A proibição do aborto consolida desigualdades, opressões e práticas de estratificação da reprodução
Débora Allebrandt*, Laura Lowenkron** e Rosamaria Giatti Carneiro***
O aborto é previsto por lei no Brasil em apenas três situações: risco para vida da mulher; estupro e feto anencéfalo. No entanto, temos uma série de exemplos de como acessar esses serviços tem se tornado uma odisseia, especialmente para meninas que se enquadram em duas das categorias: foram vítimas de estupro e correm risco de vida ao levar essa gestação adiante.
Não podemos esquecer das circunstâncias que levaram o caso de uma menina capixaba de 10 anos a viajar para o Recife para ter seu direito ao aborto garantido. Além disso, informações sobre o caso vazaram e a menina teve o procedimento garantido em meio a gritos de manifestantes “pró-vida”.
Em 21 de março de 2024, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou a Resolução 2.378/2024 para impedir e criminalizar médicos e médicas que realizem o aborto a partir das 22 semanas através da técnica de assistolia fetal, técnica que é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O Superior Tribunal Federal (STF) cassou temporariamente os efeitos da resolução até que o conteúdo da resolução seja julgado. A técnica de assistolia fetal, utilizada para terminar gestações com mais de 22 semanas, é utilizada na maioria das vezes em meninas que foram vítimas de estupro, já que não se suspeita que meninas estejam grávidas e as ameaças do estuprador, geralmente alguém da ou próximo à família, mantém a menina em um silêncio aterrorizador.
A Rehuna (Rede pela humanização do parto e do nascimento) divulgou o dado que em 2023, 12 mil meninas com idades entre 8 e 14 anos foram mães. Esse dado trágico é mais um reflexo das dificuldades e barreiras impostas ao aborto legal e seguro no nosso país. São essas meninas que sofrem com a medida do CFM. Sem a possibilidade de assistolia fetal, essas meninas precisarão de uma cirurgia cesariana para interromper a gravidez. Terão seus corpos e suas escolhas reprodutivas no futuro marcadas por essa decisão.
A máxima “uma vez cesárea, sempre cesárea”, cunhada visando priorizar o primeiro parto pela via vaginal, erroneamente utilizada para fugir dos partos “normais” se aplica às meninas. Elas, antes de iniciarem sua vida sexual e reprodutiva, foram expostas a múltiplas violências e violações de seu corpo, até mesmo no momento de interromper a gestação, que potencialmente salvaria suas vidas.
Quando e se essas meninas optarem por ter filhos na vida adulta, elas incorrerão em limitações e complicações decorrentes de uma cirurgia anterior que poderia ter sido evitada.
Há risco na gravidez na infância, fisiológicos, mas também sociais. Há riscos para as mulheres quando optam por uma cesariana, e mais riscos quando elas ocorrem em repetição, por conta do aumento de risco de ruptura uterina decorrente de sinéquias ou cicatrizes deixadas pelas cirurgias pregressas.
Aborto inseguro
Uma série de estudos tentam nos aproximar da realidade contundente do aborto inseguro no nosso país. Os dados da premiada pesquisa nacional do aborto, coordenada pela antropóloga Débora Diniz, tentam colocar um rosto nos números. Uma em cada sete mulheres até os 40 anos já fez um aborto, uma em cada duas antes dos 19 anos; a probabilidade de uma mulher negra fazer um aborto é 46% maior do que uma mulher branca. Essas mulheres são casadas, têm orientação religiosa, a maioria é cristã e já têm filhos.
Se tal resolução atinge sobremaneira às meninas, é necessário dizer que dada a demora na assistência ao aborto legal no Brasil também outras mulheres se veem prejudicadas por tal retrocesso legal. Há uma semana estamos as voltas com o caso de uma mulher, vítima de estupro, que estava de 24 semanas gestação, que peregrinou por três hospitais em busca do assistência do aborto legal em São Paulo e o teve negado; tendo sido obrigada ainda a escutar o batimento cardíaco do bebê no último estabelecimento que buscou assistência.
Segundo Débora Diniz, a ideia é justamente fazer a mulher peregrinar em busca de atendimento e, assim, repreendê-la pela exposição e abandono. Quanto mais vulnerável, mais tardará em encontrar auxílio, até o ponto em que a legislação já não mais lhe permite amparo.
O filme “Uma estória Severina” (2015) produzido pela antropóloga e pela jornalista Eliane Brum conta a história de uma mulher grávida de um bebê anencéfalo que não sobreviveria ao nascer. Severina sabia que seu filho usaria uma única roupa, uma única vez. Saberia que não o teria nos braços com vida. E ainda assim peregrinou no judiciário em busca de amparo legal durante meses e não conseguiu o reconhecimento de seu direito ao aborto legal.
No filme, podemos ver o olhar perdido e desolado, descrente e angustiado.
Ela aparece sozinha, tendo de gestar um filho que sabe que não irá viver, infeliz. Depois de seu caso e de seu pedido, o STF levou ainda mais sete anos para reconhecer o direito ao aborto nesses casos. Vemos, então, como mais uma vez o tempo é pensado, vivido e usado contra os direitos reprodutivos das mulheres, que permanecem, ao final, como aquelas que caminham sozinhas, violentadas e sem esperança, como o personagem da obra clássica que inspira o filme.
Nesse sentido, prolongar o caminho a ser perseguido em busca do aborto legal é uma repreenda moral às mulheres que o buscam. Elas são punidas com o desamparo, ainda que sejam as vítimas. Mas também é praticamente uma forma de tornar a assistência ou a melhor assistência possível indisponível. Dessa forma, as mulheres são obrigadas a seguirem com gestações indesejadas e violentas, perdem o prazo legal para a assistência prevista em lei e também a possibilidade de recorrerem às melhores técnicas de aborto existentes.
Ilegalidade atinge mulheres de forma desigual
De acordo com o Coletivo Feminista de Sexualidade de São Paulo no dia 28 de maio de 2024, dia pela redução da mortalidade materna, publicou que o aborto inseguro é a quarta maior causa de mortalidade materna no Brasil. Nesse sentido, é imperioso pensarmos que o atraso e as dificuldades de acesso ao aborto legal contribuem para que, sozinhas e desamparadas, as mulheres recorram aos abortos clandestinos e coloquem a suas vidas em risco. Para elas, o tempo urge por várias razões, para acessar o serviço previsto em lei, mas também para minimamente suavizar a violência sofrida e sentida em seus corpos.
Em 2022, Daiana Sousa explorou esse tema em sua dissertação de mestrado na Universidade de Brasília (UnB), ao constatar que, no Brasil, seguimos praticando curetagem, ainda que AMIU (aspiração interna uterina) seja mais benéfica para a saúde reprodutiva das mulheres. Os profissionais não são capacitados, perde-se o tempo para que o AMIU seja realizado e assim quem arca com os maiores prejuízos são as mulheres, que deveriam ser as vítimas, mas são ainda assim castigadas. Desse modo, perde-se o tempo, mas também se quer perder esse tempo, o mais importante para as mulheres. Perder o tempo, atrasar o tempo é algo proposital, que tem gênero, raça/cor, classe social e geração, quando se trata de acesso ao aborto legal no Brasil.
A criminalização do aborto não impede a sua realização, mas os efeitos dessa ilegalidade atingem as mulheres desigualmente.
Emanuelle Goes, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) da Bahia que atua no campo da Saúde Coletiva, aborda os desafios para transformação do aborto em um direito reprodutivo no Brasil. Em seu artigo “Dilemas interseccionais: aborto e racismo no Brasil”, ela argumenta que “não é possível construir uma agenda na luta pelo aborto legal sem que o enfrentamento ao racismo com suas dinâmicas e opressões correlatas estejam no centro da luta pelos direitos reprodutivos, direitos humanos e justiça social”.
No Brasil o aborto inseguro é umas das principais causas de morte materna e as mulheres negras as principais vítimas. Como mostra Goes, isso se deve em parte ao acesso desigual aos insumos contraceptivos, principalmente aos métodos reversíveis que são ofertados de forma precária e irregular nos serviços de saúde. São também as mulheres pobres e racializadas as mais criminalizadas pela prática do aborto, mesmo quando declaram no atendimento de emergência ter sofrido aborto espontâneo.
Assim, o racismo institucional e os estigmas reprodutivos relacionados às mulheres negras e socialmente marginalizadas retardam a ida dessas mulheres aos serviços de saúde e as colocam em situação de agravamento dos riscos pós-abortamento.
Angela Davis, no capítulo “Racismo, controle de natalidade e direitos reprodutivos” do seu livro Mulheres raça e classe, lembra que enquanto as feministas brancas investiram historicamente na pauta da maternidade voluntária, vinculada ao acesso à contracepção e ao aborto legal, as mulheres negras têm sido alvo privilegiado de esterilizações involuntárias e sujeitas a políticas racistas de controle de natalidade. Ao mesmo tempo, a autora chama atenção para a duração da colonialidade que faz com que as afro-americanas recorram com frequência ao aborto autoinduzido desde os tempos da escravidão.
Mas as narrativas dessas mulheres não relacionam a prática de interrupção da gravidez a um gesto de autonomia e liberdade em relação à maternidade, mas às condições sociais miseráveis que as levam a desistir de trazer novas vidas ao mundo. Nesse sentido, a autora defende ser urgente uma campanha em defesa dos direitos reprodutivos para todas as mulheres, em especial para aquelas que são obrigadas por suas circunstâncias econômicas a abrir mão do direito à reprodução.
A consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos tem como marcos a Conferência Internacional da ONU sobre População e Desenvolvimento em Cairo, 1994 e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Pequim, 1995. Esses direitos reconhecem a autonomia da mulher para tomada de decisões sobre seu próprio corpo sexual e reprodutivo livre de discriminação, coerção ou violência. No mesmo contexto, coletivos de mulheres negras nos EUA acrescentaram uma nova dimensão às discussões, se referindo à justiça reprodutiva. Loretta Ross, uma das primeiras ativistas negras norte-americanas a conceitualizar essa noção, define-a a partir de um conjunto de três direitos humanos interligados: (1) o direito de ter um filho nas condições que escolher; (2) o direito de não ter um filho recorrendo a métodos contraceptivos, aborto ou abstinência; e (3) o direito de criar os filhos em ambientes seguros e saudáveis, livres de violência por parte de indivíduos ou do Estado.
A proibição do aborto consolida desigualdades, opressões e práticas de estratificação da reprodução em que certas mulheres, agraciadas com seus privilégios de raça e classe, podem fazer uso de suas escolhas na vida reprodutiva e outras não. Abordar a agenda da descriminalização do aborto à luz da noção de justiça reprodutiva significa levar a sério a ideia de que essa prática só poderá ser efetivamente considerada um direito reprodutivo quando todas as mulheres tiverem acesso ao aborto legal e puderem decidir realizá-lo com autonomia, segurança e liberdade, sem nenhum tipo de violência ou coerção.
A bandeira da análise interseccional levantada pelo feminismo negro nos permite ver como classe, raça, escolaridade, orientação sexual, deficiência dificultam o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos e demonstra como todas as formas de opressão impactam a vida das mulheres. Dessa maneira, a Rede Transnacional de pesquisas sobre Maternidades destituídas, violadas e violentadas (REMA/CNPq) defende a eliminação das barreiras diferenciadas de acesso ao aborto legal e à saúde reprodutiva. Além disso, considera fundamental o enfrentamento dos constrangimentos econômicos, políticos e sociais que impedem algumas mulheres de escolherem livremente se desejam ou não gestar, parir e maternar seus filhos, caso engravidem.
*Débora Allebrandt é mãe de Olívia e Íris, antropóloga, professora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas e membro do Mandacaru – Núcleo de Pesquisa em Gênero, Saúde e Direitos Humanos, Rede Anthera e REMA.
**Laura Lowenkron é mãe, antropóloga, professora do Programa de pós-graduação em Saúde Coletiva do IMS/UERJ, coordenadora executiva do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM), pesquisadora da REMA/CNPq e Jovem Cientista do Nosso Estado (FAPERJ).
***Rosamaria Giatti Carneiro é mãe, antropóloga, professora do Departamento de Saúde Coletiva e do Programa de Estudos Comparados sobre as Américas da Universidade de Brasília. Co-coordenadora do grupo de pesquisa CASCA - Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva e é pesquisadora do CNPQ e da REMA/CNPQ.
****Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.
Edição: Mariana Pitasse