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Não podemos fazer arminha com o idioma

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Em 2018, Bolsonaro disse “vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre, hein?” - Foto: Reprodução/Redes Sociais
Palavras também podem matar ou, ao menos, ajudar a pôr uma ideia errada na cabeça e uma arma na mão

Antes da pressão no gatilho, a cabeça do assassino não está vazia. Ela guarda uma concepção da vida, das pessoas, do país e do mundo, explicada e moldada por experiências e também por palavras escritas ou ouvidas. Se as palavras estiverem descoladas da realidade, fornecerão uma leitura distorcida apta para alimentar valores equivocados. Assim, a cabeça de quem irá se assumir assassino pode operar como uma oficina do diabo onde se forja o ressentimento, a fúria, o ódio e, no limite, a eliminação do Outro.

Na sua interpretação sinuosa, o assassinato pode ser percebido até como um dever de justiça. Faz todo o sentido do mundo. Por obra e desgraça da desinformação de que se nutre, o Outro é percebido como o culpado pela vida frustrada e medíocre do seu carrasco.

Palavras também podem matar ou, ao menos, ajudar a pôr uma ideia errada na cabeça e uma arma na mão.

Todo fascismo tem seu bode expiatório: o judeu, o negro, o homossexual, o estrangeiro, o esquerdista, o diferente enfim. Mas, antes dos assassinatos sempre vieram as palavras tortas. Se elas não tivessem vindo para sua tarefa preparatória, não haveria consequências funestas.

“Fuzilar a petralhada” ou mandar para “a ponta da praia”, apenas para ficarmos em duas expressões, podem operar como o estalar dos dedos para o assassinato político. “Ponta da praia” era, como se sabe, lugar de desova de cadáveres assassinados pela ditadura militar.

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Ao longo de seu percurso político, Jair Bolsonaro nunca foi traduzido com as palavras mais certas. Quando disse a uma deputada que não a estupraria por ser feia – portanto, apresentando-se como estuprador potencial – houve moderada indignação. Aquilo que, em um parlamento civilizado, ejetaria seu autor para a estratosfera, recebeu uma abordagem delicada. Afinal, era uma parlamentar de esquerda. Preferiu-se o adjetivo “polêmico”. 

Candidato que alcançou o poder favorecido por uma engenharia de fabricação e distribuição de fake news em escala industrial, foram raros aqueles que, na imprensa hegemônica, questionaram a trapaça. Mais raros ainda deram àquilo seu nome verdadeiro: mentiras.

Presidente, turbinou a violência verbal contra adversários políticos, jornalistas, indígenas, quilombolas, mulheres, homossexuais, imigrantes, ambientalistas. Seguiu-se sempre um frenético passar de pano. Do gênero “Ele é assim mesmo”, “Está só brincando”, “Não se pode levar ao pé da letra”. Erro: um fascista brinca sim mas de violência política.

Diante de Bolsonaro não cabe jornalismo declaratório. Não é possível deixar, sem réplica sua afirmação, por exemplo, que, na pandemia, desde o princípio, o governo se preocupou com a vida das pessoas.  Ou dizer que seu governo não tem corrupção.

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Tratar Bolsonaro como mais um presidente com suas idiossincrasias é um engano medonho. Agir como se não fosse uma abominação é banalizar o mal.

Mas não é só ele. No ambiente surreal da disputa eleitoral de 2018, salvo exceções contadas nos dedos de uma só mão, a mídia corporativa empenhou-se arduamente em naturalizar o horror.

Um editorial do Estadão cavou seu lugar na história da crônica política do Brasil. Com o título “Uma escolha muito difícil” colocou mais um ladrilho no caminho do concorrente do PSL ao Planalto ao equipará-lo com Haddad. Chamar a escolha entre um democrata e um neofascista arregaçado de “difícil” é corromper o significado do adjetivo. Quatro anos depois, em junho deste ano, o mesmo diário torturou novamente o sentido das palavras para definir Lula como “incorrigível autoritário”.

São palavras arrevesadas assim que criaram a ideia de “polarização” como se se tratasse de dois extremos. Um passo adiante e a “polarização” está sendo empregada para pintar como “briga” uma execução premeditada e covarde.

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Quando os meios de comunicação filtram, pasteurizam e atenuam as brutalidades proferidas por uma liderança perversa, ajudam a preservar o rancor incutido na mente de homens comuns que se convertem em pistoleiros.

Não podemos fazer arminha com o idioma.

Agora, parcela da mídia começa a dizer que Bolsonaro mente. E que mente tão descaradamente que repete as mesmas mentiras. E já é possível ler e ouvir que ele prepara um golpe. Usar as palavras certas sem dissociá-las dos fatos e atos que devem descrever pode evitar tragédias.

Demorou. Antes tarde do que nunca.  

Edição: Glauco Faria