Rio de Janeiro

Coluna

Que tipo de legado queremos deixar para o futuro?

Imagem de perfil do Colunistaesd
Torcida do Santos protesta e atirou fogos de artifício no gramado da Vila Belmiro depois da derrota para o Corinthians - Reprodução / Redes Sociais
O filho vê o pai invadindo o campo para agredir os jogadores e acha que também pode fazer isso

*Luiz Ferreira

O futebol brasileiro ainda +é conhecido como um verdadeiro celeiro de craques. Apesar dos resultados nas últimas Copas do Mundo, essa é a visão que o resto do planeta tem do velho e rude esporte bretão praticado aqui por estas bandas. Não é por acaso que os grandes times do Velho Continente ainda fazem questão de abrir os cofres para levar nossos atletas (ainda bem jovens) para lá.

Só que o futebol brasileiro é altamente complexo. Culturalmente falando, misturamos a conhecida paixão com abuso e pregamos o “amor à camisa” como ponto de honra inegociável para defender este ou aquele clube. Quando os resultados não aparecem, vemos a tal paixão se transformar em selvageria, ameaças e boçalidade.

Passamos a “normalizar” o fato de torcedores constranger jogadores e treinadores na porta dos centros de treinamentos por conta desses maus resultados. O tal “amor à camisa” justifica que essas pessoas invadam o trabalho das outras para colocar o dedo em riste, xingar e intimidar todos aqueles que estejam no caminho entre o time e as glórias. “Ou joga por amor, ou joga no terror”, dizem alguns deles.

Mas não é só isso. Há gente (se é que posso usar essa palavra) que vai nas redes sociais ameaçar a família destas mesmas pessoas. Ou até pior. Ninguém pode ir num shopping, num cinema ou sair com os amigos. Existe até quem vigie a vida particular desses atletas nos dias de folga. Se coloque no lugar deles por apenas dois minutos e você vai entender o buraco em que nos metemos nesses últimos anos.

Os incidentes ocorridos na Vila Belmiro na quarta-feira (21) durante a derrota do Santos para o Corinthians, a emboscada ao ônibus do Timão antes do clássico, a invasão dos CT’s do Atlético-MG e do Fluminense, os ataques à sede do Vasco e a intimidação de jogadores dentro e fora dos gramados não são fatos isolados apesar de já terem sido normalizados por imprensa e torcedores.

Nada disso é novidade pra quem acompanha o futebol aqui no Brasil. Todo mundo sabe que isso acontece com a conveniência de diretorias e até mesmo das autoridades que deveriam zelar pela segurança de quem quer ir trabalhar em paz. Sim, amigos. Jogador de futebol também paga boleto e coloca comida na mesa.

Engraçado que a justificativa de quem ameaça é o fato de quase todo atleta de Série A ou B receber um polpudo salário. Ora bolas, se tem gente que se revolta tanto com quem recebe mais, por que elas ainda não invadiram bancos e multinacionais e ameaçaram os responsáveis pela absurda desigualdade social que vemos todos os dias?

Sabe por que não ainda não fizeram isso? Porque vão ser presos e punidos. E sejamos francos, pessoal. Além do futebol brasileiro ter se transformado num dos ambientes mais tóxicos do planeta, ele também virou um antro de impunidade e passadas de pano.

No ano passado, o goleiro Cássio foi agredido na mesma Vila Belmiro que foi palco da selvageria desta quarta-feira (21). E a punição imposta ao Santos foi extremamente branda. Vez por outra vemos membros de organizadas cobrando, intimidando e até ameaçando de morte jogadores e treinadores nas redes sociais, nas postas dos CT’s, nos aeroportos e na entrada e saída dos estádios.

Acontece que ficamos tão acostumados com isso que a impressão é que tudo isso já se transformou numa rotina triste. E a preocupação da imprensa esportiva nesse mundo de likes e engajamentos é o próximo jogo, é o treinador que balança no cargo, é a janela de transferências. Poucos são aqueles que realmente se importam com o que esse comportamento nocivo pode fazer muito em breve.

É esse o legado que queremos deixar para as gerações futuras? O legado da normalização da violência, da intimidação e da truculência quando as coisas não funcionam do jeito que queremos?

Estádio de futebol não é terreno livre pra exercício de racismo, homofobia, misoginia e de qualquer tipo de preconceito contra A ou B. Não estamos falando de um território livre de leis. O problema é que essa cultura permissiva e conveniente com quem pratica esse tipo de violência deixou a situação completamente fora de controle. E é esse o retrato que vem sendo passado de geração em geração.

O filho vê o pai invadindo o campo para agredir os jogadores e acha que também pode fazer isso. A filha vê a mãe xingando o treinador nas redes sociais e passa a fazer o mesmo com os colegas de escola. Os mais jovens veem os mais velhos agindo como covardes com quem não pode se defender e passam a atuar da mesma maneira. E tudo isso é passado de geração em geração até que uma tragédia sem proporções aconteça.

Tudo isso faz parte de um ciclo. É o jornalista/youtuber que inflama a torcida contra um determinado jogador ou treinador. É o dirigente de clube que vê com bons olhos a invasão dos torcedores num centro de treinamento para dar um “choque de realidade” no elenco. É o torcedor mais exaltado que coloca o dedo em riste para ameaçar quem não está jogando bem. É a autoridade que trata a chegada de organizadas no estádio como a chegada de uma procissão no dia de Nossa Senhora de Aparecida. É a imprensa que diz que precisamos repensar tudo depois que a tragédia acontece. E o ciclo recomeça na próxima polêmica.

O que falta acontecer? Uma chacina? Um genocídio? Uma carnificina dentro de um estádio de futebol? É isso que as autoridades estão esperando acontecer para agirem?

Acho que o futebol brasileiro nunca me fez refletir tanto como nesses últimos dias. Como amante do velho e rude esporte bretão, torcedor, jornalista e cidadão. Eu chego até a ficar com uma certa dose de vergonha quando penso nas gerações futuras lendo sobre o que acontecia no Brasil nesses nossos dias e na forma como passamos pano para tudo que vemos dentro e fora dos gramados.

Não vejo uma greve de jogadores como a solução imediata para o problema. Não duvido nada de que a própria imprensa esportiva vai fazer pressão para que eles voltem ao trabalho assim que a grade de programação das emissoras for prejudicada. As coisas precisam vir de cima. Punição para coibir os brigões e educação para conscientizar os mais novos.

Por que, do jeito que as coisas são, o legado que fica para o futuro vai ser muito pior do que o 7 a 1 para a Alemanha ou a espera do novo técnico da Seleção Brasileira.

*Luiz Ferreira escreve toda semana para a coluna Papo Esportivo do Brasil de Fato RJ sobre os bastidores do mundo dos atletas, das competições e dos principais clubes de futebol. Luiz é produtor executivo da equipe de esportes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, jornalista e radialista e grande amante de esportes.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Eduardo Miranda