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O pacto da falsa alienação no futebol brasileiro

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Tite afirmou não ter todas as informações do caso Daniel Alves, mas lembrou que "todo erro deve ser punido" - Reprodução / YouTube / FLA TV
É bem difícil que Tite não tenha tomado conhecimento do que aconteceu com Daniel Alves

Luiz Ferreira*


De acordo com o dicionário, a palavra alienação vem do latim “alienatione”. Ela é usada para designar indivíduos que estão alheios a si próprios ou a outrem. Refere-se também à diminuição da capacidade dos indivíduos em pensarem e agirem por si próprios e também à falta de consciência por parte do ser humano de que ele possui um grau de responsabilidade na formação do mundo a seu redor e vice-versa.

Notem que essa palavra traz no seu significado um ponto interessante. O indivíduo alienado vive no seu mundo e não tem lá tanta vontade de se envolver em questões que o tirem de dentro da sua “caixinha”. Pode ser algo provocado por uma série de questões ou até mesmo uma postura tomada por livre e espontânea vontade.

Trazendo para o linguajar popular, quando alguém deseja se manter alienado diante de questões importantes do seu cotidiano, ele assume que está simplesmente “se fazendo de besta” para fugir da responsabilidade que possui nesta ou naquela situação. Geralmente, essa postura vem acompanhada de passadas de pano quilométricas em assuntos que incomodam e que mexem com aquilo que determinado indivíduo pensa ser o certo.

Atenção: não confundir o que foi dito anteriormente com o desejo de se esfriar a cabeça com uma limonada, um belíssimo sandubinha e a TV ligada no Big Brother Brasil ou no jogo do seu time do coração depois de um dia duro de trabalho e estudo (ou os dois). O lazer é sagrado e deve ser respeitado. A questão aqui é muito mais profunda do que um simples reality show. Mais profunda e muito mais séria.

Logo depois da vitória do Flamengo no clássico contra o Fluminense no último domingo (25), Tite foi questionado pelo repórter Igor Siqueira (do UOL) sobre o caso Daniel Alves e a sua condenação a quatro anos de meio de prisão por agressão sexual a uma mulher de 24 anos numa boate em Barcelona. A resposta que Tite deu foi a seguinte:

Eu entendo a tua pergunta. Eu não posso fazer julgamento sem ter todos os fatos e as informações verdadeiras a respeito. Posso falar conceitualmente. Conceitualmente, todo erro deve ser punido. Mas não sou julgador e não tenho todos os fatos. Fora que há uma etapa de um profissional que trabalhou comigo e existem outras etapas profissionais e pessoais que ele também exerce. Essas eu não conheço e não posso julgar, tenho que ter muito cuidado. Vou dizer mais: quando fui numa coletiva que houve um problema com Neymar, foram 24 perguntas, tive que responder 18 a respeito de um suposto (estupro). E eu disse a mesma coisa, que eu não tinha conhecimento aprofundado. Mas quem erra deve ser punido. Foi assim que eu fui educado. Primeiro te ensino, segundo tu é punido para que aprenda.

Eu quero muito crer que Tite se enrolou na hora de responder a pergunta do repórter Igor Siqueira.

De verdade mesmo. Mas toda vez que eu releio a fala do técnico do Flamengo, fico com a certeza de que existe uma espécie de “pacto da alienação” no esporte brasileiro. Aliás, diria que isso vai muito além do esporte. Não só aqui, mas em todo o planeta.

A resposta mais correta para a pergunta seria muito mais simples. Houve uma acusação, uma investigação, um julgamento e uma condenação. Ponto final. Sem entrar em polêmicas ou malabarismos argumentativos que podem sim ser interpretados como uma tentativa clara de se desviar o foco do cometeu que Daniel Alves cometeu e tem que responder. Não é difícil entender isso.

E não se enganem. Conversem com qualquer pessoa na rua. Puxem o assunto. Eu garanto que vocês vão ouvir algo semelhante a “Daniel Alves se ferrou” ou “a garota acabou com a vida dele” muito mais vezes do que vocês pensam. Por que é assim que fomos criados e não é todo mundo que deseja fugir disso. É nesse ponto que entra o tal do “pacto da alienação”.

“Não sei bem… Não me informei direito… Tô meio por fora do assunto… Quem sou eu pra julgar...”

E vamos combinar que é bem difícil que Tite não tenha tomado conhecimento do que aconteceu com o jogador que ele mesmo classificou como seu “homem de confiança” na Copa do Mundo de 2022, né não?

Não é preciso ficar apenas dentro do caso Daniel Alves e da “sabonetada” de Tite.

Observem o que acontece sempre que temos brigas entre torcidas ou atrocidades maiores como o ocorrido com o ônibus do Fortaleza. O que “torcedores” do Sport fizeram poderia ser facilmente classificada como um atentado terrorista. Assim que as primeiras punições apareceram, os dirigentes do Leão trataram de se dizer perseguidos e pedir que “peguem leve” com o clube, discurso repetido por jornalistas e influencers.

Interessante como todo mundo se lixou para as mais de 1200 lesões sofridas pelo elenco do Fortaleza. Ninguém viu, ninguém sabe de nada, ninguém ouviu… E o “show” continua. Até porque a rodada de final de semana tá aí e a gente precisa continuar com o “pacto”.

Tite não tem culpa nenhuma se Daniel Alves estuprou uma moça numa boate de Barcelona. Os dirigentes do Sport também não podem ser responsabilizados se supostos torcedores usaram a camisa do clube para jogar bombas e pedras no ônibus do time adversário. Mas podem se posicionar corretamente diante de questões que precisam de firmeza, clareza e um mínimo que seja de bom senso. Principalmente para que as palavras não sejam mal interpretadas e se transformem em desserviço no combate às mais variadas formas de violência na nossa sociedade.

Ninguém viu… Ninguém sabe direito… Ninguém assume a bronca... Né?

O tal “pacto da alienação” ainda é lei por estas bandas. E o futebol, o esporte como um todo não passam de reflexo do que nossa sociedade pensa e defende.

Eu queria muito que as coisas mudassem. Queria que começássemos a nos incomodar de verdade. Como falei outra vez, eu não defendo prisão perpétua ou linchamento em praça pública. Quero apenas que a gente pare de diminuir a gravidade de determinados atos que vemos todos os dias.

Eu confesso que não vejo muita saída não. O “pacto da alienação” também é o “pacto da passada de pano”. Você passa o seu aí e eu passo o meu aqui.

*Luiz Ferreira escreve toda semana para a coluna Papo Esportivo do Brasil de Fato RJ sobre os bastidores do mundo dos atletas, das competições e dos principais clubes de futebol. Luiz é produtor executivo da equipe de esportes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, jornalista e radialista e grande amante de esportes.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Mariana Pitasse