Rio Grande do Sul

Coluna

‘Cherchez la femme!’ Até quando?

Imagem de perfil do Colunistaesd
"As mulheres estão sempre com sua sexualidade na mira da fúria masculina, ou do pensamento fálico" - Reprodução da obra Suzana e os anciões, da artista italiana Artemisia Gentileschi
Neste agosto lilás quero refletir sobre esta eterna busca da Mulher pelo seu agressor ou assassino

O título que escolhi para esta coluna é uma expressão da língua francesa que apareceu no século XIX, supostamente antes de Alexandre Dumas a popularizar em seu romance “Os moicanos de Paris”, em 1854. O personagem policial afirma que para resolver qualquer caso, é preciso procurar a mulher que o produziu. Na sua concepção, haveria sempre uma mulher no núcleo de um crime. Expressão misógina, de um século misógino, e o que é pior, percorreu o mundo, atravessou o século XX e continua vigente neste quase quarto de século XXI, ainda mais misógino.

Mais do que nunca, as mulheres têm sido tratadas como culpadas pelos homens, e também por quem pensa como homens. Já vimos juíza absolver estuprador de aplicativo porque a passageira havia bebido. Já vimos menina de 10 anos grávida de estupro paterno ter seu aborto previsto em lei recusado e ter que deixar o hospital na mala de um carro para não ser linchada. Nas redes, as boas senhoras diziam que afinal, ela já era uma mulher.

Quando se trata de estupro, frequentemente as mulheres são acolhidas com suspeição, que é outra forma de violência, nas delegacias ou serviços clínicos nos quais buscam ajuda. Enfim, a lista seria infindável, se eu fosse repertoriar os casos de culpabilização da mulher nos crimes hediondos de violência contra ela. Recém agora foi eliminada a figura jurídica do assassinato em legítima defesa da honra, que custou até hoje a vida de milhares de mulheres, sem qualquer punição para os autores, já que a culpada era a vítima. Mesmo depois de morta, uma mulher podia ser condenada.

Por isso, neste agosto lilás, mês da conscientização nacional pela luta antiviolência contra a mulher, em alusão ao aniversário da Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006, me pareceu importante refletirmos sobre esta eterna busca da Mulher pelo seu agressor ou assassino, e mesmo por uma parcela nada negligenciável da sociedade e do poder público.

Parece-me uma felicíssima coincidência que agosto seja também o mês da visibilidade lésbica, graças ao Primeiro Seminário Nacional de Lésbicas que aconteceu em 29 de agosto de 1996, para colocar em relevo a existência das mulheres lésbicas e as violências que elas sofrem, bem como as reivindicações do movimento. Até quando as mulheres lésbicas serão atacadas e mortas em “estupros corretivos”? Até quando elas serão assediadas moralmente, agredidas psicologicamente e fisicamente pelos homens indignados com a sexualidade delas? Até quando elas serão mortas, quase sempre por desconhecidos, os “justiceiros da masculinidade”?

Jacques Lacan, em uma de suas formulações teóricas, disse: “A Mulher não existe”, o que causou furor no movimento feminista e até hoje é mal digerido. Entretanto, ele se referia a esta mulher que idealizam como um falo, A Mulher que daria conta de todos os fantasmas masculinos, a Mulher com M maiúsculo, assim como se diz do “Homem com H”, para o supermacho. O que Lacan propunha é que as mulheres devem ser contadas uma a uma, e que a feminilidade é uma invenção de cada mulher, o que deveria fazer a alegria das feministas, mas até hoje não foi o caso. 

Outra formulação dele foi a de que “A relação sexual não existe”. Com isto, ele estava condensando sua hipótese de que é logicamente impossível que homens e mulheres entrem em relação. Sim, homens e mulheres transam, copulam, fazem amor, etc., mas a lógica feminina e a lógica masculina jamais entram em relação, são inconciliáveis, esta relação lógica entre os sexos não existe. Logo, a heterossexualidade é uma falácia, não existe, mesmo quando tudo corre bem entre um casal. E como psicanalista lacaniana e feminista que sou, me arrisco com a hipótese de que essas duas formulações estão em movimento neste sintoma tão grave do mal-estar social que é a violência contra as mulheres e contra as mulheres lésbicas. 

As mulheres heterossexuais, penso, são agredidas e mortas, em grande parte, porque, por amor aos homens, lhes atestam que o falo é uma impostura. As mulheres lésbicas, por sua vez, porque, por amor às mulheres, não se ocupam de avisá-los dessa impostura, e são a prova viva de que a relação sexual não existe, como pensada na mitologia heterossexual.

Assim, heterossexuais ou lésbicas, as mulheres estão sempre com sua sexualidade na mira da fúria masculina, ou do pensamento fálico. Pois afinal, a Mulher que reafirme o falo para o homem deve existir, e a relação sexual, com sua impossível complementariedade, também deve existir, segundo a lógica masculina que, claro, será prevalente, uma vez que ela é a produção e o sustentáculo da cultura patriarcal, o reino da potência fálica. De onde tanta tragédia.  

Isto posto, remeto vocês a uma outra obra literária, “A doença da morte”, de Marguerite Duras, que ilustra muito bem todas essas formulações de Lacan, e onde temos a felicidade de ler que “ O amor é uma falha súbita na lógica do universo”. Leiam, e vocês terão, como eu, vontade de gritar: “Parem de procurar A Mulher!”

* Rosane Pereira é psicanalista e escritora, presidente da Associação Projeto Gradiva - atendimento clínico psicanalítico para mulheres em situação de violência. É autora, entre outros, de “Mulheres Esquecidas” (Editora  Bestiario, 2022).

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.    

Edição: Katia Marko