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Privatização da Usina do Gasômetro: ‘Se Melo não gosta de gerir a cidade, que renuncie’

Prefeitura de Porto Alegre propõe passar a gestão do espaço cultural à iniciativa privada por 20 anos

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Fechada desde 2017, reabertura da Usina do Gasômetro está prevista para ainda este ano - Foto: Marcelo Viola/PMPA

A audiência pública que debateu a proposta do governo do prefeito Sebastião Melo (MDB) de privatizar a gestão da Usina do Gasômetro, realizada na noite da quinta-feira passada (21) na Câmara, foi marcada pela pouquíssima participação da população e por manifestações contrárias à intenção da Prefeitura. Realizada no formato híbrido, presencial e on-line, o público no plenário Otávio Rocha não chegou a 20 pessoas e, pela internet, o pico de audiência contou com somente 26 interessados.

O tradicional espaço cultural da cidade está fechado desde 2017, com as obras de revitalização agora previstas para serem concluídas até o final do ano. O investimento estimado é de R$ 20,6 milhões em 11 mil m² de área útil, com a reforma estando 70% concluída, de acordo com a Prefeitura.

Segundo o governo municipal, o local abrigará um novo complexo cultural por meio de parceria com a iniciativa privada. A proposta prevê que, por 20 anos, uma empresa privada faça a operação do Gasômetro, com gestão compartilhada com o poder público. O governo municipal afirma que o viés cultural da usina será mantido, com o espaço aberto ao público e acesso gratuito a diversas áreas. Na audiência, a Prefeitura apresentou um cronograma de eventos com ingresso gratuito, em diversas datas ao longo do ano, como no aniversário da cidade, Natal, Noite dos Museus, POA em Cena, Bienal, entre outros.

Ao justificar a decisão do governo Melo em passar a gestão do espaço para uma empresa privada, a secretária municipal de Parcerias, Ana Pellini, argumentou que realizar a obra de restauração tem sido muito difícil e que conservar a Usina depois de pronta é tão complicado quanto. Como exemplo, falou da dificuldade em manter a conservação dos vidros alvos de vandalismo. “Por essa razão, estamos propondo uma nova forma de administração com a iniciativa privada para nos ajudar a gerir”, sustentou. A secretária ainda considerou que colocar uma empresa privada para fazer a gestão do local é “uma forma de democratizar” o acesso à cultura. Num arroubo entusiástico, Pellini chegou a dizer que nova Usina do Gasômetro será “o melhor centro cultural da América Latina”.

Elaborado com consultoria da SP Parcerias, o projeto prevê 13 espaços culturais na usina. Entre eles, um teatro, cinemas, salas de exposições, de danças e de ensaios. Também foram projetados cinco espaços de permanência (terraços, coworking, entre outros), e quatro de serviços em locais pré-determinados (incluindo cafeteria, bar, restaurante e loja de souvenir).

Se haverá data com atividades gratuitas, também haverá outras com a cobrança de ingresso, como uma das formas de remuneração da empresa privada que assumir a gestão do espaço. “O parceiro privado poderá também oferecer atividades sócio-educativas, culturais e recreativas”, disse a secretária de Parcerias do governo Melo. A empresa selecionada poderá realizar eventos, apresentações, exposições, cursos e serviços relacionados à produção cultural, comercializar alimentos e bebidas nos espaços pré-determinados e fazer locação de ambientes para atividades liberadas pela Prefeitura.

A possibilidade de atrações com cobrança de ingressos foi o principal foco das críticas de quem participou da audiência pública. Uma das contestações veio de Rozane Dalsasso, presidente do Conselho Municipal de Cultura. “O governo serve para governar. A Prefeitura entende que vai economizar recursos ao colocar outra empresa para cuidar dos espaços e entendemos que isso não é correto. Quando um governo não gosta de cultura, a primeira coisa é acabar com a cultura. Vimos isso no governo federal”, destacou.

Rozane lembrou a recente polêmica na reinauguração do Teatro de Câmara Tulio Piva, no qual a Prefeitura divide a gestão do espaço com a Opinião Produtora. Após 10 anos fechado, o teatro foi reaberto há poucos dias e o primeiro edital da prefeitura favoreceu apenas espetáculos musicais, deixando de fora as artes cênicas, circenses e a dança. “A Usina não pode ser novamente passada para outro ente, tem que ser pública em todos os sentidos e a prefeitura tem condições. Investiu muito agora, por que não fazer isso?”, questionou.

A secretária municipal de Parcerias, Ana Pellini, explicou que a prefeitura projeta um custo anual de R$ 4,9 milhões para a operação da Usina do Gasômetro, sendo que deste valor, o máximo de R$ 3,9 milhões anuais será bancado pelo governo municipal. O critério de disputa na concorrência que será realizada considera o menor valor da prestação a ser paga pela prefeitura.

Após a consolidação do relatório de contribuições da consulta e audiência públicas, o projeto será enviado ao Tribunal de Contas do Estado (TCE), que tem até 90 dias para devolver a análise. O passo seguinte será o lançamento do edital de concorrência para definir a empresa privada, o que deve ocorrer ainda em 2024, segundo a projeção da prefeitura.


Audiência pública na Câmara teve baixa participação da sociedade civil / Foto: Pedro Piegas/PMPA

O preço da cultura

Se entre a sociedade civil a participação na audiência pública foi pequena, entre os vereadores não foi muito diferente. Apenas dois parlamentares se apresentaram para debater a proposta da Prefeitura, Aldacir Oliboni e Jonas Reis, ambos do PT.

A presença de Oliboni, inclusive, foi sintomática dos dias vividos pelos porto-alegrenses. Participando de forma on-line, o vereador surgiu na escuridão, com apenas o rosto um pouco iluminado, devido à falta de luz causada pelo temporal que atingiu a cidade na quinta-feira (21) e cuja energia elétrica ainda não foi plenamente reestabelecida pela CEEE Equatorial.

Oliboni definiu o projeto da Prefeitura como sendo mais parecido com um “shopping do que um espaço cultural” e afirmou que a proposta precisa ser melhor debatida na cidade. “Não é só a questão da quebra de um vidro que justifica a privatização”, pontuou, fazendo referência à fala anterior da secretária Ana Pellini.

Também de modo virtual, o vereador Jonas Reis lembrou a situação do Araújo Vianna, concedido para a Opinião Produtora, que mantém uma programação de shows elogiada pela qualidade, porém com valores de ingressos considerados caros. A barreira financeira, disse ele, faz com que o também tradicional espaço cultural da cidade não tenha mais o caráter público.

“Melo quer uma cidade para quem pode pagar. Olha o que virou o Cais Embarcadero. Quem não tiver dinheiro, não acessará os espaços culturais. Porto Alegre já teve uma cena cultural maravilhosa e, em breve, teremos somente uma cultura paga”, afirmou, enfatizando ainda a ausência de preocupação em promover cultura nos bairros periféricos da Capital.

Representando o Comitê de Lula para Cultura, Daniel Gomes criticou o fato da Prefeitura apresentar um projeto pronto, sem diálogo prévio com as entidades e atores da cultura local. Disse que por muito tempo a Usina do Gasômetro foi bem gerida pelo poder público e que a proposta do governo Melo reserva poucas datas para atrações públicas ao longo do ano.

“Como os grupos teatrais farão uso da Usina numa gestão voltada para o mercado e não para a sociedade?”, perguntou. Gomes ainda questionou a decisão do governo Melo de passar a gestão do espaço à iniciativa privada por 20 anos, retirando dos futuros prefeitos o direito de administrar um bem público. “Se ele (Melo) não gosta de gerir a cidade, ele que renuncie”, afirmou.


Fotos aéreas da vistoria nas obras da Usina do Gasômetro / Foto: Marcelo Viola/PMPA

Obrigatoriedades e receitas

De acordo com o projeto apresentado pela Prefeitura, entre as responsabilidades da empresa privada estão a preservação e a limpeza do local, considerando o tombamento vigente, além do monitoramento por câmeras de vigilância, instalação de mobiliário, colocação de piso podotátil, entre outras ações.

O projeto também estipula que o parceiro não poderá ter fonte de receita com atividades comerciais não previstas em edital ou não aprovadas pela Prefeitura, não poderá cobrar ingresso para uso de sanitário, para ingresso na exposição permanente da casa e para entrada na usina, “salvo em casos exclusivos e pontuais”, ressalta a Prefeitura.

Na apresentação, o governo municipal destacou que a empresa que vencer o edital de concorrência poderá realizar eventos, apresentações, exposições, cursos e serviços relacionados à produção cultural, comercializar alimentos e bebidas nos espaços pré-determinados e fazer locação de ambientes para atividades liberadas pela Prefeitura.

Longa reforma

A Usina do Gasômetro foi fechada para revitalização em 2017, mas o contrato para o serviço só foi firmado com o consórcio em dezembro de 2019. As obras foram iniciadas em janeiro de 2020, ao custo de R$ 11.449.000,00 e previsão de conclusão em abril de 2021.

Em janeiro de 2021, foi firmado um aditivo no contrato no valor de R$ 2.522.314,15, elevando o total da reforma para R$ 13,9 milhões. As obras, no entanto, foram paralisadas em outubro daquele ano e os trabalhadores contratados pelo consórcio foram demitidos. Na ocasião, segundo a Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura (Smoi), a paralisação ocorreu por um erro no projeto.

Em março de 2022, um novo aditivo foi assinado prorrogando o prazo e elevando o valor total da obra para R$ 16,33 milhões. Em julho de 2022, a Secretaria Municipal de Obras e Infraestrutura informou à reportagem que, após a operacionalização, a obra estava orçada em R$ 16,5 milhões, o que representou um acréscimo de 44% em relação ao valor original. Agora, a Prefeitura anuncia que a conclusão da obra deve chegar a R$ 20,6 milhões.

Edição: Sul 21