Rio Grande do Sul

LUTAS SOCIAIS

45ª Romaria da Terra defende terra e pão

Edição deste ano vai acontecer na terça-feira de Carnaval (21) em assentamento da reforma agrária de Eldorado do Sul

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Romaria: o evento existe para reavivar a memória e a solidariedade com os pobres da terra - Foto: Arquivo CPT

Terra e pão é o tema da próxima Romaria da Terra, a 45ª edição, marcada para o dia 21 de fevereiro, terça-feira de Carnaval. Vai acontecer no assentamento Integração Gaúcha - Irga, em Eldorado do Sul, distante 17 quilômetros de Porto Alegre.

Todos os anos, desde 1978, a Romaria atrai milhares de romeiros e romeiras de diferentes lugares a se encontrarem para recordar e celebrar os mártires das lutas sociais que tombaram na defesa dos mais pobres.

“A Romaria da Terra volta seu olhar para a temática da terra e do pão porque o planeta Terra não é mercadoria, ele é nossa casa comum, é território de todos os povos, precisa ser cuidado com amor e respeito”, diz Luiz Antônio Pasinato, da coordenação da Comissão Pastoral da Terra/RS. Ele lembra que a celebração “novamente volta seu olhar para um assentamento da reforma agrária, que expressa a luta e a organização dos movimentos do campo".

“Memória, fé e esperança”

Ele detalha um pouco mais as razões da escolha do assentamento de Eldorado do Sul para receber a Romaria: “o assentamento Integração Gaúcha possui uma experiência importantíssima de práticas agroecológicas, na produção do arroz agroecológico, frutas e hortaliças que são comercializadas em feiras orgânicas e mercados da região metropolitana”.  E acrescenta que “produzir alimentos de qualidade livres de agrotóxicos é uma missão que exige opção e vocação dos agricultores e agricultoras camponesas”.


Pão, elemento que integra o lema da edição deste ano / Foto: Arquivo CPT

O evento existe, segundo nota, “para reavivar a memória, a fé, a esperança, o cuidado, a solidariedade com os pobres da terra, fortalecer as lutas sociais e melhoria das condições de vida do povo do campo e da cidade”.

“Nossas causas são muitas: quilombolas, povos originários, sem terra, jovem da roça e da cidade, mulher camponesa e urbana, agricultores ecologistas”, cita frei Wilson Dallagnol, da coordenação da Romaria.

“Deus não tem parte com quem não reparte”

Dallagnol enumera o que chama os “Dez Mandamentos do Romeiro pela Terra”: 1) Na terra onde os trabalhadores são expulsos, Deus é expulso também; 2) A riqueza dos pobres está na união e na luta por seus direitos; 3) Deus não tem parte com quem não reparte; 4) Quem não vive para servir não serve para viver; 5) Queremos terra na terra, já temos terra no céu; 6) O mundo será melhor quando o menor que padece acreditar no menor; 7) Cada um de nós é um profeta; 8) Só há Igreja viva onde há comunidade; 9) Só há Igreja viva onde se luta pela justiça; 10) Para Deus, o homem e a mulher são iguais.

Neste ano, a Romaria é organizada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), Via Campesina, MST, Conselho Indigenista Missionário Sul (Cimi), Comissão das Pastorais Sociais e Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap).


Romeiros querem terra na terra pois “já temos terra no céu” / Foto: Arquivo CPT

PROGRAMAÇÃO

19 e 20 de fevereiro - Acampamento dos Povos, no Assentamento Integração Gaúcha, Eldorado do Sul;

21 de fevereiro - Romaria da Terra
7h - Acolhida dos Romeiros e Romeiras no centro da cidade de Eldorado do Sul;
8h15 - Abertura da Romaria com falas, cantos e mística de louvor;
9h - Caminhada até o assentamento Integração Gaúcha com estações de reflexão sobre denúncia da fome, concentração da terra, dos venenos, anúncio da ecologia, da solidariedade, dos direitos dos povos, cozinhas comunitárias, da conquista da terra;
11h - Celebração da missa;
12h - Almoço com partilha dos alimentos dos romeiros e prato de carreteiro servido pelos assentados;
13h - Momento cultural e falas das movimentos sociais, entidades, fila do povo, lançamento de livro;
15h30 - Mística de encerramento e envio dos símbolos (cruz e vela) para Diocese que sediará a próxima romaria.

Terra que vai acolher os romeiros nasceu da luta pela reforma agrária

O assentamento Integração Gaúcha transformou a vida de dezenas de famílias que produzem hortifrutigranjeiros e arroz livres de venenos


No assentamento, 64 famílias produzem alimentos orgânicos / Foto: Arquivo CPT / Foto: Arquivo CPT

A luta pela terra e por justiça social foi um dos pilares que uniu milhares de sem terras na busca de uma vida melhor e mais digna. Em 18 de setembro de 1989, mais de 1500 famílias ocuparam a fazenda Bacaraí, em Cruz Alta, Noroeste do Rio Grande. O local não cumpria sua função social, ou seja, não havia produção nem moradia em uma vasta propriedade. No acampamento, as famílias já discutiam formas de como cultivar a terra que imaginam obter. Dois anos mais tarde, a persistência deu certo e elas conquistaram seu pedaço de chão.

Diversas áreas foram sorteadas para fins de assentamento e uma delas, com 1409 hectares, estava no município de Eldorado do Sul, na Grande Porto Alegre. Foi destinada ao grupo nomeado “Integração Gaúcha”, composto por famílias oriundas de diversos municípios gaúchos, como Três Passos, Aratiba, Lagoa Vermelha, Constantina, Ronda Alta, Bagé, Criciumal e Canoas.

Oitenta e nove delas conquistaram o assentamento a que batizaram como Integração Gaúcha ou Irga. É onde acontecerá a próxima Romaria da Terra.

Produção orgânica certificada

Com a proposta de buscar o trabalho cooperado, nos primeiros cinco anos elas trabalharam de forma coletiva. No entanto, após esse tempo, formaram-se grupos menores que passaram a realizar um trabalho mais individualizado. No assentamento, a luta continuou. Foi necessário conseguir financiamentos para, então, iniciar as atividades agrícolas, produzir os alimentos de subsistência, e também construir suas moradias.

Hoje, 64 famílias produzem principalmente hortifrutis orgânicos para comercializar em feiras ecológicas, tendo uma relação direta com os consumidores e consumidoras. A produção das famílias é certificada pela Cooperativa Central de Assentamentos do Rio Grande do Sul (Coceargs) através de um sistema de Certificação Participativa de Conformidade Orgânica – OPAC. São vistoriadas, uma vez por ano, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa).

Outras seis famílias trabalham com o plantio de arroz orgânico, certificado pela Coceargs, no sistema designado OPAC de certificação social, totalizando 90 hectares de terra cultivada. Elas colhem em torno de 10 mil sacas de arroz orgânico anualmente.

O assentamento construiu uma comunidade e, hoje, além de oferecer trabalho para os seus moradores, conta com minimercados, espaços de lazer e de educação. Os filhos dos assentados frequentam duas escolas do campo, uma com sete educadores, contemplando 56 educandos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental, e outra de educação infantil, dispondo de 13 educadoras e 50 educandos desde o berçário até a pré-escola.

Os primeiros passos aconteceram ainda sob a ditadura dos generais

De 1978 a 2023, a caminhada mantém sua trajetória de compromisso com os mais pobres


Em 1982, mais de 30 mil romeiros estiveram em Encruzilhada Natalino / Foto: Arquivo CPT

O longo percurso da Romaria da Terra começou em tempos sombrios. Era 1978 e o Brasil vivia sob a ditadura implantada em 1964 quando aconteceu a primeira das procissões. Foi uma das primeiras manifestações sociais de vulto a abrir caminho em pleno autoritarismo. Aconteceu em Caiboaté, em São Gabriel, Campanha gaúcha. Reuniu apenas 400 romeiros que debateram o tema “A salvação do índio está na consciência do branco”, matéria que, em 2023, continua ocupando o centro dos debates.

Já em 1982, ainda sob o regime militar, o encontro se deu em Encruzilhada Natalino, município de Ronda Alta, que, então, abrigava o maior acampamento de sem terra do país. Trinta e três mil romeiros acorreram à caminhada conduzida sob o lema “Povo unido jamais será vencido”.

Cresceu ainda mais no ano seguinte - 40 mil participantes - quando o mote foi “Água para a vida e não para a morte”. Discutia-se então a ameaça representada pelas barragens do rio Uruguai ameaçando afogar terras, vidas e memórias no Norte do estado.

A edição seguinte inovou ao ser realizada, pela primeira vez, na Região Metropolitana de Porto Alegre, mais exatamente na Vila Santo Operário, em Canoas, onde milhares de sem teto reivindicavam um lugar para morar. Somou 50 mil manifestantes motivados pelo bordão “Terra e trabalho para que todos tenham vida”.
O recorde de romeiros ocorreria em 1985, último ano da ditadura, quando juntou 70 mil pessoas em Tenente Portela, na região Noroeste. Aquela 8ª edição teve como temática “Os jovens e os sem terra em busca de pão e vida”.

Nos anos que se seguiram o evento transitou por todas os quadrantes do Rio Grande, abordando os mais variados assuntos como agricultura familiar e camponesa, organização popular, função social da propriedade, reforma agrária, agroecologia, preservação da natureza, papel das mulheres na sociedade, quilombos e quilombolas entre muitos.


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Edição: Ayrton Centeno