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Os sentidos da fome

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No país, mas de 33 milões de pessoas vivem com fome - Foto: Fabiana Reinholz
As camadas populares já viveram com condições financeiras mais favoráveis

Esses dias vi no jornal a situação de uma avó na comunidade do Bode que está sustentando financeiramente quatro famílias, 16 netos vivendo em sua residência: 2 kg de arroz puro todos os dias. E fiquei me perguntando por que os setores médios não estão nas ruas reivindicando políticas de Estado que minimizem o constante estado de escassez de milhares de famílias que hoje sucumbem na cidade do Recife?

É mais razoável a compreensão de que camadas que possuem alguma estabilidade profissional e financeira, refeições diárias, acesso a deslocamento na cidade, dentre outros direitos resguardados consigam dispor de seu tempo, energia e dinheiro para estarem no front desse tipo de luta e reivindicação.

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A fome, mais uma vez na história brasileira, sendo usada como moeda de troca no período eleitoral. E, independente do resultado das eleições, os parâmetros e condições de “fazer escolhas” das camadas populares estará muito fortemente atrelada à situação de negação de direitos básicos. Não está colocada hoje a possibilidade de uma reconstrução do país a partir de novos marcos que não os do capitalismo neoliberal, dependente, racista, com traços de fascismo.

 O nível de rebaixamento das condições de vida do povo é tão grave e difícil são as possibilidades de enfrentamento e organização diante tamanha ofensiva e barbárie das classes dominantes. A construção de uma cultura organizativa, coletiva, associada, com bases populares se faz também necessária quando temos à frente um horizonte de transformação.

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As camadas populares já viveram com condições financeiras mais favoráveis em outros contextos e nem por isso forjou-se uma capilaridade organizativa de resistência que impedisse os rumos que o país tomou de forma mais drástica desde o ano de 2016. Assim, recuperarmos o básico para se viver com alguma dignidade a partir de melhores indicadores sociais, por mais que hoje seja imprescindível, não altera em si as estruturas basilares de nossa formação social brasileira.

Patriarcado, racismo, patrimonialismo, mandonismo, personalismo seguem a todo vapor conduzindo a política brasileira, de forma escancarada no período eleitoral. Sobrenomes de famílias importantes, patrimônios econômicos e culturais, heranças passadas de geração em geração, continuam a definir os lugares privilegiados, os acessos mais rápidos, os maiores financiamentos e, mesmo a ascensão de personagens mais próximos ao padrão produzido pelas classes dominantes. A depender do objetivo último, as organizações atribuídas ao campo da esquerda também se movem reproduzindo estas desigualdades estruturais, dentro das regras determinadas pelas elites brasileiras que comandam o tribunal superior eleitoral, os partidos fisiológicos e toda a lógica eleitoral.

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Seguindo a ordem dos privilégios, quantas centenas de anos serão necessárias para desmantelar essa engrenagem? Por quanto tempo ainda quem detém a hegemonia econômica, portanto também, dos cargos políticos conseguirá se aproveitar da miséria de uma enorme parte da população barganhando votos em troca de qualquer caridade? Como gestões que silenciam sobre a calamitosa situação de escassez e fome de milhares, milhões de famílias, jorram impunemente dinheiro público exibido em bandeiras, material e equipes de pessoas que desta atividade tiram seu ganha-pão ou mantém seus empregos? 

Construir uma cultura organizativa de caráter revolucionário, capaz de atingir e modificar as estruturas, de posicionar o povo brasileiro na luta de classes a partir de outros condicionantes, assim como de forjar a consciência coletiva em que a dimensão da política seja considerada como algo desejável e necessário segue sendo um desafio de grande estatura. As organizações que se afirmam de esquerda precisam se rever a todo instante, pois delas esperamos irromper práticas que impeçam a reprodução das desigualdades que estruturam as relações sociais. Assim como é importante ao analisar a conjuntura que consigamos aprender com os erros do passado para não cometê-los novamente em um cenário ainda mais desolador.

Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Edição: Vanessa Gonzaga