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Bloco de Samba Boca Negra entrevista Evanira dos Santos, a maior cantora do Paraná

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Cortejo em 2024 do Bloco de Samba Boca Negra - Foto: Nena Inoue
O samba convida a conhecer a vida da mais querida e ouvida artista popular

Escrito com Leo Fé

Em 2024, nós, do Bloco de Samba Boca Negra, homenageamos a cantora Evanira dos Santos, com o samba-tema composto para a nossa saída de rua durante o carnaval, que ocorre anualmente na região da antiga Vila Tassi, conhecida atualmente como Vila Capanema.

O cortejo aconteceu no dia 13 de fevereiro, terça-feira carnavalesca, e contou com a presença estimada de cerca de 120 pessoas. Se comparado ao ano anterior, o primeiro após a pandemia, houve um aumento de dez vezes mais pessoas, o que nos emocionou profundamente, como integrantes do Bloco.

O Boca Negra se movimenta artesanalmente, com recursos muito modestos, guiado pelo desejo de resgatar a cultura popular do samba no Paraná, retomando a memória afrocuritibana e afroparanaense, bem como a resistência da nossa classe trabalhadora. O período do carnaval é o ponto alto de nossa organização que, durante o ano, se organiza fazendo pesquisas, debates, composições e, sobretudo, rodas de samba – que é o nosso “artigo 7º”, uma referência à expressão que os fundadores do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, no Rio de Janeiro, usavam para dizer que toda reunião, por mais politizada que fosse, deveria terminar em samba. Virou nosso princípio também!

Para este ano, após destacarmos a história da primeira escola de samba de Curitiba, a Colorado (2017); a presença negra e trabalhadora em nossa cidade (2018); a vida da primeira engenheira negra do Brasil, que é paranaense, Enedina Alves Marques (2023); achamos por bem dedicar nosso samba-tema a Evanira dos Santos, artista de múltiplas faces, que ganhou o título de maior cantora do Paraná, a partir da década de 1950. Tendo nascido em 1939, teve uma vida inteira dedicada à arte e à cultura. Evanira foi, além de cantora (e ressaltamos que foi a nossa maior!), também atriz, apresentadora de rádio e televisão, funcionária pública e gestora cultural em Curitiba, entre tantas outras dimensões de sua atuação.

Hoje, completando 85 anos de idade e residindo no município de Laguna, em Santa Catarina, Evanira não exerce mais seus dons artísticos em público, gozando de um justo descanso. Mas nós, do Boca Negra, achamos que isso não é motivo para que não a reverenciemos. Por isso, cantamos sua vida e obra no samba “Evanira, a maior cantora do Paraná” (composição de Leo Fé e Ricardo Prestes Pazello, ambos componentes do Bloco) e o levamos para as ruas da Vila Tassi, no carnaval.

Após entoarmos os clássicos sambas dos pioneiros do samba de Curitiba – de Maé da Cuíca a Homero Réboli e Cláudio Ribeiro, passando por Janguito do Rosário, Lápis, e Chocolate – saímos do Viaduto do Colorado e nos dirigimos ao tradicional ponto de chegada de nosso cortejo, a casa 23 da rua Pedro de Araújo Franco, onde morava Ismael Cordeiro, mais conhecido como Maé da Cuíca. No território sagrado onde o samba curitibano foi fundado e difundido para toda a cidade, fizemos uma roda que contou, além de familiares de Evanira, com a velha guarda e a nova geração (inclusive a novíssima geração, ostentando nosso estandarte) de nosso mais popular ritmo – que, muito mais que “ritmo”, é um modo de vida.

O samba-tema denominado “Evanira, a maior cantora do Paraná” tem a seguinte letra:

“Evanira, a maior cantora do Paraná”  (Leo Fé e Ricardo Prestes Pazello)

Nascida em 1939,
A voz que o Boca Negra exalta o nome
E vem homenagear... 
Evanira, a maior cantora do Paraná!
E vem homenagear... 
Evanira, a maior cantora do Paraná!

Evanira, cantar nunca foi em vão,
Eva negra que chega em meu pavilhão.
E da Vila vestida para coroar 
O samba convida a conhecer a vida
Da mais querida e ouvida artista popular.
Nas ondas do rádio e na rede televisiva, 
Evanira canta, encanta e atua, é atração principal.
Escreveu com Lápis a história da despedida
Do grande Babalarorixá em seu funeral.
Boca Negra enaltece a voz doce e bonita
Da rainha, estrela que brilha em nosso carnaval...
Da rainha, estrela que brilha em nosso carnaval..

Ante os preparativos do de carnaval, pensamos: por que não entrevistar Evanira dos Santos no ano de sua homenagem? A idéia se concretizou por meio de uma conversa virtual, que buscou registrar o depoimento dessa que foi uma das mais brilhantes de nossas estrelas. A entrevista aborda como foi seu encontro com a música e a influência familiar, sua trabalho no rádio e na televisão, seu legado para o teatro, bem como sua atividade profissional junto à Fundação Cultural de Curitiba – das Oficinas de Música ao Museu de Arte Sacra. Uma contribuição gigantesca que não tem justificativa que explique o relativo esquecimento em que se encontra. Relativo porque nós, do Bloco de Samba Boca Negra, achamos por bem fazer esse resgate, no mês da luta das mulheres, e darmos nossa pequena contribuição para que a trajetória dessa mulher negra seja enaltecida e lembrada por todas e todos.

A seguir, a entrevista, com perguntas elaboradas por Leo Fé e Ricardo Prestes Pazello (e que contou com a colaboração de Lucas Botelho Neves, do Brasil de Fato Paraná, na transcrição, a quem agradecemos), tendo sido realizada por Leo Fé no início de fevereiro. Nossa homenagem e eterno agradecimento à cintilante Evanira dos Santos, por tudo o que fez pela nossa arte e cultura.

BLOCO DE SAMBA BOCA NEGRA: Como foi sua infância, em Curitiba? E como e quando a música apareceu pra você?

EVANIRA DOS SANTOS
: Nasci em Curitiba e desde pequena eu gostava de música, tanto que, nos natais, o Papai Noel pedia para eu cantar, porque minha família é uma família de músicos. De músicos assim, só meu tio, o Nilo, tocava naquele regional que se apresentava na feirinha de domingo [“Choro e Seresta”].

E os meus tios, eles se reuniam lá em casa no domingo antes do almoço, porque meu pai era o irmão mais velho. Então reuniam os irmãos lá, e eles ficavam  brincando, tocando,  então desde pequena eu já ouvia isso e já via também.


Evanira dos Santos, a maior cantora do Paraná, hoje com 85 anos / Foto: acervo pessoal

Depois, quando eu cresci, quando eu fiz 13 anos, minha tia me levou pra fazer um teste na Rádio Guairacá, pra cantar no [programa] “Grêmio Juvenil M5”. Daí eu fui cantar no “Grêmio Juvenil M5”, fiquei cantando acho que quase um ano e, depois, a Rádio Guairacá, então, me contratou pra cantar à noite. Eu cantava na “Feira da alegria”, antes do Nhô Belarmino e Nhá Gabriela, porque eles encerravam a noite de música no domingo.

E foi assim. E daí pra frente eu fiquei cantando na rádio: cantei na Rádio Guairacá muitos anos; depois cantei na [Rádio] PRB2 também; tive programa na Rádio Colombo, na hora do almoço. E daí foi assim, aconteceu tudo aquilo depois, de eu cantar no teatro e tudo mais.

Inclusive, me lembrei de uma coisa: a primeira vez que cantei em público foi num parque de diversões. Eu morava na Vila Isabel, sempre tinha assim um lugar que tinha um parque e era aos domingos. Tinha um programa de calouros, aí eu resolvi cantar um dia nesse parque e ganhei o prêmio, o primeiro lugar. Era cinqüenta mil réis, naquele tempo não sei quanto é que era, só sei que eu ganhei o primeiro prêmio.

BOCA NEGRA: Você nasceu em Curitiba e em qual bairro viveu?

EVANIRA:
Olha, eu nasci em Curitiba e me criei no bairro – nos bairros, na verdade. Primeiro, até os 13 anos, na Vila Isabel, e depois eu fui morar no Santa Quitéria. Foi aí que as coisas aconteceram. Quando eu falei pra você que eu fiz 13 anos [com o teste para a rádio], aos 14 anos eu já estava cantando a noite, né, e aí foi embora. Passei pelo programa “Feira da alegria”, que eu contei pra você, então... E foi assim, então, a situação. E agora eu estou gostando muito, muito do que os meninos [do Bloco de Samba Boca Negra] estão cantando, né, nossa, uma emoção, porque nunca ninguém lembrou de me homenagear, só vocês agora, meus queridos!

BOCA NEGRA: O que a levou a cantar no rádio paranaense? Quais as recordações mais marcantes da era do rádio, em especial da Rádio Guairacá? 

EVANIRA:
Sobre a Rádio Guairacá, era uma rádio, assim, muito familia, né, todo mundo se dava, todo mundo se entendia e a gente nem parecia que estava lá pra cantar, era uma diversão mas uma diversão sadia. O regional e todos os  componentes eram amigos, bem queridos – o regional do Janguito, do Janguito não, do Zé pequeno, né.

Depois tinha o regional do Hamilton Paraná, cantei muito também com ele... E fui assim, em frente, cantei também na inauguração do Canal 6, foi muito bom pra mim, muito assim, cantar com o Pery Ribeiro, finalmente. Porque eu adorava o Pery Ribeiro, então eu fiquei muito feliz de estar lá e conhecê-lo, né, gostei muito, muito. Esse dia foi muito glorioso pra mim.

BOCA NEGRA: Você comentou da satisfação de cantar na inauguração do Canal 6, o segundo canal de TV do Paraná, a 19 de dezembro de 1960 na Sociedade Thalia. Como foi para você essa experiência, de ter feito televisão no nosso estado? E o programa “Evanira canta”: como surgiu o convite, como ele aconteceu e quanto tempo durou?

EVANIRA: O meu ex-marido que agora já é falecido, o Jair Brito, ele que regia a minha carreira, né. Então era ele que sempre arrumava as coisas, eu nunca sabia quem, como é que convidavam, né, primeiro falavam com ele – naquele tempo era assim, né, primeiro tinha que falar com o marido, pra depois o marido vir e falava se eu queria fazer as coisas ou não. 

Então, esse programa na televisão, “Evanira canta”, eu só sei que era assim, ele escrevia os textos e um locutor... não era locutor... um apresentador falava os textos para cada música que eu cantava, sabe? E durou, assim, durou acho que quase um ano.

BOCA NEGRA: E a história de ser “a maior cantora do Paraná”, como recebeu esse título?

EVANIRA:
Viu, esses títulos que eu tive de melhor cantora foram mais de um, né. E aí, isso aí era o jornal, era um jornal que patrocinava, ele que fazia. Era um jornal, só que eu não sei, não lembro qual era o nome do jornal. E as pessoas compravam e tinha uma página lá para votar e aí votavam. Eles citavam as cantoras que tinham e aí as pessoas votavam.

BOCA NEGRA: Sabemos que você atuou em vários espetáculos nos anos de 1970, em especial sob a direção de Oraci Gemba, como “Arena conta Zumbi” (Guairão), “Arena conta Tiradentes” (Paiol) e “Funeral para um Rei Negro”, ao lado do cantor e compositor Lápis. Qual a importância da experiência com teatro e peças musicais?

EVANIRA:
Eu já tinha feito a “Arena conta Zumbi”, a “Arena conta Tiradentes”, quando eu resolvi entrar para o curso de teatro que tinha no Teatro Guaíra, eu e o Gemba era o meu professor. E quando ele resolveu fazer o “Funeral para o Rei Negro”, ele me convidou, daí, porque ele já conhecia meu trabalho. Daí ele me convidou e foi muito bom, foi muito bom porque, nos outros, eu atuei mais cantando e com presença de palco, nas outras peças.

Mas na “Arena”, eu tinha textos. Eram textos pra antes de cada música e quem escreveu foi a Iara Sarmento. E aí o Gemba ia lá na minha casa ensaiar todos os textos comigo, para falar antes de cada música que fosse cantar, como no “Funeral para um Rei Negro” – eu tinha que falar os textos antes. E foi assim. Nossa, foi super, super bom pra mim, porque daí eu reuni as duas coisas: o de atriz e cantora. Foi muito bom.

BOCA NEGRA: E você se recorda as peças em que atuou nos anos de 1990 como, por exemplo, "As bruxas de Salém" e " Óperas dos 3 vinténs": como foi para você?

EVANIRA:
Ó, nas peças que o Marcelo Marchioro dirigiu, foram duas peças, e eu fiz as duas últimas, a “Ópera dos 3 vinténs” e “As Bruxas de Salém”. N’“As bruxas de Salém”, eu atuei como atriz mesmo e não tinha música na peça, deixa eu ver se tinha. N’“As bruxas de Salém”, eu atuei como atriz, foi o Marcelo Marchioro que dirigiu essa peça. Ele já conhecia meu trabalho anterior, então me convidou e foi muito bom. Essa foi uma experiência muito, muito boa, mesmo. Eu participando, trabalhando com os atores, com os atores que eu conhecia, né, e foi muito bom, muito bom mesmo. Uma experiência maravilhosa.

E a “Ópera dos 3 vinténs” era um musical também, e o Marcelo Marchioro foi quem dirigiu. Então, eu já estava vindo da peça anterior e daí ele me convidou para fazer essa. Gostei muito, porque eu fazia o papel de uma, ah, de uma uma pessoa comum assim, mas que cantava. Daí eu cantei. Cantava, acho que umas duas músicas na peça toda. Mas foi muito bom, muito bom mesmo, gostei mesmo. Havia outras meninas que cantavam também. Eu gostei muito de participar dessa peça.

BOCA NEGRA: Você trabalhou na Fundação Cultural de Curitiba e no Museu de Arte Sacra como coordenadora, como você avalia essas experiências?

EVANIRA:
Eu fui convidada pra trabalhar na Fundação Cultural de Curitiba, na Coordenação de Música. Fui lá. Tanto que eu tomava conta das Oficinas de Música, em todas elas, eu trabalhei da segunda até a décima nona, acho que foi. E aí estavam precisando de uma pessoa que conhecesse as coisas do museu, né. Eu já tinha estado por lá, já tinha dado uma olhada, estava sabendo. Aí, a diretora da Fundação, que me conhecia, me convidou para ir trabalhar lá. Aí, eu tomava conta do Museu de Arte Sacra e, no outro lado da rua, da Casa Romário Martins. Aí, eu fiquei lá de 2001 a 2009, quando eu me aposentei. E foi maravilhoso trabalhar porque eu gosto de arte, então eu estava no meu canto, na música e nas artes.

BOCA NEGRA: Por fim, você está sendo homenageada pelo Bloco de Samba Boca Negra, com o enredo de 2024 denominado “Evanira, a maior cantora do Paraná”. O que você sente com essa homenagem? E sobre a música paranaense, principalmente do samba, de quais compositores você se lembra e gosta?

EVANIRA: Eu fiquei encantada com essa homenagem que vocês vão prestar pra mim, fiquei muito feliz, mesmo. Só vocês que lembraram de mim, muito obrigada mesmo! E olha, das músicas, dos sambas, eu lembro assim das coisas do Homero Réboli, do Claudio Ribeiro, né, que até fizemos um show, cantei uma música do Homero Réboli e gostava muito das coisas que eles faziam, das apresentações e tudo o mais.

Então, eu fiquei muito feliz, muito lisonjeada com essa homenagem que o Bloco vai fazer pra mim, muito contente mesmo. E estou contente e feliz vendo os meninos cantarem a música. Muito obrigada mesmo, queridos, eu amo vocês! Pena que eu não vou poder estar lá vendo tudo isso, mas vocês façam a gentileza, gravem, façam vídeos! Tem gente da minha família que vai lá já, tem duas sobrinhas que disseram que vão, tomara que elas vão! Beijinho, obrigado por tudo!

*Leo Fé é cantor, compositor e presidente do Bloco de Samba Boca Negra.
**Ricardo Prestes Pazello é professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do Bloco de Samba Boca Negra.

 

 

Edição: Lucas Botelho