenas começando.
Mas não sem antes uma provocação: era preciso deixar de analisar certos problemas exclusivamente nas favelas. No período, estudar regiões como a Baixada Fluminense, por exemplo, dava menos “ibope”, na avaliação da pesquisadora. Hoje, parece incontornável a necessidade de olhar para a complexidade de territórios que não são chamados de favelas, mas compartilham diversas questões com elas. Esses lugares podem ter vários nomes — subúrbio, quebrada, comunidade. Aqui chamaremos de periferia.
Este não é um texto acadêmico e não é minha intenção fazer dele uma discussão teórica.
Mas falar de periferia é falar também de espaços de produção de ideias, como a universidade, e seu desafio de nos ajudar a interpretar um mundo em constante transformação. Valladares sabia disso. Ela não foi a única que viu algo de inaugural no Brasil daquele início dos anos 2000. Para além da virada de século no calendário gregoriano, a periferia se reinventava.
Na apresentação do projeto Tramas Urbanas, Heloisa Teixeira afirmou sem titubear: “mais do que a internet, a periferia é a grande novidade do século XXI”. Ora, há décadas, muito antes da popularização da internet, o termo periferia está na boca de pesquisadores, jornalistas e da população em geral para dar nome a uma determinada região, geralmente definida em oposição a um centro. O que haveria de novo, então?
A periferia evoca atualmente sentidos muito diferentes dos que evocava nos anos 1970, tanto nos marcos da sociologia como do senso comum. A própria ideia de periferia urbana é um fenômeno recente em termos históricos, expressão de um processo de urbanização iniciado nos anos 1940 que empurrou populações mais pobres para regiões desprovidas de serviços públicos, como argumentou Tiaraju D'Andrea.
Num contexto de urbanização e industrialização crescentes, debates econômicos discutiam sobre a relação dos chamados países da periferia do capitalismo com as economias centrais. Essa dicotomia foi incorporada também em escalas urbanas locais para descrição de relações de subordinação das margens da cidade a um núcleo metropolitano. Periferia passou a ser, então, sinônimo de território cujas principais características seriam pobreza, precariedade e distância em relação ao centro.
A noção de “cidade-dormitório” surge como síntese dessa perspectiva, apontando para um lugar de ausências, onde trabalhadores iriam apenas para dormir. Mas definições assim, pautadas exclusivamente na ideia de carência, parecem não dar conta da complexidade e heterogeneidade dos lugares designados como periféricos na atualidade. As periferias são também lugar do trabalho, onde se desenvolvem diversas relações econômicas e sociais, tendo suas próprias centralidades, como já demonstrou Luciana Lago.
A verdade é que antes dos anos 2000 algo já começava a mudar. No começo da década de 1990, o movimento hip-hop teve papel fundamental nesse processo. Lembremos dos Racionais MC’s, grupo de rap que tratou em suas letras da violência e racismo vividos na periferia de São Paulo, mas também da diversão encontrada na quebrada. Pensemos ainda no movimento Manguebeat e seu principal expoente, Chico Science, que “com as asas que os urubus lhe deram” voou por toda a periferia de Recife e do mundo. No Rio de Janeiro não foi diferente e o funk se impôs como referência cultural, chacoalhando a sisudez e apatia de uma certa elite ilustrada.
Não é exagero dizer, e vários pesquisadores já disseram, que as expressões culturais foram os principais artífices de um processo de ressignificação da periferia. Curiosamente, quando o termo ganhou maior evidência, tornando-se mais polissêmico, houve uma tendência na academia de abandoná-lo, relativizando seu poder explicativo. Mas se a periferia passou a ser colocada em xeque sociologicamente, os periféricos cada vez mais têm usado o termo sem medo.
Não é incomum encontrar hoje jovens se apresentando como crias da periferia, da favela, do subúrbio, com a altivez de quem reconhece o valor da própria história. Era assim que Marielle Franco se apresentava: cria da Maré. Ela foi uma das “doutoras da favela” esperada por Valladares, aluna de um pré-vestibular comunitário, estudante de sociologia como bolsista na PUC-Rio e mestre pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutora, sim, no sentido amplo e popular do termo, que vai muito além de um doutorado. Sua história é reveladora da potência dos novos sujeitos periféricos que entraram em cena, mas inevitavelmente faz pensar na violência com que muitos deles são interrompidos.
As “cidades-dormitório” deram lugar a periferias despertas que foram incorporadas a referências de mercado, consumo, cultura e engajamento político. É verdade que isso nem sempre teve reflexo em melhorias materiais e efetivas para esses territórios, mas gerou profundo impacto na subjetividade de populações marginalizadas que puderam converter sentimentos de inferioridade em orgulho, reivindicando um lugar de protagonismo na cidade. Esse movimento foi acompanhado da afirmação de múltiplas identidades (étnicas, raciais, de gênero, entre outras), o que poderia nos levar a outro tema quente: o chamado “identitarismo”, centro de inúmeras disputas políticas atuais. Mas isso é papo para outro texto.
Com a onda de empoderamento, veio também uma avalanche de ódio nas mesmas periferias da esperança. O conservadorismo cresceu, as divisões políticas ficaram mais evidentes, velhos problemas ganharam novas roupagens. A novidade da periferia é um pacote completo de potências e desafios. Uma coisa é certa, no entanto: não dá mais para ignorar suas potencialidades. É com esses termos que os territórios periféricos têm sido tratados em diversos espaços e discursos, como no Mapa das Periferias, por exemplo. Longe de ser uma romantização ou otimismo ingênuo, reconhecer essa pluralidade é um ponto de partida para encararmos a complexidade das periferias contemporâneas.
Lícia e Heloisa tiveram a perspicácia de captar no momento presente o espírito de um tempo que segue ressoando até hoje. As mudanças notadas pelas pesquisadoras não foram obra do acaso. Elas tiveram influência de políticas sociais que naquele começo dos anos 2000 contribuíram para a ampliação do acesso ao ensino superior por pessoas de classes populares e de diferentes origens étnicas e raciais. São fruto também de uma relativa democratização do acesso a dispositivos de comunicação e de um aumento da importância das políticas culturais, que estimulou o surgimento e desenvolvimento de coletivos e artistas nas periferias.
A gestão de Gilberto Gil como ministro da cultura, entre 2003 e 2008, foi um marco desse processo.
Passados mais de 20 anos, seu discurso de posse é cada vez mais atual e necessário. O Estado, disse ele, precisa intervir: “Não segundo a cartilha do velho modelo estatizante, mas para clarear caminhos, abrir clareiras, estimular, abrigar. Para fazer uma espécie de “do-in" antropológico, massageando pontos vitais, mas momentaneamente desprezados ou adormecidos, do corpo cultural do país. Enfim, para avivar o velho e atiçar o novo.”
Passada a euforia das previsões e apostas, fica a certeza de que se alargaram as possibilidades de participação de moradores de periferias no debate público brasileiro nas duas últimas décadas. Mas será que estamos ouvindo o que eles têm a dizer? Da onde eu vim, dizem: “Baixada é meu país!”, como se dissessem “a periferia é meu mundo, meu eixo, meu centro, minha nação”. Um amor que insiste em ficar, que deseja o bem-viver em toda parte, não só nos centros ou para quem pode pagar.
Aprendi com o Manifesto Baixada Filma que “o Rio de Janeiro é mais que a cidade do Rio de Janeiro”. Somos parte da metrópole, dizem seus artistas, não algo que está fora. Novas centralidades estão em jogo e nos desafiam a pensar o urbano de forma integrada, com a ousadia e irreverência que os movimentos culturais inspiram. Que nesse momento de proximidade das eleições, seja possível não só ouvir as periferias, mas construir com elas outra cidade.
*Renata Melo é jornalista, antropóloga, integrante do Observatório das Metrópoles e do Urbano - Laboratório de Estudos da Cidade.
**Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Mariana Pitasse