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Coluna

Pia Sundhage, a Seleção Feminina e a necessidade urgente de se entender contextos

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Pia Sundhage recebe camisa em homenagem aos seus 50 jogos no comando da Seleção Feminina - Thais Magalhães / CBF
Quando analisamos o contexto, passamos a entender as razões de Pia em escolher o caminho que segue

*Luiz Ferreira

Antes mais nada, eu gostaria de deixar claro que essa coluna não é uma defesa cega de Pia Sundhage e do seu trabalho à frente da Seleção Feminina. É lógico que muita coisa que pode (e deve) melhorar na equipe e as últimas partidas da equipe provaram isso. Por outro lado, é mais do que necessário rechaçar algumas narrativas que vemos por aí. Algumas delas tem cheiro de ingenuidade. Outras beiram a desonestidade.

Como todos nós sabemos, estamos em ano de Copa do Mundo Feminina. Assim sendo, é mais do que natural que todos os holofotes estejam sobre a treinadora sueca. Ela se transformou no alvo preferido de muitos colegas de imprensa nesses últimos dias. Não é por acaso que as redes sociais se transformam num verdadeiro pandemônio em dia de jogo ou convocação da Seleção Feminina. E isso só prejudica o desenvolvimento da modalidade, visto que os verdadeiros problemas continuam sem solução.

Lembrem-se do que aconteceu com o Ceará na primeira rodada do Brasileirão Feminino.

A diretoria desfez todo o time campeão da Série A2 no ano passado por conta do rebaixamento da equipe masculina e da consequente redução no orçamento do clube. As “Meninas do Vovô” entraram em campo com uma série de atletas vindas das categorias de base e levaram 14 a 0 do experiente time do Corinthians. Questionado pela imprensa, o diretor administrativo do clube, Eduardo Arruda, falou que “as meninas estavam felizes e deviam se mostrar agradecidas por terem aparecido em dois canais de televisão” nos primeiros jogos da temporada.

Curiosamente, as mesmas arrobas que criticaram o trabalho de Pia Sundhage na She Believes Cup até agora não se pronunciaram sobre esse e outros problemas do futebol praticado aqui em todos os níveis. Difícil entender a postura e até mesmo a revolta de alguns colegas quando a treinadora sueca criticou o nível técnico Brasileirão Feminino há alguns meses.

Não adianta nada transformar Pia Sundhage no bode expiatório da vez e colocar nas suas costas toda a culpa pelas mazelas do mundo. Futebol nada mais é do que contexto e entendê-lo é fundamental nessa situação.

Vejo muitas pessoas pedindo um estilo mais “brasileiro” na seleção. Algo mais voltado para o ataque e mais ligado à “essência” do futebol praticado aqui por estas bandas. O grande erro de quem pensa assim aí é acreditar que:

1) O contexto do futebol feminino é o mesmo do masculino;
2) que temos jogadoras com as características certas para atuar em esquemas mais voltados para o ataque contra adversários do primeiro escalão;
3) que o Brasil sempre jogou de maneira ofensiva e propositiva em toda a sua história no futebol feminino;
4) que a Seleção Feminina tem o mesmo prestígio que a equipe masculina possui a nível mundial;
5) que Martas, Cristianes e Formigas nascem todos os dias e estão soltas por aí esperando para serem descobertas.

Entendam que o futebol feminino foi proibido no Brasil por quase 40 anos e que esta e outras modalidades praticadas por mulheres ainda sofrem com o machismo e a misoginia vindas da imprensa, dos dirigentes e da torcida. Não é juntar 11 jogadoras em campo e esperar a magia acontecer. Muito foi conquistado nesses últimos anos, mas ainda há muito o que fazer. Esse é o contexto da modalidade, o cenário com o qual temos que lidar todo santo dia.

E Pia Sundhage sabe disso.

Sabe que a nossa situação não é das melhores e que sofremos com um grave problema chamado formação de jogadoras. Não faz muito tempo, as seleções sub-20 e sub-17 vinham de campanhas ruins nas suas respectivas Copas do Mundo e muitas jogadoras acabavam não virando profissionais por puro descaso da CBF (a verdadeira culpada de muita coisa que colocam na conta da treinadora sueca).

Nesses últimos anos, vimos uma maior integração da equipe principal com os times de base na Seleção Feminina, a consolidação do trabalho feito por Jonas Urias e Simone Jatobá e o surgimento de nomes como Aline Gomes, Jhonson, Dudinha, Tarciane, Lauren, Gabi Barbieri, Ana Clara, Bruninha, Rafa Levis, Yaya e várias atletas altamente promissoras. Algumas delas, inclusive, já fazem parte das últimas listas de convocadas.

O trabalho feito na Seleção Feminina é perfeito? Longe disso. Também tenho minhas críticas.

Não entendi gostei das atuações na Copa América Feminina do ano passado (apesar do título) e ainda não digeri a eliminação para o Canadá nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Ao mesmo tempo (e falando de algo mais recente), não curti algumas das escolhas de Pia na She Believes Cup. Não gostei de Adriana na “volância” e da entrada de uma Marta totalmente fora de forma contra Canadá e Estados Unidos, dois adversários que exigem demais das jogadoras. Principalmente no aspecto físico. Além disso tudo, senti falta de mais variações no desenho tático.

No entanto, quando analisamos o contexto, passamos a entender melhor as razões de Pia em escolher o caminho que seguiu e segue. Angelina e Duda Sampaio, duas das volantes mais promissoras dos últimos tempos, sofreram lesões sérias e ainda estão em recuperação. Antônia, uma das defensoras mais talentosas e versáteis da atual geração, também passa por problemas físicos. Até mesmo a nossa Rainha Marta ainda busca a melhor forma física depois de se recuperar de uma lesão séria no joelho.

Isso explica a aposta de Pia numa dupla de volantes formada por Ary Borges e Kerolin (que até funcionou razoavelmente bem nos jogos da equipe nessa data FIFA) e mais uma série de escolhas realizadas nos últimos jogos da Seleção Feminina. Como se vê, não é nada fácil pensar o time e a preparação para uma Copa do Mundo num cenário tão desfavorável.

É bem possível que todos nós só vamos conseguir entender o que Pia Sundhage está fazendo na Seleção Feminina depois que ela deixar o comando técnico e vermos as jogadoras que ela potencializou assumindo o protagonismo daqui a alguns anos. Quando entendermos que as críticas feitas ao Brasileirão Feminino visam mudar para melhor a nossa liga e não apenas menosprezar o futebol praticado aqui e nem o trabalho feito por treinadores e treinadoras que abraçaram a modalidade como quem abraça um filho.

Quando finalmente entendermos que a grande maioria das reclamações dirigidas à treinadora da Seleção Feminina serve apenas de barricada para a CBF e para os vários dirigentes que ainda enxergam a modalidade como um “peso” nas finanças dos clubes e entidades.

Entendam de uma vez que não é proibido reclamar do trabalho de Pia Sundhage. O que não dá pra aceitar são as análises feitas com o fígado e baseadas num “passado glorioso” que nunca existiu.

Esta crônica não é uma defesa da treinadora sueca. É apenas um clamor solitário, sincero e quase urgente. Ou levamos o contexto e todo o cenário que envolve o futebol feminino no país, ou vamos continuar sofrendo com os mesmos problemas dos últimos 30 anos.

*Luiz Ferreira escreve toda semana para a coluna Papo Esportivo do Brasil de Fato RJ sobre os bastidores do mundo dos atletas, das competições e dos principais clubes de futebol. Luiz é produtor executivo da equipe de esportes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, jornalista e radialista e grande amante de esportes.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Mariana Pitasse