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Brasil tem 200 mortes por covid por dia — quase todas evitáveis

Segundo especialista ouvido pelo BdF, vítimas se concentram em grupos vulneráveis, o que gera invisibilização de casos

São Paulo | Brasil de Fato |

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A gravidade da situação não vem se refletindo nas políticas públicas relacionadas ao controle da pandemia - Mike Sena / Agência Brasil

Há duas semanas, o Brasil apresenta, todos os dias, média móvel de mortes diárias de covid-19 maior que 200, com tendência de alta. Nesta sexta-feira (15), por exemplo, o número chegou a 250, de acordo com o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). 

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Esse montante de óbitos é muito menor do que os registrados em abril de 2021, na pior onda da pandemia. Naquele momento, a média móvel de mortes diárias ultrapassou a marca de 3 mil. Mas, mesmo assim, o país se encontra em um cenário de mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave nunca antes registrado. 

A dimensão da tragédia do ano passado dificulta a percepção de que o país ainda convive com um patamar recorde de mortes por causas respiratórias, desde que essas informações começaram a ser coletadas. Um levantamento realizado com os dados abertos do InfoGripe/Fiocruz mostra que, entre 2009 e 2019, o Brasil registrou 22.122 mortes por Síndrome Respiratória Aguda Grave, uma média de pouco mais de 2 mil mortes por ano. Hoje, o país vê 2 mil óbitos por apenas uma causa – a covid-19 – a cada 10 dias, em média.  

Isso mostra que mesmo com o avanço da vacinação, o coronavírus segue sendo muito mais letal do que os vírus que causam gripe, que já circulam no mundo há mais tempo. Agora, essa letalidade está concentrada em grupos específicos: idosos, pessoas imunossuprimidas, crianças menores do que 1 ano e aqueles que, por qualquer motivo, não se vacinaram. Dessa forma, tornam-se mortes "invisíveis". 

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De acordo com Isaac Schrarstzhaupt, cientista de dados e coordenador da Rede de Análise Covid-19, essa situação colabora para o aumento da circulação do vírus. "A gente percebe que estamos com uma doença muito mais letal do que a H1N1 e que, por estar se transmitindo sem problema nenhum, está desenvolvendo variantes que estão conseguindo infectar as pessoas cada vez mais rápido", explica. 

"Agora a gente tem públicos que sofrem menos e públicos que sofrem mais com as ondas de menor proporção que a gente vem observando", afirma Anderson F. Brito, virologista, pesquisador científico do Instituto Todos pela Saúde (ITpS) e integrante da Equipe Halo, da Organização das Nações Unidas. 

"Se a gente for olhar só para o número de casos, são tão altos como as ondas de 2021. No entanto, não geram tanto impacto para os mais jovens, que ficam um pouco mais displicentes, porque sabem que provavelmente não terão casos graves, mas se esquecem que eles estão conectados com outras pessoas."

Calendário eleitoral 

 A proximidade das eleições ajuda a explicar o cenário. "A gente está em ano de eleição. A gente sabe que por opção dos governos muitos deles estão no modo fim de pandemia, eles decidiram que a pandemia acabou – ela não acabou – por que a gente sabe isso traz votos, dizer que venceu a pandemia. Não tocar no assunto também pode trazer frutos do ponto de vista político, mas quem sofre é a população, especialmente esses grupos mais vulneráveis", lembra Brito. 

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De fato, a gravidade da situação não vem se refletindo nas políticas públicas relacionadas ao controle da pandemia. A quarta onda da covid-19 no país não provocou mudanças de postura por parte dos governos. A vacinação segue como a principal – senão única – estratégia para controle da gravidade dos casos, sem que a transmissão seja controlada. 

Desigualdade vacinal 

Mesmo sendo a grande aposta do país para o controle da pandemia, a vacinação vem apresentando problemas graves. O primeiro deles é a desigualdade vacinal. No país, a cobertura da segunda dose está em 77% da população total. No estado de São Paulo, no entanto, a cobertura com a segunda dose é quase universal, chegando a 88% da população total, e em Roraima esse número é de apenas 53%. 

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A cobertura das doses de reforço é ainda pior. No Brasil, a terceira dose chegou a 46% da população. Em São Paulo, esse número é de 56%, enquanto em Roraima, não passa de 17%. As doses de reforço são consideradas fundamentais para manter a proteção da população contra casos graves e mortes por covid-19, tanto por conta do aparecimento de novas variantes que apresentam escape imunológico em relação às cepas anteriores, como por conta de uma diminuição natural da imunidade vacinal com o passar dos meses. 

Mortes evitáveis 

"É um receio meu sobre a doença acabar sendo negligenciada. Chega até a ser estranho, porque é uma das doenças que mais teve investimento de governos para vacina, para tudo, ao mesmo tempo se tornar uma doença negligenciada, no sentido de que ela está atacando vulneráveis e locais mais pobres, que têm pouca cobertura vacinal", afirma Schrarstzhaupt.

Ele afirma que o gráfico da cobertura vacinal no país se assemelha ao gráfico do Produto Interno Bruto, o que mostra a desigualdade econômica no acesso à imunização. 

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Embora não seja possível precisar quantas mortes poderiam ser evitadas por dia no país, é fato que já existem as ferramentas para que o número de vítimas seja muito menor. Nesse momento da pandemia, há vacinas para quase todos os grupos – pelo menos no Brasil – e os mecanismos de transmissão da covid são amplamente conhecidos. O que falta, então para que as vítimas fatais deixem de ser contadas às centenas? 

O que deve ser feito? 

As duas ações mais simples para evitar a transmissão do coronavírus e o agravamento dos casos são a vacinação e o uso de máscaras em locais fechados ou em aglomerações. Para aumentar a cobertura vacinal, é fundamental promover uma campanha vacinal robusta, para combater a desinformação e a hesitação vacinal.  

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O uso de barreiras físicas contra o vírus também é fundamental. "A gente observou, por exemplo, a desobrigação do uso de máscaras de uma maneira um pouco repentina demais, acompanhado dessa mensagem de fim de pandemia, que foi equivocada", afirma Brito.

"Com isso, as pessoas estão menos conscientes do risco que estão enfrentando. Não usam máscaras em ambiente fechado, ou seja, estão se colocando disponíveis a uma possível infecção", explica.  

Schrarstzhaupt vai na mesma linha. "O Japão é um baita exemplo. Eles não tiveram nenhuma daquelas medidas draconianas, mas ao mesmo tempo tiveram uma taxa de óbitos por milhão de habitantes baixa em relação a outros países que tomaram medidas similares. O que tem de diferente? É a educação da população em relação à transmissão de doenças infecciosas que está muito mais avançada", conta.  

Ele defende que a obrigatoriedade do uso de máscaras não se sustenta a longo prazo sem informação de qualidade. "Penso muito mais numa campanha constante de educação sobre transmissão de vírus respiratórios. Eles estão conosco, vão estar conosco e temos que saber lidar. Dá pra viver", afirma Schrarstzhaupt . 

A questão da transmissão do vírus em ambientes fechados também precisa se tornar uma preocupação. "Hoje a gente sabe muito bem como o vírus se transmite, então a gente poderia investir em ventilação de ambientes, em melhorar a arquitetura pensando em vírus respiratórios", diz Schrarstzhaupt. 

Edição: Lucas Weber