Rio de Janeiro

Coluna

Participação social e gestão urbana do Rio de Janeiro: entraves e caminhos para superá-los

Entendemos que a superação dos diversos desafios urbanos necessariamente passa pela priorização de medidas de aprofundamento democrático - Leonardo Coelho/ ComCat.
Este é o momento de reivindicar participação democrática, solicitando o compromisso dos candidatos

Humberto Meza*, Taísa Sanches**, Erick Omena*** e Filipe Souza Corrêa****

O Brasil tem sólida experiência na criação de inovações institucionais para democratização de processos políticos. Exemplo disso são os orçamentos participativos, o planejamento urbano municipal por meio dos planos diretores participativos e os conselhos setoriais de políticas públicas. Contrariando esse acúmulo, a efetiva participação social para gestão urbana do Rio de Janeiro continua sendo parte de uma trama ficcional. Apesar da potencialidade democrática presente nas mais variadas associações, coletivos, movimentos sociais e organizações que se espalham pela cidade, enfrenta-se a incapacidade do Estado de garantir a inserção dessa riqueza associativa nos instrumentos da política urbana do município. 

Dentre os exemplos dos últimos anos, destaca-se a mais recente revisão do Plano Diretor (PD), publicada como Lei Complementar Nº 270, em janeiro de 2024, que evidenciou como falta interesse para inclusão das demandas de associações, movimentos sociais e entidades comprometidas com uma gestão urbana mais justa.

É preciso lembrar também da proposta de revitalização do centro da cidade, representada pelo projeto Reviver Centro, que favorece a lógica especulativa do mercado imobiliário, sob um regime excepcional de gestão, longe das pautas propostas por movimentos sociais interessados em garantir o acesso à moradia digna nas áreas centrais. Soma-se a isso o fato de que algumas das Instituições Participativas (IPs) emblemáticas do sistema brasileiro, como Orçamento Participativo (OP), Conselhos e Conferências Setoriais de Políticas Públicas, permanecem em estado de inanição no município.

A experiência pouco promissora da participação social na capital fluminense não apenas se confronta com a riqueza da dinâmica coletiva da sociedade civil, como é pouco reativa ao estímulo participativo nacional. Com a rearticulação da Secretaria Geral da Presidência (SGP), o Governo Federal conduziu a formação do Conselho de Participação Social (CPS), que durante o ano de 2023 fortaleceu o vínculo com mais de 68 entidades da sociedade civil.

Essa infraestrutura mobiliza a participação social através de duas esferas. Por um lado, via Fórum Interconselhos, que durante todo o ano de 2023 promoveu os encontros dos diversos conselhos setoriais nacionais. Por outro, em articulação com o Ministério de Planejamento, que desenvolveu a construção participativa do Plano Plurianual 2024 – 2027 nos 26 estados brasileiros, permitindo, segundo a SGP, a participação direta de mais de 34.000 pessoas, presencialmente, e mais de 1.4 milhão, de forma remota.

No Rio de Janeiro, esse processo reverberou na articulação de mais de 11 redes de coletivos de organizações e movimentos sociais que entregaram, ao menos, 10 propostas de políticas públicas.

As pautas abordaram temas como a necessidade de ampliação de direitos trabalhistas e de uma agenda do processo de reindustrialização brasileira, sem abandonar demandas urgentes contra a violência de gênero e nas favelas, além da questão climática. As contradições entre a prática cidadã, capaz de elaborar propostas políticas, e a falta de abertura institucional para incorporá-las evidencia a situação atual da questão da participação no município. Para compreendê-la melhor, vejamos com mais detalhes alguns casos concretos.

Quando os espaços institucionais fecham as portas para a participação social

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou a revisão do Plano Diretor (PD) do município nos últimos dias de 2023, após um processo fortemente criticado como excessivamente burocrático e pouco acessível para a participação efetiva da população. Embora a revisão tenha começado em 2019, ela só foi amplamente desenvolvida a partir de 2021, com o arrefecimento da pandemia de Covid 19. Nos dois anos de debate, não faltaram críticas das organizações sociais em relação ao cronograma apertado para elaboração de propostas e ao baixo número de audiências públicas realizadas pelo Poder Executivo.

Por exemplo, propostas para o fortalecimento da política de moradia na cidade, como a regularização fundiária urbana, criação e proteção das áreas e zonas especiais de interesse social e até mesmo o processo de titulação, ficaram restritas a apenas sete audiências públicas, nas quais foram analisadas 215 emendas, a maioria delas relacionadas às regras sobre uso e ocupação do solo. 

Outros temas relevantes para o direito à moradia, como a possibilidade de remoções sujeitas aos critérios de “condição de risco” ou uma revisão das diretrizes de Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), não apenas deixaram de fora as propostas técnicas das organizações e associações, como mantiveram as regras de acordo com os interesses do mercado imobiliário, especialmente no caso das construções estimuladas no âmbito do projeto Reviver Centro.

Na reta final do processo, os vereadores adequaram o texto com pelo menos 475 novas emendas que não foram submetidas ao escrutínio das representações da sociedade civil, ao ponto de a Federação da Associação de Moradores (FAM-Rio) da cidade chegar a considerar a judicialização do processo de aprovação do Plano Diretor. A Prefeitura continua argumentando que a revisão do PD mobilizou a participação social por meio das audiências públicas, mas, na prática, nenhuma das propostas surgidas nesse espaço sobreviveu à aprovação final do texto. 

Situação análoga é encontrada na concepção e implementação de grandes projetos em curso na cidade.

Empreendimentos de “revitalização” da área central, como Porto Maravilha, iniciado há mais de dez anos, e o mais recente projeto Reviver Centro, mostram que o poder público municipal mobiliza um arranjo institucional para atender prioritariamente aos interesses dos investidores, ainda que as diretrizes pautadas pelo Estatuto da Cidade orientem a coordenação dos diversos atores para empreendimentos urbanos de grande porte.

No caso da área portuária, o projeto tem origem em três grandes empreiteiras (Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia), que em 2006 apresentaram a Proposta de Manifestação de Interesse contendo as bases e fundamentos do que, mais tarde, se tornou a referida intervenção, incluindo a utilização de instrumentos como a OUC, a emissão de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPAC), fundos de investimento imobiliário e uma agência de desenvolvimento semiautônoma (CDURP). Foram também essas empreiteiras que venceram a licitação da correlata Parceria Público Privada, praticamente sem concorrência. Propostas que emergiram nas poucas audiências públicas realizadas nunca foram de fato concretizadas, como, por exemplo, a exigência de elaboração e implementação de um programa de habitação social nos bairros portuários.

No Programa Reviver Centro, criado em 2021, com o intuito declarado de reconfigurar o centro da cidade, acontece a mesma dinâmica. Originalmente, o principal agente institucionalmente responsável pela iniciativa foi o Grupo de Trabalho (GT) criado pelo prefeito para elaborar o Plano de Requalificação do Centro. Esse GT era composto tão somente de representantes das diferentes secretarias municipais. De acordo com a lei que define sua criação, a sociedade civil participaria do debate sobre o tema se algum membro assim solicitasse. Em apenas três meses, a minuta de lei que deu origem ao programa já estava pronta. E em pouco mais de dois meses, o projeto de lei se transformou em legislação na Câmara dos Vereadores. 

O que podemos aprender com as experiências participativas comunitárias?

Ainda que o processo de aprovação do Plano Diretor e do projeto de intervenção no centro da cidade tenham sido excludentes em diversos sentidos, como discutido, é importante destacar alguns resultados positivos, tais como a inclusão das favelas no Plano Diretor, possibilitando que recursos sejam destinados a esses espaços, e a inclusão do Termo Territorial Coletivo (TTC) como modelo de regularização fundiária a ser buscado. Tais pontos marcam a importância da organização associativa das favelas na proposição de soluções democráticas de planejamento urbano.

Isso nos leva a crer que há um significativo aprendizado associativo popular a ser levado em conta, quando tratamos de formas de participação cidadã.

Também que os espaços políticos podem abrir caminhos de diálogo importantes nesse sentido. Algumas propostas construídas em redes associativas trazem proposições baseadas em aprendizados coletivos que nos dão pistas sobre como alargar a participação social no desenho de políticas públicas urbanas. 

Mas o que queremos dizer quando falamos em aprendizados coletivos para o desenho de políticas públicas? Algo fundamental para responder essa questão é a compreensão de que a produção e divulgação de dados estatísticos é essencial quando tratamos de planejamento e participação. As favelas cariocas foram historicamente invisibilizadas pelo Estado, não sendo reconhecidas como parte constituinte da cidade, o que refletiu em uma série de políticas baseadas em remoção forçada e na  homogeneização de percepções a partir de estigmas relacionados à ilegalidade e à criminalidade. 

Até o ano passado, a produção de dados oficiais sobre as favelas e comunidades, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), denominava esses espaços como aglomerados subnormais, agora oficialmente denominados como Favelas e Comunidades Urbanas. Tal representação distorcida das carências e desafios da vida cotidiana nas favelas e comunidades influenciou, durante anos, a forma como as políticas públicas eram desenhadas. 

Essa transformação vem de mãos dadas com iniciativas locais de produção de bases informativas sobre a realidade das favelas cariocas. É o caso, por exemplo, da construção coletiva do relatório "Justiça Hídrica e Energética nas Favelas". A iniciativa, organizada pela Rede Favela Sustentável, foi protagonizada por 30 jovens e 15 lideranças de favelas localizadas em cinco municípios do Grande Rio, e contou com dados de 1.156 famílias, a respeito da qualidade e eficiência do fornecimento de água e luz em suas casas. Além de expor os dados, o relatório traz proposições de políticas públicas factíveis e em diálogo com a realidade e necessidades da população, tais como a implementação de uma tarifa social e o cadastramento de bombeiros e eletricistas locais.

No Complexo da Maré, uma iniciativa denominada Cocôzap utiliza o WhatsApp como uma ferramenta de mapeamento de denúncias sobre saneamento básico, abastecimento de água e coleta de lixo na região. A disseminação desse instrumento de comunicação serve como um passo inicial para o aprofundamento de dinâmicas de debate sobre o acesso aos serviços públicos e a mobilização para incidência política fundamentada em diagnósticos mais sensíveis à realidade cotidiana dos residentes de favelas. 

As memórias das populações faveladas também se constituem como importante inspiração de políticas públicas baseadas em aprendizados coletivos.

O Grupo Memória Climática das favelas é um exemplo disso. Formado por organizações comunitárias, e também com o apoio da Rede Favela Sustentável, o coletivo organizou cinco rodas de conversa em diferentes territórios cariocas em 2023, levantando questões acerca das relações entre favelas, meio ambiente e desastres ambientais. Os encontros deram origem a uma exposição itinerante que aponta caminhos de incidência no sentido de evitar desastres ambientais. 

Por sua vez, o Governo Federal tem aberto espaços de participação desde 2023, com a retomada dos Conselhos Participativos, por exemplo. Nas eleições estaduais e municipais, o Conselho das Cidades, a partir de suas conferências estaduais e municipais, têm o importante desafio de pautar temas fundamentais para a efetivação da participação. Em meio a um ambiente político hostil e voltado ao mercado, como o do Rio de Janeiro, temos muito a aprender com as organizações comunitárias.

Entendemos que a superação dos diversos desafios urbanos necessariamente passa pela priorização de medidas de aprofundamento democrático no âmbito da gestão municipal e metropolitana, de forma a dar vazão a toda a potência inovadora emergente dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada. Para tanto, propomos, como passo inicial e fundamental, a criação de conselhos participativos regionais, com base nas divisões territoriais e administrativas já existentes (Bairros, Regiões Administrativas e Áreas de Planejamento), incentivando, assim, a efetiva aproximação da gestão municipal da população e de suas demandas.

Para esse modelo funcionar, será necessário que as administrações das Regiões Administrativas (RAs) tenham seu escopo de atuação incrementado a fim de incidir diretamente nas decisões municipais; que seus representantes sejam eleitos pelos próprios residentes das RAs e não mais pelo prefeito e que seja restrita a participação de agentes do setor privado, entre outras diretrizes. Essa proposta tem como base a experiência municipal de finais dos anos 80s (no governo de Saturnino Braga), que não perdurou por razões orçamentárias e de baixo apoio federal. 

Este é o momento de reivindicarmos a radicalização democrática, solicitando o compromisso formal dos(as) candidatos(as) a prefeito(a) com a proposta de descentralização baseada na criação de conselhos participativos locais, sem perder de vista o necessário e duro enfrentamento aos desafios que daí poderão emergir. 

*Humberto Meza é Doutor em Ciência Política;

**Taísa Sanches é professora visitante e pesquisadora de pós-doutorado (FAPERJ) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ);

*** Erick Omena é Doutor em Política e Planejamento, professor adjunto do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ);

 ****Filipe Souza Corrêa, Doutor em Ciência Política, professor adjunto do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ);

 Todos os autores são pesquisadores do INCT Observatório das Metrópoles, Núcleo Rio de Janeiro.

Revisão: Renata Melo

Edição: Mariana Pitasse