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Mosaicos

Análise | Os biógrafos e as biografias de Machado de Assis

Cada um dos biógrafos de Machado de Assis tem buscado responder ao longo dos anos às perguntas de sua própria geração

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Escrever uma biografia é um exercício difícil e delicado, um horizonte quase inacessível - Reprodução

Em uma das passagens mais comoventes e esclarecedoras das “Páginas de Saudade”, ensaio publicado, originalmente, no Jornal do Commercio, em 29 de setembro de 1909, em homenagem ao primeiro aniversário da morte de Machado de Assis, o escritor e jornalista Mário de Alencar (filho de José de Alencar) sugere que “sendo tudo expressão humana, a Machado nada mais cabia senão olhar e comentar os homens”.

É uma ideia fixa. Mário acreditava, piamente, que Machado havia escondido no escritor, a ternura do homem. 

O “homem secreto” que Mário, condescendentemente, identificou em Machado, não era o mesmo que, anos mais tarde, Augusto Meyer apontará em seu famoso ensaio “machadiano” intitulado “O homem subterrâneo” (1935). Para Meyer, escondido nos “borboleteios maliciosos, digressões e parênteses felizes” que espalhou por sua obra, Machado de Assis mostrava uma “fisionomia íntima”, mas através de “caretas”. É como se Machado se deliciasse em ser incompreendido, empilhando máscaras tristes e sombrias, sobre suas “voluptuosas acrobacias humorísticas”, um humor melancólico, quase “chapliniano”. 

Em suas “Páginas”, Mário de Alencar também faz uma revelação: Machado de Assis costumava repetir a sós, e às vezes até recitava para ele, o “Mal Secreto”, famoso soneto de Raimundo Correia, associando o sentimento dos versos ao seu próprio estado de espírito: “Se se pudesse, o espírito que chora, ver através da máscara da face, quanta gente, talvez, que inveja agora nos causa, então piedade nos causasse”. 

Como se requisitasse “absolvição compulsória” para as verdades amargas do autor de Dom Casmurro, Mário defendia que Machado não acusava (ou julgava), apenas reproduzia o que via, opondo à “natureza má” dos homens, o “sorriso inteligente”. Algo, que não me parece distante daquilo que se espera do biógrafo no exercício diário do seu complicado ofício. 

Ao cuidar não da obra do escritor, mas apenas do homem Machado de Assis, Mário (sem perceber) inaugurava uma tradição de mais de um século, sem similar nas letras brasileiras. Desde então, praticamente cada geração viu aparecer um novo “estudo biográfico” sobre Machado. No site da Academia Brasileira de Letras dedicado ao escritor carioca existem, pelo menos, 27 biografias registradas.

Mário de Alencar começou a escrever as “Páginas de Saudade” poucas horas antes de Machado de Assis morrer e levou quase um ano para terminá-las. Com o revolucionário modelo das Memórias póstumas de Brás Cubas em mente, Mário narra com dramaticidade os momentos derradeiros (e sofridos) de Machado, acometido de moléstia grave (câncer de língua): “Eu, seu amigo e seu admirador grande, desejo que ele morra, mas não tenho coragem de o ver morrer (...) ele ignora o horrível mal que o vai devastando, porém, sofre”. 

Mosaicos complexos

Ao mesmo tempo, em que tentam juntar “os cacos” e preencher “as lacunas” de uma vida cheia de mistérios (e isso já se percebia no texto pioneiro de Mário de Alencar), cada um dos biógrafos de Machado de Assis tem buscado responder, ao longo dos últimos cento e poucos anos, às perguntas de sua própria geração, a respeito do maior escritor brasileiro de todos os tempos. 

Dentro dessa tradição centenária, Machado desafiou e continua a desafiar aqueles que se debruçam sobre sua vida e obra. É uma fonte inesgotável. Segundo Ubiratan Machado, autor do Dicionário de Machado de Assis, “ainda há muitos aspectos de sua vida que merecem pesquisa e reflexão mais profunda, demandando uma nova biografia, que nunca será a definitiva”. 

Entre as mais importantes biografias de Machado de Assis já publicadas estão os trabalhos de Alfredo Pujol (Machado de Assis, 1917); Lúcia Miguel Pereira (Machado de Assis – estudo crítico e biográfico, 1936); Manuel José Gondim da Fonseca (Machado de Assis e o hipopótamo, 1960); Luís Viana Filho (A vida de Machado de Assis, 1965); Jean-Michel Massa (A juventude de Machado de Assis 1839-1870, 1971); Raimundo Magalhães Júnior (Machado de Assis – vida e obra, 1981); e Daniel Piza (Machado de Assis – um gênio brasileiro, 2005). 

Tão diferentes entre si, como mosaicos complexos, todas elas apresentam um amplo, difuso e fragmentado retrato do biografado.

Carregam uma historicidade própria e alicerçam suas bases sobre as anteriores, acrescentando seus próprios “tijolos” a uma construção monumental que vai transformando o ato de contar a história de Machado de Assis, praticamente, em um trabalho coletivo de “ajuda mútua” e “permanente revisão crítica”. 

A biografia de Pujol, o primeiro a sistematizar o estudo da vida de Machado, esculpe o “grande homem das letras nacionais”. Já o livro de Lúcia Miguel Pereira, praticamente um “romance de formação”, ao ser lançado em meados dos anos 1930, aponta para a dicotomia entre o escritor “oficial” e o “homem fragmentado”. Por sua vez, o francês Jean-Michel Massa se debruça sobre a juventude de Machado, o período mais nebuloso da vida do “Bruxo do Cosme Velho”. 

Em Machado de Assis e o hipopótamo, de Gondin da Fonseca, percebe-se o esforço do autor em corrigir erros das biografias anteriores. Porém, outros são acrescentados. É digno de menção o incansável trabalho desse pesquisador, que conseguiu resgatar importantes documentos sobre Machado e seus familiares. Luís Viana Filho e Daniel Piza, cada um em sua época, concentram seus esforços nas dimensões “humanizantes” de Machado de Assis, pretendendo surpreendê-lo “por dentro”, revelando uma “flor de sombra”, que viveu uma vida inteira tentando se esconder. 

Chegamos então a Raimundo Magalhães Júnior, que passou quase 60 anos de sua vida lendo e escrevendo sobre Machado de Assis. Raimundo é antes de tudo um admirador de Machado, um “super-leitor” da obra machadiana. A sua tetralogia Machado de Assis – vida e obra, esforço grandioso e fundamental, acompanha passo a passo o biografado em sua escalada à glória.

"Ressuscitar os mortos"

O crítico literário e semiólogo francês Roland Barthes dizia que o sonho de todo escritor era encontrar, depois de morto, um biógrafo amigável. No entanto, Machado nunca pretendeu ser amigável com seus biógrafos, e não facilitou, nem um pouco, o trabalho deles. Como Augusto Meyer explicou na apresentação do catálogo da exposição em homenagem ao centenário do criador do defunto-autor Brás Cubas (1939), “ao contrário do pequeno polegar, Machado tomou o cuidado de não marcar o caminho, grão a grão, pelo menos no trecho inicial de sua carreira”. 

O curioso é que o próprio Machado, por volta dos 20 anos, tentado pelo gênero “impuro” e “híbrido” da biografia, chegou a anunciar que escreveria uma série de perfis biográficos de figuras de sua época. Depois, em 1873, planejou escrever uma biografia do poeta Basílio da Gama, autor do Uraguai. Ambos os projetos, no entanto, jamais foram concluídos.

Uma biografia é, em síntese, uma reunião muito especial de pessoas, experiências, ideias e habilidades em torno de um produto tangível, no caso, um livro.

O biógrafo compartilha com os leitores seus entusiasmos e suas angústias. Escrever uma biografia é um exercício difícil e delicado, um horizonte quase inacessível: gastar anos e mais anos de sua própria vida para esmiuçar e compreender a existência de um outro, praticamente estranho (o biografado). 

No fundo, “o objetivo de todo biógrafo”, como percebeu o historiador francês Jules Michelet, “é ressuscitar os mortos”, enfim, um empreendimento pretencioso fadado ao fracasso. Mas, isso não importa muito, porque, mais modestamente, ainda é possível ao biógrafo apontar descobertas, novos caminhos e diferentes perspectivas em relação ao seu “objeto de estudo”. O morto não ressuscita, mas a sua memória é honrada.

O dilema do biógrafo, especialmente do biógrafo de Machado de Assis, é sistematizar a vida do seu biografado, sem torná-lo distorcido, ao mesmo tempo em que o compreende, redesenhando-o a partir do seu próprio ponto de vista, o que, não poucas vezes, criará outros tipos de distorções. 

A biografia é um balançar na corda bamba entre a ciência e a arte, como percebeu André Maurois, autor de A arte da biografia (1928). Talvez, por isso, o historiador francês François Dosse confessou que “o biógrafo sabe, lá no fundo, que jamais concluirá sua obra, não importa o número de fontes que consiga exumar”. É possível (mas não conclusivo) que a derradeira biografia de Machado de Assis esteja, talvez, nos próprios livros que escreveu. 

Geralmente, reconhecido como tímido e retraído, ainda assim, há quem enxergue em suas obras, um tom confidente.

Uma dessas pessoas foi Elói Pontes, outro biógrafo de Machado. Elói apontou em seu livro A vida contraditória de Machado de Assis (1939) que Machado “soube ritmar os descompassos da natureza, procurando harmonias nas desordens, valendo-se das fraquezas, imprimindo energias às debilidades, dominando os decretos misteriosos do destino”. 

Apesar das “eventuais dificuldades” que Machado de Assis legou a seus biógrafos, por outro lado, ele também lhes anotou “senhas”. Uma delas, penso, é aquela que reflete como o escritor “pode ser homem do seu tempo e do seu país”, mesmo quando “trata de assuntos remotos no tempo e no espaço”. Nas obras de Machado de Assis, a nitidez sempre se deve a um certo grau de indefinição. Essa é a base da ironia machadiana, que corresponde, não poucas vezes, se “decifrada”, a verdadeiros “momentos eureca”.

Por isso, a pergunta que todo biógrafo de Machado de Assis se faz, no fundo, não é diferente daquela feita por Jean Paul Sartre no início de sua épica biografia de Gustave Flaubert: o que se pode saber de um homem, hoje em dia? A propósito, não custa lembrar aqui uma frase do escritor francês, que bem poderia ter sido criada por Machado: “É de tanto trabalhar que consigo calar minha melancolia natural”. 

Uma frase que me faz lembrar daquela outra (frase inspirada e inspiradora), de Nélida Piñon, carregada de uma profunda esperança: “Se Machado existiu, o Brasil é possível”. A frase de Flaubert me lembra a de Nélida, por dois motivos muito simples: primeiro, porque Machado é mesmo, inequivocamente, esse “espírito-índice”, esse “temperamento-expoente” do seu povo, de que falou Elói Pontes. Segundo, porque só com muito trabalho é que nós conseguiremos curar o Brasil dessa melancolia profunda que por aqui se instalou nos últimos quatro, cinco, seis anos.

* Escritor, editor e jornalista.

**Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Mariana Pitasse