Rio Grande do Sul

Coluna

O paradoxo reprodutivo e a náusea

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"Escutar os batimentos fetais, para as vítimas de violência sexual, deve ser uma experiência análoga a escutar o som das bombas que explodem, unicamente, sobre suas cabeças" - Imagem: Lara Werner
Como aceitar que, neste país, a cada 20 minutos uma criança é obrigada a gestar e parir

Um país que não reconhece a tortura está condenado a praticá-la. É disso que se trata o projeto de lei aprovado pela Câmara de Vereadores em Santa Maria, no último dia 12, e expõe uma das estratégias da extrema direita em torno do mundo: criar leis que legitimam e institucionalizam a caçada anti-aborto, e mais, nos permitem ter um panorama de territórios possíveis para a agenda política neoliberal que vê os direitos humanos como uma barreira para interesses mais amplos, conforme ilustra a eleição de Javier Milei na Argentina. 

Carlos Bolsonaro já havia protocolado projeto semelhante na Câmara do Rio de Janeiro e, em 2022, a Hungria aprovou a prática obrigatória da escuta dos “batimentos cardíacos fetais” por gestantes antes da realização do aborto. Em 2021, o estado do Texas proibiu o aborto antes mesmo da revogação da decisão Roe vs. Wade, que garantiu a constitucionalidade do direito ao aborto nos EUA por 50 anos, através da Lei do Batimento Cardíaco: serão punidas quaisquer pessoas que praticarem o aborto após a 6ª semana gestacional, sob o argumento de que o inicial sistema circulatório embrionário representa total compatibilidade com a vida. Entre a sugestão da escuta à obrigatoriedade, o teor proibicionista das leis funciona como manual sobre como avançar no retrocesso.

Não tenhamos ingenuidade: a lei aprovada, e cujo igual teor tramita em diversas câmaras de vereadores Brasil afora, não inaugura essa prática, uma vez que qualquer gestante é obrigada a escutar os batimentos independente de sua vontade, mas a institui de modo a não penalizar quem a comete. Em resumo, a violência gineco-obstétrica ganha contornos de legalidade e boas práticas ao mesmo tempo em que é negada como violência de gênero e violação de direitos reprodutivos. A dose de cinismo fica por conta destes projetos de lei estarem sendo representados por parlamentares mulheres, tal como em Santa Maria e Porto Alegre, uma prova que as pautas importantes de gênero não são garantidas pelo sexo biológico de quem as propõe. Basta deste reducionismo cisnormativo, o buraco é mais embaixo: a direita tem, inclusive, fomentado que as pautas mais conservadoras sejam representadas por mulheres cis, na tentativa de deslegitimar o movimento feminista.

Em relação à assistência ao parto, uma vez que 98% dos nascimentos acontecem em ambiente hospitalar, os dados sobre a qualidade da assistência e os desfechos produzidos cunharam a seguinte expressão pela comunidade acadêmica: o paradoxo perinatal, ou seja, apesar da cobertura massiva e do acesso, a qualidade da assistência é muito ruim. Sentenças como a da juíza Daniela Tocchetto Cavalheiro, da 2ª Vara Federal de Porto Alegre, que condenou o Grupo Hospitalar Conceição ao pagamento de 50 mil reais pela violência obstétrica sofrida por uma mulher em junho de 2021 sinalizam que o Estado brasileiro deveria levar esse tema mais a sério, sob pena de comprometer ainda mais os limitados recursos destinados à saúde da população como um todo.

Me pergunto qual valor será proposto à Adelir Lemos de Goes, cujo processo judicial tramita há quase uma década aguardando a decisão que reconheça o fato de que ela, também, não teve direito ao marido como acompanhante, foi privada de informações e consentimento das práticas realizadas em seu corpo, e submetida a uma cesariana desnecessária dado o estágio avançado de seu trabalho de parto após ter sido conduzida, coercitivamente, por dez policiais durante a madrugada ao hospital Nossa Senhora dos Navegantes, em Torres. Não há dinheiro que pague os danos morais, físicos e psicológicos de tamanha tortura.

Que o aborto é um analisador da democracia, isso já sabemos. Podemos falar, então, de paradoxo reprodutivo: como explicar, por exemplo, o fechamento do único hospital público que realizava abortos previstos em lei no terceiro trimestre gestacional na capital mais populosa do país, e que atendia a todo o estado de São Paulo, sob o argumento de “falta de demanda”? Como aceitar que, neste país, a cada 20 minutos uma criança é obrigada a gestar e parir, com todo o risco, negligência e violação de direitos que isso significa, e isso acontece dentro do Sistema Único de Saúde? Como não se revoltar com a morte, durante o parto, de Miriam Bandeira dos Santos, mulher indígena de 35 anos e mãe de dois filhos, que procurou o serviço público no Paraná para a interrupção de uma gestação decorrente de estupro do ex-companheiro, e que teve seu direito ao aborto legal negado?

Como não sentir náusea ao saber, diante de todo esse cenário, que o presidente Lula segue se pronunciando contra o aborto, tal como o procurador geral da República indicado por ele, e que ambos opinam que deve ser o poder legislativo a debruçar-se sobre o tema? O mesmo legislativo que derrubou seu veto sobre o marco temporal para a demarcação das terras indígenas? Que tenta emplacar, a todo custo, o Estatuto do Nascituro? O que está sendo negociado usando nossos corpos, nossa autonomia e nossas vidas como moeda de barganha? Onde estão os valores da gestão social e participativa, tão caros aos governos do PT, quando o assunto é justiça reprodutiva?

Mais que um tapa em nossas caras, isso é um soco em nossos úteros, um chute naquelas que foram chamadas de “grelo duro” e que definiram os resultados eleitorais de 2022. Em fúria desde as nossas vísceras, afirmamos que não há Política Nacional de Humanização e Política Nacional de Cuidado que sejam efetivas o suficiente se não se reconhecer a importância da descriminalização e garantia do aborto legal e seguro no país.

Finalizo esta coluna recordando de quando trabalhei como avaliadora institucional no 2º Ciclo Avaliativo da Rede Cegonha e, ao visitar um dos hospitais com maior volume de partos e referência para várias cidades do Rio Grande do Sul, me deparei com trabalhadores e trabalhadoras da saúde se referindo ao centro obstétrico como “Faixa de Gaza”. Quatro anos depois, desgraçadamente, tenho que concordar com o nome: escutar os batimentos fetais, para as vítimas de violência sexual, deve ser uma experiência análoga a escutar o som das bombas que explodem, unicamente, sobre suas cabeças.

* Lara Werner é sanitarista com formação pela UFRGS e coordena o Observatório da Violência Gineco-obstétrica, integrante da OVO Latam - Rede Latino-americana de Observatórios de Violência Obstétrica.

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato. 

Edição: Katia Marko