A eliminação do custo de passagens permitiria que muitas pessoas melhorem a acessibilidade na cidade
A proximidade das eleições municipais coloca as ações no campo da mobilidade, mais uma vez, no centro do debate sobre o futuro das cidades e metrópoles do país. Enquanto as peças do tabuleiro político se movimentam, agravam-se os problemas cotidianos enfrentados pela população, sobretudo aquela que mais depende do transporte público.
O Rio de Janeiro, assim como outras metrópoles brasileiras, combina um cenário de exclusão social e segregação residencial com a insuficiência de infraestrutura e de oferta de serviços de transporte minimamente dignos e de qualidade. Apesar dos enormes investimentos ocorridos com os megaeventos esportivos, grande parte das pessoas que habitam os 22 municípios metropolitanos continua enfrentando longas e extenuantes jornadas. Seja nos trens, ônibus, barcas ou nos precários meios informais, milhares de pessoas travam batalhas diárias para romper as barreiras físicas e sociais que as separam das oportunidades urbanas.
As grandes distâncias, a necessidade de baldeação, os atrasos, as falhas recorrentes nos sistemas e, principalmente, o alto valor das tarifas tornam as viagens cotidianas extremamente dispendiosas. Para ficar em apenas um exemplo que ilustra essa situação, quem sai da Baixada Fluminense e se destina à Zona Sul tem duas possibilidades principais: tomar uma das poucas opções entre os ônibus intermunicipais, cuja tarifa é inacessível para a maioria da população, ou passar horas no trajeto que tem o trem como modo principal, mas demanda, na origem, o deslocamento entre a residência e uma estação e, no destino, uma provável integração com um ônibus municipal. Ou seja, são gastos adicionais para uma população cujo orçamento familiar já é comprimido pelos altos custos de vida.
Segundo dados do aplicativo Moovit (2022), o Rio de Janeiro tem o maior tempo de deslocamento no transporte público entre as maiores cidades brasileiras: 67 minutos. A participação das viagens superiores a 2 horas aumentou entre 2020 e 2022, passando de 10,8% para 11,7%, ao contrário de outras cidades, onde esse percentual diminuiu. Os resultados do Censo de 2010 mostraram também como as condições de mobilidade são desiguais no interior da metrópole. O tempo médio de quem se deslocava diariamente dos municípios do entorno para o município do Rio era de 73,8 minutos.
Pessoas de cor ou raça preta levavam em média 31,9 minutos no trajeto casa-trabalho, enquanto pessoas brancas levavam 26,4 minutos. Em 2010, uma das situações mais extremas foi registrada na categoria dos trabalhadores do terciário não especializado (que inclui empregados domésticos) e moradores de Japeri, cujo tempo médio de deslocamento é de 80,4 minutos, praticamente o dobro do tempo médio da metrópole como um todo.
Esses dados revelam como uma conjunção de fatores torna a metrópole um terreno fértil para a produção e a reprodução de desigualdades e exclusão, que se somam à violência, ao crescente domínio territorial de grupos armados e, cada vez mais, aos efeitos trágicos da crise climática. Ao mesmo tempo, uma configuração urbana caracterizada pela hiperconcentração de oportunidades e por uma rede de transportes radiocêntrica produz um padrão espacial de mobilidade marcado pelo movimento de massa em direção às áreas centrais da cidade do Rio de Janeiro, restringindo as possibilidades de deslocamento e comprometendo as condições de acessibilidade.
Complementando esse quadro, a população de muitas partes da periferia metropolitana e das favelas se mantém privada do acesso a infraestruturas e serviços de transporte minimamente dignos.
Muitos desses territórios, incluindo as favelas das áreas centrais, configuram-se como verdadeiros desertos de transporte, que podem ser mapeados a partir da localização dos domicílios com baixo ou nenhum acesso à rede de transporte formal. Em exercício exploratório para o Rio de Janeiro, encontramos que aproximadamente 7% dos domicílios da cidade estão a mais de 15 minutos a pé de qualquer ponto do sistema de transporte público. Isso considerando um indivíduo em plenas condições para a realização de uma caminhada de aproximadamente 5 km/h.
Esse não é o único indicador, mas oferece uma primeira imagem do grau de exclusão relacionado ao transporte. Dar atenção especial a esses locais, onde a falta de acesso aos serviços de transporte público é praticamente absoluta, é um passo fundamental para enfrentar o quadro de desigualdades presentes na metrópole do Rio de Janeiro. Para tanto, é preciso reavaliar o desenho da rede de transportes a fim de adequá-lo às necessidades da população por meio de uma revisão sistemática, participativa e transparente dos itinerários do serviço de ônibus municipais e da provisão de infraestruturas adaptadas a aspectos específicos da geografia da cidade do Rio de Janeiro, principalmente quando se pensa nos territórios de favela.
Excludente
Além dessa dimensão geográfica, a exclusão no transporte é agravada pelo caráter proibitivo, excludente e segregador das tarifas praticadas nos serviços de transporte da Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Atualmente, a tarifa de ônibus no município do Rio custa R$ 4,30. Com uma única passagem, é possível realizar outras duas viagens em um intervalo de três horas, além de uma conexão, sem acréscimo de valor, com o Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), que atende parte limitada da área central da cidade.
Não há dúvida que essa integração temporal favorece a acessibilidade na cidade, considerando a necessidade de baldeação e ampliação das opções de deslocamento. Mesmo assim, o gasto mensal com passagem pesa significativamente no bolso do trabalhador. Supondo a realização de 44 viagens (ida e volta em 22 dias úteis), são gastos R$189,2 por mês. Ou seja, uma pessoa que recebe um salário-mínimo compromete 13,4% da sua renda apenas para ir e voltar do trabalho.
Outras tarifas de transporte são ainda mais restritivas. O exemplo mais absurdo é a passagem cobrada no serviço de metrô, que, após um aumento de 8,7%, passou a custar R$ 7,50, a tarifa mais cara do país. Uma pessoa dependente desse modo e que recebe um salário-mínimo compromete 23,5% de sua renda com transporte, apenas para se deslocar em dias úteis. Mesmo projetando esse gasto para os casos de quem recebe a renda domiciliar per capita média, o comprometimento da renda chega a 18,1%. Usando o metrô, um casal com um filho gastaria, só com transporte, R$ 45 para passear em um dia de domingo. Trata-se de mais um exemplo de como o modelo atual de mobilidade interdita as possibilidades de vida na cidade.
Para efeito de comparação, em São Paulo, o custo de um bilhete de metrô é R$ 5. Com uma renda domiciliar per capita média metropolitana de R$ 2.297,7, o gasto mensal com deslocamento de ida e volta em dias úteis representaria 9,5% dessa renda. No entanto, a extensão da rede de metrô de São Paulo é o dobro da rede do Rio de Janeiro. Ainda há a vantagem da integração tarifária com a rede de trens metropolitanos, que possui 273 quilômetros de extensão.
Como mostra o Mapa da Desigualdade da Casa Fluminense, em se tratando da rede de trens metropolitanos, a situação do Rio de Janeiro é um capítulo à parte. Em 2023, o valor da tarifa passou de R$5 para R$7,40, ou seja, considerando viagens de ida e volta em um mês com 22 dias úteis, o custo total seria de R$340,40, comprometendo quase ¼ do salário de quem recebe o mínimo. Sem nenhum tipo de integração tarifária, esse custo pode ser ainda maior, já que muitos passageiros são obrigados a fazer baldeação para acessar as estações ou para chegar aos seus destinos.
O contraste significativo entre pessoas brancas, pretas e pardas no que diz respeito ao peso da tarifa no rendimento mensal é mais uma expressão da desigualdade nos transportes e, consequentemente, na acessibilidade urbana da população metropolitana. Para se deslocar de metrô durante 22 dias úteis, considerando ida e volta, uma pessoa da cor preta, por exemplo, compromete 28,9% da sua renda, em média, contra apenas 13,2% das pessoas brancas.
Além das limitações relacionadas ao rendimento, não se pode esquecer que parte da força de trabalho está desempregada ou na informalidade, dependendo do transporte para buscar trabalho ou postos formais com melhores remunerações. No último trimestre de 2023, a taxa de desocupação na região metropolitana do Rio era de 10,6%, acima da média nacional e de todas as regiões metropolitanas do Sudeste. Essa taxa é influenciada pelos municípios do entorno metropolitano, pois, enquanto na capital o percentual de desocupados é de 8,6%, nesses municípios a taxa chega a 13,8%, ficando no patamar das regiões metropolitanas com o pior desempenho.
Nesse contexto, o nível de pobreza também preocupa.
A média da renda domiciliar per capita do trabalho na Região Metropolitana do Rio de Janeiro é de R$1.816,43. Embora superior ao salário mínimo, o valor é 20% menor do que a média de São Paulo. Além disso, entre as quatro metrópoles da Região Sudeste, a metrópole fluminense terminou 2023 com o maior de percentual de pessoas que residem em domicílios abaixo da linha de pobreza, com renda domiciliar per capita abaixo de ¼ do salário mínimo: 24,9% contra 17,7% de Belo Horizonte, por exemplo.
Como mostra o Boletim Desigualdade nas Metrópoles, para os 40% mais pobres, a situação é extremamente grave: a renda per capita domiciliar desse estrato é de apenas R$240. Isso coloca a RMRJ entre as 10 regiões metropolitanas mais desiguais do Brasil, com um índice de Gini de 0,62. O que fazer diante desse quadro de enorme desigualdade e de um contexto metropolitano que se distancia cada vez mais da realização do transporte como direito social, como prevê a Constituição Federal?
Uma das possibilidades mais viáveis e necessárias nesse contexto é a implementação da tarifa zero, que surge como uma alternativa real para combater a exclusão social e econômica agravada pelas altas tarifas de transporte. Trata-se de uma proposta efetivamente transformadora que visa promover o direito à cidade, considerando que o objetivo principal de um sistema de transporte é a promoção da acessibilidade, ou seja, fazer com que as pessoas cheguem com facilidade e sem restrições, incluindo as econômicas, aos seus destinos, seja o local de trabalho ou equipamentos de saúde, educação e lazer.
Implementar um programa de tarifa zero na metrópole é passo importante para a promoção da equidade, equiparando as oportunidades de deslocamento entre diferentes grupos sociais. Tal objetivo, obviamente, não pode estar desvinculado de uma ampla e racional discussão sobre seu financiamento. No Brasil, cerca de 90% da fonte de custeio dos sistemas de transporte público vem da receita tarifária. Em situações de crise e diminuição da demanda, o sistema simplesmente entra em colapso, como ocorreu durante a pandemia de Covid-19.
Sendo assim, é preciso assumir que a operação do transporte não pode depender exclusivamente do valor arrecadado pela passagem.
Para avançar nesse ponto é fundamental romper com a ideia retrógrada de que o passageiro é um custo para o sistema. Essa lógica é a base do modelo que estimula a lotação e degrada a qualidade do serviço, na medida em que as operadoras são remuneradas conforme a quantidade de pessoas que transportam.
Em tempos de eleições, é preciso buscar gestores com coragem para romper com o ciclo vicioso da remuneração dos operadores por passageiros transportados. Principalmente porque isso torna vantajoso para os empresários manter os ônibus sempre lotados, por vezes descumprindo viagens planejadas para selecionar trajetos - nessa lógica - mais rentáveis, deixando de atender parte do território e ampliando a exclusão.
Tarifa zero
Nesse contexto, é fundamental avançar no debate crítico e propositivo que, de uma vez por todas, reveja esse modelo e preveja, regule e amplie mecanismos de financiamento por outras receitas. Como já acontece em áreas como saúde, educação e segurança, é preciso conceber e aplicar o conceito de financiamento indireto do transporte público. Esse é o princípio que orienta a campanha Busão 0800, mobilizada nacionalmente pela organização social NOSSAS, que propõe como um dos caminhos para a tarifa zero a substituição do vale-transporte por uma nova taxa paga pelos empregadores, baseada no número de funcionários. Com isso seria possível financiar diretamente o sistema de transporte, garantindo transporte grátis e de qualidade para as pessoas.
Concebida por uma coalização de organizações sociais, que apresentou primeiramente uma proposta de tarifa zero para os ônibus em Belo Horizonte, essa solução prevê especificamente a criação de uma Taxa de Transporte Público (TTP), cobrando um valor mensal por empregados das pessoas jurídicas com 10 ou mais funcionários. A taxa tem como referência de cálculo o custo do serviço de transporte público coletivo por ônibus. No caso de Belo Horizonte, o valor fixado foi de R$ 172,15 ao mês para cada empregado.
A partir dessa arrecadação, seria possível oferecer serviço gratuito no momento do uso e retirar as catracas dos ônibus do sistema de transporte público. Para a efetivação desse modelo, a proposta prevê que a fiscalização e a contabilização da quilometragem das viagens, que passaria a ser a base para a remuneração dos operadores, seja de responsabilidade do poder público. Sendo também a prefeitura responsável pela fiscalização da prestação e da qualidade do serviço.
Esse modelo já é inspiração para a cidade do Rio de Janeiro, considerando, obviamente, ajustes relacionados ao dimensionamento do sistema.
O município, no final de 2022, tinha 2.339.042 vínculos trabalhistas ativos. Desses, 2.041.040 são vínculos em estabelecimentos com 10 ou mais empregados, que, portanto, contribuíram com a TTP. Considerando a taxa por empregado de R$ 177,66 mensais estimada pela Casa Fluminense, pelo método proposto pela Tarifa Zero BH, poderiam ser arrecadados em torno de R$ 4,3 bilhões por ano. Somado ao que a prefeitura prevê para o subsídio às empresas de ônibus em um ano, teríamos algo em torno de R$ 1,5 bilhão, chegando-se ao valor de R$ 6,3 bilhões. Esse valor é mais de duas vezes o custo de R$ 2,9 bilhões estimado para a operação dos ônibus municipais e do sistema BRT.
No caso da metrópole do Rio de Janeiro, o desafio é maior quando se considera os trens metropolitanos e o metrô, mas encontrar soluções de financiamento para implementar a tarifa zero, primeiramente nos ônibus, pode, sem dúvida, abrir caminho para a gratuidade em outros subsistemas. Além das mudanças no vale transporte, está entre as possibilidades pouco exploradas a criação de um fundo por meio da contribuição dos aplicativos de transporte individual, que hoje operam na cidade sem nenhum tipo de regulação. Deve estar no radar também a taxação sobre congestionamento, considerando a posse de veículos por domicílios de média e alta renda, incluindo automóveis mais poluidores, e o levantamento de receitas atreladas à exploração comercial e publicitária de infraestruturas de transporte público.
Ao mesmo tempo, é fundamental encontrar soluções de financiamento que levem em conta a complexidade de uma metrópole com 12 milhões de habitantes. Isso vai exigir uma coordenação complexa entre os governos municipais, com a participação ativa do estado e do Governo Federal. Em tal escala, o caminho está na defesa de um Sistema Único de Mobilidade (SUM), que integre as políticas nas diferentes áreas governamentais, assegure financiamento e combata o caráter proibitivo, excludente e segregador das tarifas, com a tarifa zero como princípio orientador. Essa é a visão promovida pela coalizão Mobilidade Triplo Zero, que defende, além da tarifa zero, zero emissões de carbono e zero mortes no trânsito.
A tarifa zero sem catracas tem o potencial de promover a inclusão social ao contribuir para remover, ao mesmo tempo, as barreiras econômicas, sociais e geográficas que separam as pessoas das oportunidades de vida, sem esquecer do conforto, da pontualidade e da segurança nos trajetos. Isso é particularmente relevante em uma metrópole como o Rio de Janeiro, onde a desigualdade de renda é acentuada e muitos residentes das periferias e favelas enfrentam dificuldades básicas para acessar a rede de transporte público.
A eliminação do custo das passagens permitiria que muitas pessoas que atualmente estão excluídas do mercado de trabalho ou das oportunidades educacionais, culturais e recreativas, devido ao alto custo das passagens, melhorem suas condições de acessibilidade, garantindo que todos, independentemente de seus status socioeconômicos, tenham acesso igualitário a direitos fundamentais na metrópole.
*Juciano Martins Rodrigues é doutor em Urbanismo (PROURB/ UFRJ), pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles (IPPUR/UFRJ). Integrante do Núcleo de Estudos em Mobilidade Urbana Sustentável e Inclusiva (NeMobi);
**Vitor Mihessen é economista (UFRJ), mestre em economia (UFF), coordenador geral da Casa Fluminense, membro da Coalizão Mobilidade Triplo Zero e da Agenda Realengo 2030.
***Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Revisão: Renata Melo.
Edição: Mariana Pitasse