Rio de Janeiro

Coluna

Enredos da rua: as velhas e novas histórias que o carnaval do Rio de Janeiro conta

O carnaval é uma manifestação de associação livre que promove acesso à cultura e ao uso do espaço público - Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Do Subúrbio ao Centro, o carnaval que não é show business está sendo devorado

*Ana Paula Rocha 

Definir a história a ser contada é um dos primeiros exercícios sobre o qual escolas de samba se debruçam nos preparativos para o carnaval. A escolha do que conhecemos por enredo é complexa, mesmo nos casos em que surge a partir de um lapso de criatividade do carnavalesco – poucos dias após o desfile da Imperatriz Leopoldinense, Leandro Vieira sinalizou que já tem enredo para 2025, por exemplo. De todo modo, essa escolha não é impensada ou mesmo trivial. Ao selecionar um enredo, as escolas mergulham em um processo meticuloso de pesquisa e reflexão, reconhecendo que o tema escolhido irá moldar toda a narrativa do desfile na Avenida. 

Num exercício de imaginação, poderíamos fazer um paralelo: assim como os enredos do carnaval da Sapucaí, o tema do carnaval de rua no Rio de Janeiro, que vai orientar o debate público sobre a festa, também se atualiza anualmente. Esses enredos da rua muitas vezes se delineiam antes mesmo da temporada oficial de festas e se alicerçam em questões que, no mínimo, mexem com as paixões dos moradores e visitantes da cidade. Com isso, demonstram como o carnaval está intrinsecamente ligado às dinâmicas sociais da cidade – ou mesmo do país. 

Perceber um tema tem direta influência dos núcleos de convivência e da circulação da informação, sendo essa percepção marcada por questões de classe, raça e gênero.

Por esse motivo, no desenhar dos enredos do carnaval de rua, seria prudente ter em vista a força dos grandes veículos de comunicação – sem necessariamente operar juízos de valor sobre essas mídias – ou mesmo das redes sociais e suas bolhas das quais, muitas vezes, fazemos parte e são responsáveis por moldar nossos olhares e discussões. Levando isso em consideração, tracemos uma breve história recente dos debates que colocaram o carnaval de rua do Rio de Janeiro em pauta nos últimos anos. 

Em 2018, durante a gestão do então prefeito Marcelo Crivella, cenas de furtos, assaltos, arrastões, posse de arma branca e pancadarias diversas tomaram os principais jornais e transmissões televisivas durante o período imediatamente anterior ao carnaval. Na ocasião, foi amplamente divulgado pela imprensa que Crivella viajou para a Europa e o governador Luiz Fernando Pezão para sua casa no município de Piraí durante o período da principal festividade do Rio de Janeiro. Dois dias depois da quarta-feira de cinzas, quando os foliões ainda se recuperavam da rebordosa, uma intervenção federal na segurança pública foi instaurada pelo então presidente Michel Temer por meio do decreto no 9.288/18. Embora a intervenção seja atribuída por especialistas à ampliação do roubo de carga em regiões de acesso à cidade, o motivo de fato massificado à época foi uma suposta intensificação da violência urbana durante a festa. Formava-se, ali, o enredo de um carnaval violento.

Já em 2020, ainda sob gestão de Crivella, quando a comunidade internacional passava por um novo e grande marco, o tema da vez foi, é claro, a covid-19. Viu-se memes e sátiras da doença compartilhados por pessoas que ainda não entendiam, desacreditavam ou se jogaram à galhofa pela galhofa. Fato é que um novo enredo estava no ar nas proximidades da festa. Em especial após sua concretização, houve um forte questionamento e, certo senso de censura, aos foliões que foram às ruas naquele ano. O que se intensificou com os pronunciamentos do ex-presidente Jair Bolsonaro que, se num primeiro momento os acusava de impulsionar a transmissão, mais tarde, e de modo bastante contraditório, viria a negar a seriedade da doença. Postura que se somou a uma série de ações práticas e episódios lamentáveis de total descaso com os impactos da pandemia, que ainda hoje cabem investigação e responsabilização. 

Pulando para 2024, poderíamos opinar, sem descartar os núcleos, bolhas e círculos já mencionados, que no pré-carnaval do Rio de Janeiro também emergiu um tema. Em contraponto à 2018, esse período festivo foi considerado, segundo levantamento da polícia civil e governo do estado, o mais seguro dos últimos anos, com 20% menos crimes de rua. E, também em oposição a 2020, a covid-19, embora ainda faça vítimas, não ocupou tanto as preocupações dos foliões, que já precisam se atentar a outras doenças, como é o caso da dengue. 

Durante os meses de dezembro e janeiro as já tradicionais chuvas de verão mais uma vez atingiram fortemente diversas áreas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, principalmente da Baixada Fluminense. Belford Roxo, Nova Iguaçu, São João de Meriti e Duque de Caxias foram alguns dos municípios mais afetados pelas chuvas do início do ano de 2024, registrando pessoas mortas, desaparecidas ou desabrigadas, além de ruas totalmente alagadas, deslizamentos e outras intempéries. Também a capital foi afetada, com registros de impactos dos alagamentos na Zona Sul e mortes em bairros da Zona Norte.

Além da imprensa oficial, as redes sociais auxiliaram na massificação das imagens que mostravam o interior de casas tomadas por água, sem que as famílias tivessem para onde ir, e moradores improvisando barcos pelas ruas de seus bairros. 

Com a cesta básica 7,2% mais cara em comparação a outras 15 capitais,segundo dados do  Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) de janeiro de 2024, cerca de 50% da população vivendo com menos de um salário mínimo e inadimplente, doze municípios com aumento na tarifa de transporte e sem coleta e tratamento de esgoto, segundo dados do Mapa da Desigualdade da Casa Fluminense de 2023, e numa conjuntura na qual o racismo ambiental demonstrou novamente sua faceta mais perversa, o tema da vez, poderíamos propor, foi a desigualdade social.

Isso porque, no mesmo final de semana que desalojou pessoas no estado, parte dos blocos de rua do Centro e Zona Sul da cidade realizaram seus tradicionais ensaios e apresentações, sendo criticados nas redes sociais em razão disso. O argumento foi a falta de respeito ou empatia aos vizinhos atingidos. Ou melhor dizendo, nem tão vizinhos assim.

A realidade é que, por ser uma manifestação em muito territorial, o carnaval tem a capacidade de desnudar o melhor, mas também o pior do espaço urbano: vivemos numa cidade e estado fragmentados, propositalmente cindidos, nos quais moradores têm experiências completamente díspares de uso do espaço público e também privado (no caso do lar invadido por chuva e esgoto), além de trabalho, deslocamento e lazer, sendo afetados também de forma desigual por desastres e violências. 

Por um lado, esse conflito apresenta uma justa expectativa de coesão social, na qual as pessoas possam, ou devam, enlutar-se por acontecimentos que atingem seus concidadãos. Por outro, evidencia uma leitura crítica de cunho moral a respeito da festa.

Afinal, por que é justamente a festividade que deve responder prontamente aos problemas de infraestrutura e sociais mediante sua não realização ou privação? 

Dados da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) apresentaram que, no ano 2020, houve movimentação de R$ 8 bilhões no país durante os festejos e que foram gerados 25 mil empregos formais na modalidade temporária, muitos deles de trabalhadores de serviços do comércio, como bares e restaurantes e hotelaria, numa cadeia produtiva que se alarga também para serviços de sonorização, tendas, palcos, adereços, dentre outros.

A importância econômica do carnaval ficou ainda mais evidente durante a pandemia que, no ano de 2021, alterou abruptamente a dinâmica da festa. Na ocasião, o Movimento Unido dos Camelôs (Muca) protestou e buscou o então prefeito Eduardo Paes exigindo o pagamento de auxílio que desse conta do impacto da não realização da festa que, segundo representantes do movimento, é o período do ano em que a categoria mais lucra. É importante frisar que, no caso do comércio informal, as informações a respeito da movimentação financeira têm mapeamento ainda mais difícil. 

Já em 2024, a CNC estimou um crescimento de 10% no setor do turismo em razão da festividade e a criação de cerca de 70 mil postos de trabalho temporário na área de serviços, em especial, prevendo a efetivação de 6% desses trabalhadores e a geração de 4.500 empregos nos diversos setores da economia. Ainda segundo a CNC a expectativa era que o carnaval de 2024 movimentasse R$ 9 bilhões, mostrando um faturamento superior ao anterior à pandemia de covid-19. 

Em contraponto aos números promissores da festa, coexiste um modelo de gestão e financiamento pouco transparente que não beneficia o “chão de fábrica” da festa, onde se incluem, dentre outras expressões, os blocos de rua.

Isso porque, entre os anos de 2009 e 2010, durante a prefeitura de Eduardo Paes, o carnaval do Rio de Janeiro passou a ser enquadrado pelo “Caderno de Encargos e Contrapartidas”, modalidade de edital público que fixa às empresas ganhadoras condições para a realização dos festejos e exclusividade de marca. Esse modelo de parceria público-privada foi gestado, não coincidentemente, num momento de intensas transformações urbanas, no contexto do “projeto olímpico”, fato que contribuiu para a ampliação do viés mercadológico da folia, estabelecendo uma relação pouco balanceada entre grandes empresas, entre elas a Ambev, e as agremiações, que se veem muitas vezes impossibilitadas de desenvolver outras parcerias e patrocínios para seus cortejos. 

Além disso, atualmente uma considerável parte dos blocos que ocupam a cidade são resultado de encontros de pessoas em seus bairros e de grupos que se reúnem para aprender um instrumento ou estabelecer vínculos de sociabilidade e tradição, característica que pouco ou nada dialoga com as exigências estabelecidas pela prefeitura para a realização dos desfiles.

Para realizar um bloco do carnaval de rua de modo “autorizado” pelo Estado, condição para receber patrocínio da cervejaria e garantia mínima de que a apresentação não será interrompida amistosa ou violentamente por agentes públicos, é necessário realizar inscrição junto à Riotur, empresa de turismo do Rio de Janeiro, e providenciar autorizações de diferentes órgãos, dentre eles, Corpo de Bombeiros, Polícia Militar e CET-Rio. Tarefa à primeira vista simples, ela se torna uma verdadeira maratona até mesmo para despachantes profissionais: de acordo com relatório elaborado pelo Coletivo de Blocos Organizados, o Coreto, que soma mais de quarenta agremiações associadas, 70% dos blocos avaliam a experiência de produção da festa como “regular, ruim ou péssima”.

Isso se dá num cenário em que os organizadores responsáveis por botar o bloco na rua são, em sua maioria, pessoas comuns. Fato que demonstra uma faceta curiosa do carnaval no Rio de Janeiro, na qual coexistem formas de organização amadora por parte considerável dos blocos, característica legítima e até esperada dada a história da festa, com altos níveis de profissionalização do mercado e grandes corporações.

Também toma forma, ano a ano, uma série de casos de ocupação mercadológica do espaço público e da festa. Em 2024, por exemplo, chamou a atenção o fechamento de logradouros públicos para eventos privados. É o caso da Praça Marechal Âncora localizada no Centro da cidade. Por sua proximidade da Baía de Guanabara, isolamento do trânsito e boa acústica proporcionada por uma passagem subterrânea, a praça recebia blocos como o Minha Luz é de Led, que anunciou em suas redes sociais que não promoveria seu evento na rua em 2024 por falta de recursos.

Outro bloco que alegou que não sairia pelos mesmos motivos, ou seja, falta de apoio da Prefeitura e patrocínio, foi o Timoneiros da Viola. No bairro de Oswaldo Cruz, um dos berços do samba localizados na Zona Norte do Rio, o Timoneiros acontecia na Praça Paulo da Portela e tem como um dos seus fundadores o multiartista Paulinho da Viola. Em nota publicada nas suas redes, o bloco alerta: “a iniciativa privada é a maior responsável pela aniquilação da festa além túnel”.

Do Subúrbio ao Centro, o carnaval que não é show business está sendo devorado.

O ponto é que estar nas ruas brincando, de forma independente e gratuita, seja na roda de samba, seja no bloco, seja no baile funk, é um ato que questiona o projeto neoliberal de privatização da cidade. E o carnaval é essa manifestação que se dá através de associação livre, tal qual garantido pela Constituição que, dentre outras coisas, nos promete também acesso à cultura e ao uso do espaço público. E, uma vez ato político, será, justamente por isso, cobrado pela sociedade à altura.

O que se escancara nesse suposto enredo do carnaval de rua de 2024, mais do que uma tentativa de expor o elitismo ou constranger a bolha majoritariamente branca e com marcadores sociais específicos da Zona Sul da cidade, é o descontentamento e desconforto perene com as condições socioeconômicas postas no Rio de Janeiro. O carnaval é uma força motriz capaz de, através da sua inevitabilidade, trazer essas questões sociais à tona e, tal qual uma folia caótica, nos balançar.

*Ana Paula Rocha atua como coordenadora técnica no Sesc RJ em projetos com ênfase em acervos e artes visuais. É doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde integra o Laboratório de Estudos da Cidade, o Urbano. Museóloga pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Idealizadora da plataforma de arte e cultura, INTRUSA (@intrusacultura).

** Revisão: Renata Melo 

***Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato RJ.

Edição: Jaqueline Deister