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O Mais Médicos e o desafio de formar médicos para o SUS

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a retomada do Mais Médicos constituiu uma das primeiras medidas do terceiro mandato de Lula - Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil
Interesses corporativos das entidades médicas prejudicam SUS

O Programa Mais Médicos foi instituído em julho de 2013, durante o primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff, para fortalecer os serviços de Atenção Primária à Saúde. O principal objetivo é reduzir o déficit de médicos com formação adequada no interior e nas periferias das grandes cidades do país.

Para enfrentar esse desafio o programa contava com três frentes de ação: (i) o provimento emergencial de médicos para áreas desassistidas; (ii) a ampliação e reformulação da formação de médicas e médicos e (iii) a destinação de recursos para a estruturação e ampliação de unidades de atenção primária.

O anúncio do programa em 2013, sua conversão em lei e implementação nos anos seguintes foram marcados por um intenso debate público, uma série de críticas e, sobretudo, uma grande resistência das entidades médicas.

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As críticas se dirigiam sobretudo à contratação de médicos por meio de bolsas, à atuação de médicos estrangeiros ou brasileiros formados no exterior (os chamados médicos intercambistas) com registros provisórios emitidos pelo Ministério da Saúde e também às mudanças na regulação da formação médica.

A contratação de médicos para a atuação em áreas remotas e nas periferias das grandes cidades brasileiras teve efeitos imediatos, sentidos por milhões de brasileiras e brasileiros na maior parte dos municípios do país.

De acordo com dados do Ministério da Saúde, em 2017, o componente do provimento emergencial contava com 18.240 médicos atuando em serviços de atenção primária de 4.058 municípios.

Resultados

Uma avaliação do Mais Médicos realizada em munícipios considerados mais vulneráveis por pesquisadores da Fiocruz identificou que o programa possibilitou a redução de internações por causas como asma e problemas do coração, melhorou os cuidados com gestantes e reduziu a mortalidade infantil.

O conjunto de ações do Programa Mais Médicos voltadas para as graduações e residências médicas representaram a ampliação do controle público na formação médica. Tais iniciativas buscavam compatibilizar os aspectos quantitativos e qualitativo da formação de médicos de diferentes especialidades com as necessidades do Sistema Único de Saúde.

Mais cursos de medicina

Além de incentivar a abertura de novos cursos e vagas de medicina em instituições públicas por meio do Programa de Expansão das Escolas Médicas das Instituições Federais de Ensino Superior, o programa instituiu mudanças no processo de autorização para a abertura de cursos de medicina em instituições privadas.  A autorização de novos cursos passou a ser precedida por editais, nos quais a localidade e o número de vagas eram definidos de acordo com critérios estabelecidos pelo Ministério da Saúde relacionados a necessidade social da oferta do curso de medicina e a existência de rede de atenção à saúde pública compatível com a oferta do curso.

Como resultado das ações voltadas para a expansão de vagas em cursos de medicina, até dezembro de 2015, foram abertos 23 cursos de medicina em Instituições de Ensino Superior (IES) federais, somando um total de 1.412 vagas.  A maior parte das vagas em cursos de medicina foram abertas em instituições privadas

Mais especialistas

No que diz respeito à compatibilização da formação de especialistas com as necessidades do SUS, o Programa Mais Médicos instituiu em 2013 estratégias que buscavam ampliar a oferta e a regulação pública dos programas de residência médica. Para isso foi criado o Cadastro Nacional de Especialistas e medidas que buscavam fortalecer a formação de médicos especialistas em Medicina de Família e Comunidade e ampliar o período de formação em serviços de atenção primária para algumas especialidades.

Retrocessos com Bolsonaro

Em novembro de 2018, após a eleição de Jair Bolsonaro e reiteradas declarações hostis ao programa e à atuação dos médicos estrangeiros, o governo de Cuba anunciou o fim do convênio do país com o governo brasileiro e a retirada dos médicos cubanos.

Em janeiro de 2019, após assumir a presidência, Bolsonaro anunciou a substituição do Mais Médicos pelo Programa Médicos pelo Brasil. Nesse processo, praticamente todas as medidas voltadas para a instituição de mudanças na formação de médicos especialistas foram revogadas.

Lula 3

Em 2023, a retomada do Mais Médicos constituiu uma das primeiras medidas do terceiro mandato de Luiz Inácio da Silva.

O programa foi anunciado com algumas mudanças importantes: abertura de novas vagas para o provimento emergencial; possibilidade de abertura de vagas extras com contrapartida dos municípios; ampliação do tempo máximo de permanência dos médicos no programa de 6 para 8 anos, instituição de incentivos financeiros progressivos para a fixação de profissionais em municípios vulneráveis; previsão de bolsa complementar durante a licença maternidade, além da ampliação de oferta educacional para os médicos participantes.

Em que pese a importância fundamental da retomada do provimento emergencial de médicos, a nova versão do programa não retomou todas as medidas presentes no PMM de 2013, revogadas por Bolsonaro: dentre elas as ações voltadas para regulação da formação de médicos especialistas.

Cabe destacar que as residências médicas, em sua grande maioria, são financiadas com recursos públicos e utilizam serviços do SUS para a formação de médicos especialistas. Entretanto a definição do número de vagas e o perfil desses especialistas é controlada pelas sociedades e associações de especialidades médicas sem vínculos com as necessidades e o modelo de organização do SUS. As ações voltadas para as residências médicas esboçadas no Programa Mais Médicos em 2013, ainda que de forma inicial, buscavam reverter essa lógica.

Formação de médicos para o SUS X interesses corporativos

A força de trabalho em saúde é central na organização e no funcionamento de sistemas de saúde.

Nos diferentes sistemas nacionais se colocam os desafios de garantir profissionais com a formação adequada, em quantidade correspondente ao interesse público e nos lugares onde são necessários. Via de regra, tais esforços de regulação sempre foram acompanhados de profundos conflitos com as corporações médicas.

Em países como o Reino Unido, na Australia, Espanha, Portugal e Canadá, o Estado adota medidas para compatibilização entre a formação profissional e as necessidades do Sistema de Saúde. Na Espanha, por exemplo, o número de vagas para as Residências Médicas é determinado pelos Ministérios da Educação e da Saúde com base nas necessidades públicas de saúde, não das corporações médicas ou do mercado da saúde.


 / Foto: Reprodução/ Marcello Casal Jr./ Agência Brasil

No Brasil, esse ordenamento da formação de Recursos Humanos na área da saúde consta na Constituição Federal de 1988 entre as atribuições do Sistema Único de Saúde. Todavia, quando comparamos o nosso modelo de regulação do trabalho médico com outros países que possuem sistemas de saúde públicos e universais, identificamos que o Brasil possui um padrão de baixa regulação estatal.

Essa imposição dos interesses corporativos das entidades médicas e do mercado de serviços de saúde sobre a regulação pública contribui diretamente para o déficit de profissionais com a formação compatível com as necessidades da população e da organização do sistema de saúde. E contribui para as dificuldades de organização da rede de atenção à saúde, além de perpetuar as marcantes desigualdades regionais com a concentração de profissionais em grandes centros urbanos.  

Thais Franco é doutora em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ)

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Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal.

Edição: Elis Almeida