Rio Grande do Sul

ESPIRITUALIDADE

‘O racismo religioso tenta nos matar na essência, na origem’, afirma Baba Diba de Iyemonjà

Com o tema 'Paz e Justiça na Terra' foi realizada nesta segunda-feira (22) a XVI Marcha Estadual pela Vida e Liberdade

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Marcha percorreu as ruas do Centro de Porto Alegre no final da tarde desta segunda-feira (22) - Foto: Fabiana Reinholz

Apontado como o estado com o maior número de terreiros no Brasil (livre estimativa contabiliza 65.000), o Rio Grande do Sul realizou nesta segunda-feira (22) a XVI Marcha Estadual pela Vida e Liberdade Religiosa. Ao som de tambores e axés, a marcha que teve como tema "Paz e Justiça na Terra", reuniu praticantes da religião africana de diversas partes do estado, representantes de outras religiões assim como movimentos sociais, parlamentares gaúchos, sindicatos e simpatizantes. 

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Organizada por uma Comissão inter-religiosa e multi-institucional, a marcha foi precedida pelo "Seminário Desafios Globais: Construindo Pontes para a Paz e Justiça na Terra", uma iniciativa que teve como objetivo abordar os conflitos armados que assolam a Palestina, África e Europa. Evento aconteceu na Assembleia Legislativa. 

“O seminário foi importante porque a gente estava trazendo o tema não só do racismo religioso, mas também da paz das religiões e a paz mundial. E também abordamos a saúde do planeta. Nossa teologia manda que a gente nasça, cresça se multiplique e cuide da Terra, porque a Terra está adoecendo. Se a Terra morrer morrerão brancos e negros, de todas as religiões, porque nós somos oriundos dela, afirma o babalorixá no Ilê Asé Iyemonjá Omi Olodô e coordenador nacional da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro), Baba Diba de Iyemonjà.


Seminário Desafios Globais: Construindo Pontes para a Paz e Justiça na Terra / Foto: Fabiana Reinholz

Espera de 10 anos por uma nova Conferência 

A concentração da marcha foi realizada em frente ao Palácio Piratini, com cânticos aos orixás, intervenções artísticas, e de participantes da marcha. O ato cobrou a realização da II Conferência do Povo de Terreiro cancelada quatro vezes pelo governo. Durante a manifestação e através da mobilização de parlamentares, uma comitiva foi recebida pelo secretário adjunto da Casa Civil, Gustavo Paim.  


Comitiva se encontrou com representante da Casa Civil do RS / Foto: Arquivo Pessoal

De acordo com Íyá Sandrali de Campos Bueno, o Executivo ficou de realizar uma nova reunião com a Comissão Organizadora para se ter um posicionamento a cerca da Conferência e uma possível data. 

“Uma Conferência que estava marcada e definida não dá para tu cancelar na semana por falta de recurso. Entregamos o manifesto da marcha ao secretário. Foi um bom avanço, o tambor funcionou aqui. Há um indicativo de que possamos conversar com o governador. Isso é importante, pois o RS é pioneiro nesta política”, afirma. A primeira Conferência aconteceu em 2014. 

De acordo com o Censo de 2010 (os números sobre religiões do censo mais recente, de 2022, ainda não estão disponíveis) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil há cerca de 600 mil pessoas que se autodeclararam como seguidores de religiões de matriz africana, sendo 407 mil praticantes de umbanda, 167 mil do candomblé e 14 mil de outras religiões, entre elas o batuque. Dos 407.332 brasileiros que se declararam umbandistas, 140.315 estavam no RS, representando 34,45% do total. 


Manifestação aconteceu no centro de Porto Alegre / Foto: Fabiana Reinholz

“As pessoas nos perguntam porque isso, e a resposta é que o estado é tão racista, intolerante que o nosso movimento também acaba sendo maior do que isso tudo”, comenta Sandrali. 

Após a concentração, a marcha seguiu pelas ruas da capital gaúcha, realizando uma parada na prefeitura onde foi feita a varredura das escadas da sede do Executivo municipal, seguindo após até a Usina do Gasômetro. 


Contra o racismo religioso 

“Não é mais uma marcha, é mais uma etapa da mesma marcha que começou há 16 anos atrás por causa da mãe Gilda que chamou atenção para o racismo religioso e a perseguição, principalmente às religiões de matriz africana O racismo religioso continua acontecendo. Mas estamos na luta, estamos juntos, juntas, juntes e estamos vendo cada vez mais consciência da necessidade de mudar esse sistema que a gente vive. O racismo não é mais uma coisa do sistema é o próprio sistema”, ressalta o bispo diocesano da Diocese Meridional em Porto Alegre, Humberto Maiztegui Gonçalves.

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Segundo levantamento da startup JusRacial, em 2023 haviam 176 mil processos por racismo em tramitação nos tribunais do país, e um terço deles (33%) envolviam intolerância religiosa.

“As religiões de matriz africana lembram de uma coisa que a sociedade dominante não quer se lembrar, que foi construída sobre a morte, sangue e sacrifícios de povos inteiros que continuam a ser assassinados”, afirma Humberto. 


Varredura das escadas da Prefeitura Municipal / Foto: Fabiana Reinholz

Alusiva ao Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, celebrado em 21 de janeiro, a marcha, segundo frisa Baba Diba, é para chamar atenção ao racismo religioso, que vem crescendo cada vez mais.

“Pessoas morrendo, um exemplo recente e vivo na memória de todos é a mãe Bernadete que foi assassinada com um monte de tiro no rosto. Isso só aconteceu porque ela era uma yalorixá, em que pese ali a luta pela terra, pelo território. Mas é dessa forma que eles agem com as autoridades religiosas, que são tratadas, inclusive pela Brigada Militar aqui do RS, como marginais. A abordagem deles é desrespeitosa e equivocada. A gente precisa que o Estado, que as instituições se comprometam de fato com o combate ao racismo religioso”, afirma. 


Baba Diba, Ìyá Claudia Chú e Íyá Sandrali / Foto: Fabiana Reinholz

Ìyá Claudia Chú, de Alvorada, teve seu terreiro invadido por brigadianos enquanto realizava um rito com os orixás manifestados. Na ocasião tentaram levar os tambores e as pessoas presentes. “Temos oito anos de perseguição aonde autoridades tantos judiciais quanto policiais que deveriam nos dar suporte, fazem a perseguição religiosa.”

De acordo com ela o racismo religioso está muito forte em Alvorada. “Meu território é perseguido constantemente. Os poderes fingem que abrem as portas e nós fingimos que acreditamos para podermos sobreviver, para poder tocar nosso tambor e praticar a nossa tradição deixada pela nossa ancestralidade e que gostaríamos de deixar para nosso futuro”, pontua.


Ao som de tambores e axés, a marcha se manifestou na frente do Palácio Piratini / Foto: Fabiana Reinholz

Para Ìyá Claudia, a marcha é mais uma vez o simbolismo da luta, da resistência contra a intolerância religiosa e o racismo religioso. “Nossos direitos, nossos territórios estão sendo invadidos por leis que não são cumpridas. O meu território é sagrado e agora ele é invadido, hoje eu sou uma das Iyas Claúdias que é perseguida e enfrenta o racismo religioso na pele. Precisamos que todos os poderes tenham consciência do que é a justiça, do é que racismo e intolerância. Estamos pedindo respeito, mas com verdade.”

Na avaliação de Baba Diba é preciso que as instituições se comprometam com a eliminação do racismo religioso. “O racismo religioso tenta nos matar na essência, na origem. É a face mais perversa do racismo porque sabem que nós somos antologicamente ligados ao nosso sagrado, e para matar o sagrado que está em nós precisam nos matar.”

Para o religioso é preciso que se tome uma medida estadual, federal, municipal para que de fato barre o racismo religioso e que se penalize os racistas. “O RS é o maior estado em número de terreiros do Brasil. No nosso estado não se dorme sem ouvir ao fundo o barulho dos tambores do batuque”, finaliza. 

Entre os parlamentares gaúchos estavam as deputadas federais Reginete Bispo, Maria do Rosário (ambas do PT), representante da deputada federal Daiana Santos (PCdoB), o deputado estadual Matheus Gomes (PSOL), representante dos mandatos da deputada Laura Sito (PT) e Bruna Rodrigues (PCdoB), e a vereadora de Viamão, Fátima Maria (PT).


"No nosso estado não se dorme sem ouvir ao fundo o barulho dos tambores do batuque”, afirma Baba Diba / Foto: Fabiana Reinholz / Foto: Fabiana Reinholz

“Eles dizem que nossa fé é maligna. 
Mas as piores torturas envolveram escravidão e guilhotina não vieram da feitiçaria. 
Eles queimaram terreiros, mataram guerreiros, obrigam a crianças negras a cantar hino que ensina que eles mereceram serem escravizados por meio milênio. 
Somos descendente de reis e rainhas, somos protegidos por elementos da natureza, o ouro de Oxum brilha na nossa pele, justiça de Xangô protege na cabeça. 

Se o Estado é laico não deveria ter bancada evangélica. Era para existir igualdade de cor, gênero e religião. E não diga que entenda o que sentimos porque fomos agredidos, reprimidos e vendidos. Vocês não entenderiam. Isso é herança ancestral e a tua intolerância não pode me parar, quem abre meus caminhos tem a chave do futuro. Alupo, Alupo, Alupo, o meu centeiro é pai Bará”, poesia declamada pela slam Micativa.


Edição: Katia Marko