Paraná

MORADIA POPULAR

A construção de novas unidades habitacionais no Brasil resolveu o problema habitacional?

Por uma nova política de habitação de interesse social nos municípios da região metropolitana de Curitiba

Curitiba (PR) |
Os territórios hoje detêm a liderança e protagonismo das mulheres, mas esbarram na falta de políticas habitacionais e na repressão do poder público - Pedro Carrano e Lucas Botelho

O período eleitoral nos municípios é um momento de propostas e promessas políticas para questões que afetam a vida de seus moradores, dentre elas a habitação. Compreende-se assim a importância do momento para suscitar o debate democrático em torno da formulação de políticas públicas, comprometendo as candidaturas com a garantia do direito à moradia digna na Região Metropolitana de Curitiba (RMC). 

Este artigo, o primeiro dos cinco que tratarão do tema, reflete sobre o programa habitacional predominante nas últimas décadas, caracterizado pela produção de novas unidades habitacionais. A partir das pesquisas desenvolvidas pelo grupo Habitação e Direito à cidade, do Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles, são apresentados elementos para subsidiar a formulação de políticas voltadas ao enfrentamento efetivo do problema habitacional na RMC.

Destaca-se, inicialmente, que embora componha uma dimensão do déficit, a falta de unidades habitacionais não é o único nem o mais importante indicador para orientar a formulação de políticas destinadas à população mais empobrecida e vulnerável. Existem dimensões qualitativas mais relevantes, como, por exemplo, a precariedade dos espaços de moradia e o comprometimento da renda familiar com o aluguel, dentre outras.

Conforme as pesquisas desenvolvidas, a maior parte das unidades construídas pelo Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), entre 2009 e 2020, não foi produzida para a faixa 1, que por atender a população de menor renda pode ser compreendida como Habitação de Interesse Social (HIS). 
Segundo dados da Secretaria Nacional de Habitação do então Ministério do Desenvolvimento Regional, até 2020, apenas 7,58%, ou 9.430 das 124.468 unidades contratadas na RMC, foram produzidas para esta faixa do programa. Considerando o déficit habitacional na RMC em 2017, calculado pela

Fundação João Pinheiro, de 71.236 domicílios, até 2020 foram construídas aproximadamente o dobro das habitações necessárias para zerar o déficit. No entanto, ao se observar o número de unidades produzidas para a população de menor renda, o PMCMV na RMC correspondeu a apenas 13% desse déficit. 
Tais números revelam que a construção de novas unidades habitacionais contribuiu pouco para o combate ao déficit habitacional na região.

Dados preliminares do Censo Demográfico de 2022 revelaram um acréscimo de mais de 300 mil pessoas no Arranjo Populacional Metropolitano de Curitiba desde 2010, sendo 93,3% delas fora do polo (Curitiba), indicando a continuidade da periferização da moradia, em direção a áreas cada vez mais distantes, menos urbanizadas e, portanto, mais precárias. Observou-se também um expressivo aumento dos domicílios particulares permanentes, e um crescimento ainda maior dos domicílios vagos, principalmente em Curitiba e municípios do entorno, que receberam 87,5% das unidades contratadas pelo PMCMV. Em 2020, Curitiba e São José dos Pinhais responderam pelo maior número de contratações da faixa 1; e Curitiba, São José dos Pinhais e Fazenda Rio Grande se destacaram nas faixas 2 e 3.

No período de maior contratação do PMCMV aumentaram também os índices de precariedade habitacional e pobreza na RMC. Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, a população em situação de rua em Curitiba passou de 252 pessoas em agosto de 2012, para 2.682 em dezembro de 2020. O número de favelas em Curitiba, de acordo com o Plano Setorial de Habitação e Regularização Fundiária do município, passou de 301 em 2000, para 453 em 2019. Os indicadores de precariedade habitacional são agravados quando à renda da população somam-se as dimensões de gênero e raça, observando-se que mulheres, pretos e pardos são representativos entre chefes de famílias residentes em favelas. Em 2010 a população branca ganhava, em média, 73,4% mais do que pretos e pardos; e os homens, 29,6% mais que as mulheres (IBGE, 2010). Entre 2014 e 2020 a população em situação de pobreza e extrema pobreza aumentou 34% no polo, e mais de 20 mil famílias passaram da situação de pobreza para extrema pobreza na RMC, somando, em 2020, 91.803 nessa situação.

Então, se houve um programa que destinou recursos capazes de zerar o déficit habitacional, por que sua execução na RMC não garantiu a moradia digna à população mais empobrecida? Pelo contrário, conforme revelam os dados, na última década o problema se agravou. A resposta para essa questão deriva de diferentes aspectos, mas em grande parte é explicada pelos modelos dos programas de produção de habitação e das políticas públicas municipais correspondentes.

O primeiro aspecto é a falta de prioridade dos governos municipais na formulação de políticas de HIS, deixando de fora a população mais empobrecida. Na trajetória da política municipal de habitação de Curitiba, por exemplo, desde a década de 1990 não se observa o interesse das gestões em melhorar a capacidade institucional da prefeitura para executar uma política desta natureza, inexistindo uma secretaria, com corpo técnico qualificado e recursos orçamentários para executá-la. O que se tem é a manutenção de uma estrutura institucional da década de 1960, que pouco avançou e é comprovadamente incapaz de promover o acesso à moradia digna à população mais pobre.

Observa-se também, nos municípios da RMC, a transferência da condução de suas políticas habitacionais a empresas - Companhias de Habitação e incorporadores imobiliários -, cuja atuação não coaduna com o interesse social da habitação, pois é da natureza delas a extração de lucros de suas atividades, para garantir sua capitalização e solvência financeira. 

A esses aspectos soma-se o desenho dos programas de provisão habitacional. Quando as habitações do PMCMV foram destinadas à população mais pobre, as pesquisas revelaram uma série de efeitos nocivos na vida das famílias beneficiárias, decorrentes da implantação das moradias em áreas periféricas, distantes do emprego, carentes de equipamentos públicos e infraestrutura, e expressivos gastos de tempo e recursos nos deslocamentos cotidianos.

Além disso, para reduzir os custos e ampliar os lucros das construtoras, verificou-se a baixa qualidade construtiva dos empreendimentos, as dimensões mínimas dos espaços das habitações, as soluções padronizadas e pouco flexíveis dos projetos arquitetônicos e estruturais, incapazes de atender com qualidade e segurança a diversidade das composições, tamanho e necessidades das famílias.

Esse quadro é agravado quando os novos conjuntos habitacionais foram utilizados para reassentamento de famílias removidas de favelas. Nesses casos, a execução do programa ignorou, dentre outros aspectos, laços e redes de solidariedade e reciprocidade pré-existentes nas comunidades, que constituem estratégias fundamentais à sobrevivência dessa população. Além disso, desconsideraram a participação das famílias na elaboração e execução dos projetos urbanísticos, arquitetônicos e sociais.

Outra limitação foi a adoção do condomínio, predominante na execução do PMCMV. Em função da baixa renda, muitas famílias não têm conseguido arcar com o pagamento das taxas, prejudicando a manutenção dos conjuntos habitacionais, tornando-os precários ao longo do tempo.

A localização periférica e a implantação de condomínios aprofundaram também a segregação sócio espacial, apartando as famílias do restante da cidade e facilitando, em algumas áreas, o domínio desses espaços pelo crime organizado. Ou seja, um somatório de violências e violações a direitos básicos, que precisam ser enfrentados no desenho dos novos programas habitacionais pelos municípios.

Para as famílias mais empobrecidas, em especial as chefiadas por mulheres, o conjunto dos aspectos destacados é mais impactante, ampliando as extorsões derivadas da execução desse modelo de política habitacional. 

Considerando o relançamento do PMCMV e a possibilidade de utilização de seus recursos para programas mais inovadores e com maior potencial na efetiva atenção da população mais pobre; como o Morar Primeiro, defendido pelo movimento social da população em situação de rua; a locação social com a formação de estoques públicos de habitação em áreas bem localizadas; a urbanização de favelas, dentre outros; torna-se fundamental que as novas gestões municipais eleitas redirecionem o rumo da atuação estatal. 

Será preciso repensar o modelo de produção habitacional, organizando-se institucionalmente, no âmbito municipal, para atender com prioridade, qualidade e efetividade a população mais empobrecida. Para tanto, é necessário que prefeitos e vereadores eleitos reconheçam as limitações da política habitacional que tem sido praticada, acolham e priorizem as demandas e necessidades da população mais pobre, e substituam a lógica da habitação como mercadoria, para compreendê-la como um direito social.

Referências:

CURITIBA. Planos Setoriais Habitação e Regularização Fundiária: Diagnóstico. Curitiba, 2020.
FERREIRA, Érika Poleto. O custo global da implantação do programa minha casa minha vida na metrópole de Curitiba. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano) – Setor de Tecnologia, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, p. 183, 2019.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E PESQUISA (IBGE). Censo. Amostra: Rendimento. Brasil, 2010. Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2021.
Ministério do Desenvolvimento Regional; Secretaria Nacional de Habitação. Programa Minha Casa, Minha Vida - unidades contratadas no Estado do Paraná. Posição em fevereiro de 2020.
Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. VISDATA. Quantidade total de famílias em situação de rua inscritas no Cadastro Único. Brasília, 2024. Disponível em: <www.https://aplicacoes.cidadania.gov.br/vis/data3/data-explorer.php.Acesso em 14 de abril de 2024>.
MOURA, Rosa; BALISKI, Patrícia; NUNES DA SILVA, Madianita; GORSDORF, Leandro. Censo 2022: crescimento periférico, expansão da metrópole e diversidade na Região Metropolitana de Curitiba. Artigos semanais. Boletim do Observatório das Metrópoles, 28 set. 2023.
SANTOS, Fernanda Andrade dos. Os efeitos territoriais do Programa Minha Casa Minha Vida em São José dos Pinhais: município da metrópole de Curitiba. Curitiba: Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Planejamento Urbano da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2020.
SILVA, Kamila Anne Carvalho da. O direito à cidade e à moradia das mulheres beneficiárias do Programa Minha Casa Minha Vida Faixa 1 no Município de Curitiba. 162 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, Setor de Tecnologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2021.
VASCO, Kelly Maria Christine Mengarda. O Programa Minha Casa Minha Vida como ferramenta de intervenção nas favelas de Curitiba: o caso da Vila Santos Andrade. 210 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano) – Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018.

 

Kelly Maria Christine Mengarda Vasco é Assistente Social, Mestra em Planejamento Urbano pela UFPR e Doutoranda em Serviço Social na PUC-SP. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles, o Laboratório de Habitação e Urbanismo (LAHURB) da UFPR e o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Movimentos Sociais (NEMOS) da PUC-SP.

Madianita Nunes da Silva é Arquiteta e Urbanista, Mestre e Doutora em Geografia pela UFPR, com Pós-doutorado no Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão do Território da UFABC, Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano da UFPR. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles e o Laboratório de Habitação e Urbanismo (LAHURB) da UFPR.

Patricia Baliski é Geógrafa, Mestre e Doutora em Geografia pela UFPR, Professora do Instituto Federal do Paraná, campus União da Vitória. Integra o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles.

*Este artigo é resultado de parceria entre o Brasil de Fato Paraná e o Núcleo Curitiba do Observatório das Metrópoles 

Edição: Pedro Carrano