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O marxismo latino-americano segue vivo com Hinkelammert e Dussel: dois réquiens para 2023

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Franz Himkelammert e Enrique Dussel - Foto: reprodução / internet
Descanse em paz, 2023. E viva a memória e a obra de Franz Hinkelammert e Enrique Dussel!

“A reconstituição do pensamento crítico não significa fazê-lo por completo de novo ou inventar algo inteiramente diverso. A reconstituição só é possível em continuidade. [...] Em primeiro lugar, a reconstituição da economia política. [...Em segundo,] trata-se daquilo que tradicionalmente foi denominado materialismo histórico” (Franz Hinkelammert, em A maldição que pesa sobre a lei).

“Tentaremos apreender um discurso implícito, mas coerente com o discurso explícito de Marx. De certo modo, será um discurso criativo ou distinto – na medida em que explicita o implícito –, mas estritamente marxista – na medida em que continua, sem contradição, o próprio discurso de Marx. [...] Além disso, será um discurso nosso, latino-americano e tendo em conta – estrategicamente e de maneira mediata – a nossa problemática real” (Enrique Dussel, em A produção teórica de Marx).

Conforme o tempo passa, estamos assistindo ao fim de uma geração. Estas notas, estritamente pessoais, são um modo de render homenagens a ela, nas pessoas dos que fizeram seu requiem aeternam (“repouso eterno”) em 2023. O réquiem, contudo, é ao mortuário ano de 2023, porque a geração que se vai deixa um legado inabalável: a revivescência do marxismo na América Latina.

A 16 de julho e a 5 de novembro deste ano faleceram Franz Hinkelammert e Enrique Dussel, dois expoentes do pensamento crítico latino-americano e entusiastas de uma aberta, criativa e bem sucedida reconstrução do marxismo entre nós. As perdas, sem dúvida, foram imensas mas muito maiores são as suas obras e biografias, que não podem por nós ser esquecidas.

Eu, hoje um professor universitário, tive a fortuna de conhecer tanto um quanto outro ao tempo de minha formação estudantil. De Hinkelammert, guardo na memória a voz espaçada e grave, a estatura gigantesca e a profundidade filosófica de quando o conheci em um seminário no Programa de Pós-Graduação em Direito (PPGD) da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 2006, ao lado do professor de direito costa-riquenho Norman José Solórzano Alfaro (durante a gestão do PPGD de Aldacy Rachid Coutinho e Eroulths Cortiano Júnior). Lembro-me de que me marcou seu critério filosófico de alteridade: “eu sou se tu és”, do que extraía a conclusão de que toda vez que alguém morria, ele morria também. Um grupo de estudantes de graduação convidamos os professores a irem jantar em uma das noites, após dois dias do curso por eles ministrados. Nossos espíritos juvenis não tinham condições de mais nada senão saborear os confrontos entre Marx e Nietzsche, teologia da libertação e poesia latino-americana à mesa.

Franz Hinkelammert nascera na Alemanha nazista, no seio de uma família católica. Depois dos horrores da guerra, da qual escapou pela idade, formou-se teólogo e economista, com grande influência do marxismo, a ponto de se doutorar com tese sobre a industrialização soviética. Vencido o período de formação, dirige-se à América Latina: reside no Chile, entre 1963 e 1973, e na Costa Rica, a partir de 1976, após breve retorno a seu país natal. Sua produção intelectual é imensa e inestimável para o pensamento crítico produzido em língua espanhola, talvez a maior filosofia em língua própria no continente (como chegaria a reconhecer o próprio Dussel, de posição latino-americanista insofismável).

Quanto a mim, segui modestamente um caminho de leituras hinkelammertianas que compartilho aqui. Creio ter iniciado por textos mais conjunturais e políticos, como o livro sobre A dívida externa da América Latina, o debate sobre O credo econômico da Comissão Trilateral ou a discussão sobre uma teoria democrática popular e participativa em Democracia e totalitarismo. Depois, rumei para sua grande contribuição em termos epistemológicos, fundando um pensar próprio desde a América Latina: sua Crítica à razão utópica, na qual demole os utopismos infactíveis em suas mais diversas expressões (da utopia regressista conservadora à utopia mercantil neoliberal, alcançando também o anarquismo, o sovietismo e o cientificismo). Daí para suas contribuições propriamente econômico-políticas foi apenas um passo, já que a crítica ao desenvolvimentismo, em Dialética do desenvolvimento desigual, Ideologias do desenvolvimento e dialética da história ou O subdesenvolvimento latino-americano: um caso de desenvolvimento capitalista, bem como da problemática imperialista e capitalista em geral, em A teoria clássica do imperialismo ou Pensar em alternativas: capitalismo, socialismo e a possibilidade de outro mundo (este texto inserido em livro organizado por Jorge Pixley, também falecido neste 2023, um dia depois de Hinkelammert, aliás), é patente. 

Ainda, cabe mencionar o contato com as obras mais abertamente teológico-críticas, como As armas ideológicas da morte, Sacrifícios humanos e sociedade ocidental e A idolatria do mercado: ensaio sobre economia e teologia (este em parceria com Hugo Assmann), sempre em chave de leitura entrecruzada com a economia. Por fim, podemos dizer que da interseção entre sua visão sobre democracia e sociedade, a partir de uma teoria do conhecimento centrada em economias periféricas como as latino-americanas, é que surgem as mais interessantes aproximações a uma teoria crítica do direito, como ocorre em A maldição que pesa sobre a lei, Cultura da esperança e sociedade sem exclusão ou O sujeito e a lei: o retorno do sujeito reprimido.

Como acreditamos ter ficado evidente, nossas referências incompletas à obra de Hinkelammert já dão o tom de seu retrato mais notável: a diversidade e a profundidade com que relaciona questões tão candentes quanto complexas como as econômico-teológicas ou as jurídico-políticas. Não temos condições, nem seria o caso aqui, de resenhar um a um seus textos ou apresentá-los em uma cronologia exaustiva. Mas o que desejamos é deixar consignado que seu contributo não pode ser negado e, muito ao contrário, precisa ser resgatado, urgentemente, em tempos de informação rápida e melancolia teórico-crítica. Seu apelo para a crítica da economia política e para o materialismo histórico, tal como escolhemos epigrafar a partir de um seu excerto, depõe em favor de sua vivacidade que revive, por sua vez, o próprio marxismo latino-americano.

No que se refere a Dussel, sinto-me ainda mais tributário de seu legado teórico. Se fui um leitor bissexto, por assim dizer, de Hinkelammert, de Dussel fui um leitor constante, ainda que às vezes instado a certo distanciamento (para poder ler outros autores mais autonomamente). O pensamento dusseliano, sabemos melhor, teve várias fases: a ontologia, a alteridade, o marxismo, a ética do discurso e a filosofia política. As mais famosas delas, inequivocamente, foram também nossa porta de entrada a sua obra. Como negar a importância de livros como Filosofia da libertação, texto do exílio, ou 1492: o encobrimento do outro, texto que enseja sua participação nos diálogos norte-sul? É muito difícil resgatar uma produção teórica tão profusa e marcante. Também posicionado entre a teologia e, agora, a filosofia, sua contribuição alcança a ética, nos anos de 1970, com os cinco volumes de Para uma ética da libertação latino-americana, ou, nos anos de 1990, com as seiscentas páginas da Ética da libertação; a teologia, com os quatro tomos de Caminhos de libertação latino-americana ou os três volumes de De Medellín a Puebla; a antropologia filosófica, com O humanismo semita e, depois, O humanismo helênico; ou a filosofia política, com as 20 teses de política ou os três tomos da Política da libertação. E ainda assim, muita coisa fica de fora dessa apresentação. 

Pelas fases menos lembradas, entrementes, fui também influenciado, seja a partir de textos escritos quando mais jovem, como os Oito ensaios sobre cultura latino-americana e libertação, seja a partir de uma grande e responsável maturidade, como é o caso de escritos sobre economia política, tal qual Filosofia da produção ou sua trilogia (que, na verdade, se desdobra em muitos outros livros) dedicada aos manuscritos de Marx. É o estudo dessa trilogia, aliás, que sinto ter me impactado mais, uma vez que aqui ele elabora que a filosofia da libertação (e sua analética) já estava incubada em Marx (mais propriamente em sua dialética) e, por isso, é possível encontrar o problema da dependência, da revolução e da libertação mesma em A produção teórica de Marx, apontando Para um Marx desconhecido, logo, a partir de O último Marx (1863-1882) e a libertação latino-americana – títulos, afinal, de seus três livros supramencionados (aliás, é de um dos livros dessa trilogia que retiramos a segunda epígrafe que encabeça o presente texto).

Enrique Dussel viera ao mundo na Argentina, de 1934, onde estudara e se formara filósofo, apesar de ter se pós-graduado também na Europa, nomeadamente em países como Espanha, França e Alemanha. Também vivera uma experiência de espiritualização muito forte como carpinteiro em um kibutz, em Israel. Sua atividade docente em sua terra natal fora interrompida pela brutalidade de um atentado paramilitar a sua casa, obrigando-o a ir ao exílio ante a iminência de um novo golpe de estado perpetrado pelos militares argentinos. Sua obra vai da teologia à filosofia, tendo sido um dos grandes formuladores tanto da teologia da libertação como da filosofia da libertação, além de, posteriormente, ser participante ativo do Grupo Modernidade/Colonialidade, contexto a partir do qual assenta sua proposta transmodena e seu giro descolonial.

Do ponto de vista de minha experiência pessoal, para além de suas leituras (quase sempre estimuladas, ainda que não necessariamente de maneira direta, por Celso Ludwig, meu professor na graduação, orientador de trabalho de conclusão de curso e de tese de doutorado), também tive oportunidade de conhecer pessoalmente Dussel, estando com ele mais de uma vez. Assim se sucedeu em Florianópolis, por pelo menos duas vezes, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sendo a primeira delas durante as Jornadas Bolivarianas de 2006, organizada pelo Instituto de Estudos Latino-Americanos (IELA) daquela universidade, sob a presidência de Nildo Ouriques. Outra vez, foi em Curitiba, em para mim inesperado encontro de base pastoral católica sobre fé e política, em 2012. E duas vezes no México, ambas em uma mesma semana, durante o semestre inicial de 2014, sendo que a primeira em uma de suas aulas abertas, a décima-quinta, sobre suas 16 teses de economia política, na Universidade Autônoma da Cidade do México (UACM); e a segunda, por graça de Lucas Machado Fagundes, seu coorientando de doutorado, na própria casa do mestre (ainda que com fins delimitadamente pedagógicos).

Considero-me com grande sorte por tê-los conhecidos os dois. Não tanto pelos parcos e singelos momentos presenciais, mas pelo acesso à potencialidade de sua obra, tão fundamental, ainda mais hoje em dia. Mais sorte ainda de poder encontrar eco em vários amigos e colegas, do mundo dos juristas e fora dele, que também têm em suas produções um lastro decisivo para continuar reinventando o pensamento crítico, continuando criativamente o marxismo. É por isso que me congraço com tantas e tantos que, por falta de espaço e pelo risco do olvido, não declino seus nomes mas que compartilham do mesmo sentimento de tristeza ante suas despedidas mas, certamente, de compromisso para levar adiante suas proposições de teoria (marxista, descolonial, crítica) e prática (junto a movimentos de libertação, grupos populares e organizações de esquerda).

Chega a ser incrível que a força crítica cultivada há tanto tempo, vindo de tão longe, continue a florescer, como se fosse a primavera. O que o pensamento de Marx coloriu, o tempo não desbotou. Ao contrário, acrescentou-lhe novas flores. As aquarelas de Hinkelammert e Dussel, nesse sentido, foram decisivas. Os murais da histórica da América Latina têm o seu traço, com o mérito de que seus estilos embotam-se de marxismo. Incrível, para uma América, a nossa, tão premida por aquela que não é nossa.

Descanse em paz, 2023. E viva a memória e a obra de Franz Hinkelammert e Enrique Dussel!

 

*Ricardo Prestes Pazello é professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisador do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS).

**As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato Paraná

 

Edição: Lucas Botelho