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Como um bom cemitério, tudo está em paz

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Depois de uma semana de impasses, a PEC que permite aumentar o repasse de recursos para a política social às vésperas das eleições foi aprovada no Congresso - Elaine Menke/Câmara dos Deputados
Quando Bolsonaro se elegeu em 2018, muitos viam uma grave ameaça à militância de esquerda

Olá, sem votos, Bolsonaro só pode vencer pela força. E quando a política se reduz a uma questão de força, a razão sempre acaba do lado do vencedor. Leia esta edição ao som de Emicida.

 

.O vôo do abutre. Quando Bolsonaro se elegeu em 2018, muitos viam uma grave ameaça à militância de esquerda. Alguns chegaram a deixar o país, mas as piores projeções não se confirmaram de imediato. Quatro anos depois, o assassinato de Marcelo Arruda, ex-tesoureiro do PT de Foz do Iguaçu, mostra que a profecia pode estar apenas atrasada. A pergunta que todos fazem é se este acontecimento é parte de um plano golpista de Bolsonaro. Até João Doria acha que sim. Para Camilo Aggio, o sucesso de uma aventura deste tipo dependeria da capacidade de Bolsonaro cooptar os policiais, assim como fez com militares e colecionadores de armas. O problema é que, apesar de já haver uma cultura policial que enxerga a esquerda, o judiciário e a mídia como inimigos, nem todos são bolsonaristas. E, segundo o vereador do PT e policial civil Leonel Radde, a adesão a Bolsonaro está caindo dentro da corporação. Porém, a insegurança também ronda os policiais progressistas, taxados de “traidores” por seus colegas. Ainda assim, o assassinato de Arruda seria uma demonstração de força e radicalização de uma minoria. Não estaria descartada também a possibilidade de uma nova “facada” cenográfica, como indicam os recentes movimentos da campanha de Bolsonaro e da PM do Rio de Janeiro, completando um quadro de instabilidade endêmica em direção à ruptura. Já o cientista político Cláudio Couto não vê a possibilidade de um golpe coordenado, mas acredita que a onda de violência irá se aprofundar. Seja como for, mesmo sem o apoio do Tio Sam ou de seu próprio partido para uma aventura golpista, Bolsonaro deve seguir apostando na instabilidade e plantando o medo na esquerda. Ele ainda conta com o oportunismo da grande mídia e de lideranças políticas como Rodrigo Pacheco e Ciro Gomes, que falam em “polarização”, igualando bolsonaristas e petistas.

.Ligando o desfibrilador. Quem tem um amigo como Arthur Lira tem tudo. Depois de uma semana de impasses, a PEC que permite aumentar o repasse de recursos para a política social às vésperas das eleições foi aprovada no Congresso. O que não quer dizer que o tema seja unanimidade, como revelam os apelidos “PEC Kamikaze”, “das bondades”, “dos benefícios” e “do desespero”, a depender do gosto do freguês. O processo contou com uma pitada de mistério: uma suspeita de sabotagem no sistema de votação da Câmara. Seria um balão de ensaio para plantar a desconfiança sobre o sistema eleitoral em outubro? Difícil saber, mas não é de se duvidar. É óbvio que a PEC foi uma medida desesperada para dar sobrevida à candidatura de Bolsonaro. Mas ela dificilmente será capaz de fazer milagre, avalia o senador petista Humberto Costa. Até porque a popularidade do capitão despencou na principal região eleitoral do país, o sudeste, passando de 53% dos votos no primeiro turno de 2018 para os atuais 34% das intenções de voto. O mesmo ocorre no eleitorado paulista, onde agora o antibolsonarismo supera o antipetismo. Isso sem considerar que as medidas previstas pela PEC são tardias e insuficientes e, para os mais pobres, devem ser corroídas pela inflação dos alimentos, enquanto faltam medicamentos básicos no SUS. Ou seja, assim como ocorreu com a promessa de redução no preço dos combustíveis, a expectativa deve ficar aquém da realidade. Além disso, das sete medidas embutidas na PEC, quatro ainda dependerão de regulamentação futura para serem implementadas. A única certeza é que o esforço de Arthur Lira só fez aumentar a dívida do governo com o centrão, embora a verdade seja que o Congresso tem suas próprias pautas. Afinal, além de derrubar o veto de Bolsonaro sobre a compensação do ICMS dos governadores, o Congresso também alterou a Lei de Diretrizes Orçamentárias, tornando ainda menos transparente o orçamento público e garantindo vida longa do poder do centrão.

.Pre-pa-ra. A PEC de Lira e Bolsonaro e o assassinato do petista no Paraná podem ter um efeito ainda mais surpreendente: derrubar de cima do muro a parte do PIB que ainda não havia escolhido um dos lados na eleição. Vale ler o depoimento do ex-banqueiro Paulo Dalla Nora Macedo sobre como a elite financeira compartilha os mesmos valores que o bolsonarismo. E talvez tenha sido mais a perda do teto de gastos do que de vidas humanas que pesou nas decisões. Mas o fato é que a Faria Lima ficou horrorizada e panfletou o quanto pôde contra a PEC. E se Bolsonaro tratar a crise econômica global que se aproxima como tratou a pandemia, faltarão aviões para fugir para Miami. Por isso, Lula foi recebido com sorrisos na mesma FIESP que há seis anos inflou patos na avenida Paulista. Lá, o petista repetiu o mesmo discurso da entrevista do Financial Times: a economia no seu governo terá credibilidade, previsibilidade e estabilidade. Enquanto isso, os petistas calculam qual regra fiscal apresentarão para o mercado para substituir o teto de gastos. Mesmo na fortaleza bolsonarista que é o agronegócio, Lula parece criar fissuras. E o encontro de Lula com Rodrigo Pacheco revela que o petista está de olho na campanha, contando com o senador no seu palanque em Minas, na posse, reconhecendo o resultado das eleições, e num eventual futuro governo. O movimento inclui a busca de apoio do PSD e do MDB para garantir os 190 deputados que o PT calcula que precisa para governar com tranquilidade. Como se tudo isso não fosse suficiente, Lula ainda ganhou uma cabo eleitoral com mais seguidores do que a população da França.

 

.Ponto Final: nossas recomendações.

A utopia, a história e o desafio de governar. No A Terra é Redonda, José Luís Fiori mostra como a esquerda latino-americana precisa enfrentar um velho desafio: administrar a economia capitalista enquanto aponta sua superação. 

.10 anos do Código Florestal: retrocessos e pouco a comemorar. Raul Valle escreve sobre os dez anos da grande vitória da bancada ruralista, o código florestal, e como ele abriu caminho para um maior desmatamento da Amazônia.

.Mega vazamento revela esquema da Uber para manipular leis com a ajuda de políticos influentes na Europa e nos EUA. O GGN repercute as denúncias de como o Uber cresceu com práticas condenáveis e o apoio de Emmanuel Macron e Joe Biden.

.Meritocracia para quem? A interseção entre renda, raça e desempenho no Enem. A partir de dados do INEP, pesquisa mostra como a corrida para ingressar no ensino superior no Brasil é extremamente injusta. No Nexo.

.Preconceito científico, racismo genético e o capitalismo. No Diplô Brasil, veja como o uso de informações genéticas pode se converter numa forma de racismo e hierarquização social.

.Atlas Network e Institutos Liberais. No podcast Chutando a Escada, o professor Luan Correa Brum (UFSC) fala sobre a ação da organização estadunidense para fomentar organizações de direita na América Latina.

.Financeirização da Educação. No podcast Dilemas do Sul, Lauro Allan Almeida e Roberto Leher discutem os resultados da pesquisa do Instituto Tricontinental sobre a mercantilização da educação brasileira.

.Roger Waters: uma conversa sobre ameaças reais à humanidade. Amor, vida, desespero e destruição da humanidade. A nova turnê do ex-Pink Floyd é marcada pelo tom explicitamente político. No Le Monde Diplomatique.

 

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Ponto é editado por Lauro Allan Almeida Duvoisin e Miguel Enrique Stédile.

Edição: Vivian Virissimo