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Direito é direito | Suspensão de despejos: prorrogação é medida essencial

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O prazo previsto para a suspensão da ADPF 828 está prestes a se encerrar em 30 de junho, então, é necessário defender os motivos para a sua prorrogação
O prazo previsto para a suspensão da ADPF 828 está prestes a se encerrar em 30 de junho, então, é necessário defender os motivos para a sua prorrogação - Giorgia Prates
Passados quase três meses da última decisão, o cenário de agravamento da pobreza continua presente

Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828 (ADPF 828), o Supremo Tribunal Federal (STF) tem exercido um papel imprescindível na análise de remoções forçadas em imóveis urbanos e rurais decorrentes de conflitos coletivos. A suspensão dos chamados despejos na pandemia contribuiu para garantir dignidade a centenas de milhares de famílias.

Considerando, no entanto, que o prazo previsto a suspensão está prestes a se encerrar em 30 de junho, é necessário defender os motivos para a sua prorrogação.

Em linhas gerais, as três decisões proferidas, de relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, realçam que é imprescindível evitar que as remoções e desocupações violem os direitos à moradia, à vida e à saúde das populações envolvidas.

Além disso, elas apontam que a pandemia impacta de forma desproporcional pessoas pobres e negras.

Em razão de fatores como saneamento básico e acesso à água potável precários, dificuldade de praticar o isolamento social e necessidade de sair para trabalhar. Nesse sentido, a moradia se tornou a linha de frente de defesa contra o coronavírus, pois a tutela do direito à moradia serve como condição para a realização do isolamento social, ao mesmo tempo em que a atuação estatal deve estar voltada às pessoas de situação de vulnerabilidade.

Considerando os efeitos socioeconômicos da pandemia, o tribunal sublinha que o agravamento da pobreza extrema no Brasil pode ter como consequência o aumento do número de desabrigados e, ao fim, contribuir não apenas para a conflagração de uma situação aguda de flagelo social, mas também para o recrudescimento da crise sanitária. Por fim, do ponto de vista específico dos índices de contaminação, a retomada da execução de ordens de despejo deve aguardar a normalização da crise sanitária. 

Passados quase três meses da última decisão, o cenário de agravamento da pobreza continua presente, como demonstra o 2º Inquérito Nacional Sobre Segurança Alimentar no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil: cerca de 33 milhões de pessoas estão passando fome no país (insegurança alimentar grave), e mais da metade da população sofre de insegurança alimentar em algum grau (leve, moderado ou grave). Por outro lado, o programa Auxílio Brasil, iniciativa governamental de transferência de renda, deixou de fora cerca de 2 milhões de pessoas que se encontram em pobreza extrema. 

Em relação aos dados sobre contaminação pela covid-19, devemos avaliar se há a chamada “normalização” do cenário ou, se ao menos, existe uma perspectiva de que a diminuição de casos possui uma curva sólida e estável a ponto de indicar o fim da pandemia. Afinal, a decisão proferida em março de 2022 sinalizava uma expectativa de melhora, fruto da tendência estável de diminuição de casos.

Naquela semana, como já mencionado, a média móvel do país era de 195 mortes e 8.330 novos casos. Embora o cenário à época não fosse de normalização, havia uma curva de queda, o que levou o ministro a fazer um alerta quanto aos limites da jurisdição da Corte.

Analisando atualmente o cenário da pandemia, contudo, verifica-se que a perspectiva não se confirmou.

Após um longo período de melhora, os índices voltaram a subir. Segundo dados do consórcio de veículos de imprensa a partir de dados das secretarias estaduais de saúde, os dados em 10 de junho eram os seguintes, houve o registro de 158 mortes em 24 horas, com uma variação de novos casos de 76% em 14 dias. Registraram-se 55.915 casos em 24 horas. Existe uma tendência de alta no número de casos e de óbitos.

Além de não ter havido a desejada normalização do cenário, a perspectiva de melhora não se confirmou. Como consequência, o raciocínio que levou às decisões anteriores deve ser mantido, prorrogando-se a suspensão dos despejos por mais um período.

Não bastasse a persistência do cenário que conduz à necessidade de suspensão de medidas que impliquem remoções forçadas, é necessário garantir parâmetros para que, em caso da desejada melhora no cenário da pandemia e em relação aos casos não abrangidos pela decisão (ocupações posteriores a março de 2020), o Poder Judiciário possa oferecer um adequado tratamento constitucional dos conflitos possessórios coletivos. 

O relatório final de pesquisa “Conflitos fundiários coletivos urbanos e rurais: uma visão das ações possessórias de acordo com o impacto do Novo Código de Processo Civil”, elaborado pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e pelo Instituto Pólis, em atendimento a edital do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), trouxe contribuições importantes para guiar essa análise. O estudo compreendeu a análise de decisões proferidas pelos seguintes tribunais: TJ/SP; TJ/PR; TJ/DFT; TJ/RS; TJ/BA; TJPE; TRF1; TRF3; TRF4; TRF5; STJ; STF.

O relatório destaca que as ações possessórias coletivas de bens imóveis devem ser analisadas a partir de um duplo registro: (i) discussões sobre posse e propriedade e (ii) o conflito social de fundo que dá origem a esse tipo de ação. Foram definidas seis tipologias sobre os conflitos de fundo: (i) moradia; (ii) conflito agrário; (iii) quilombola; (iv) indígena; (v) greve e (vi) protesto. A tipologia de moradia foi predominante em todos os TJs, seguida pelos conflitos agrários. Já nos TRFs, embora a moradia continue majoritária, houve grande representatividade de conflitos agrários no TRF1 e o aumento nos casos de comunidades indígenas e quilombolas.

Outro aspecto relevante diz respeito às partes: 21,43%, das ações coletivas têm partes indeterminadas. No polo passivo, 5,57% possuem partes organizadas, ou seja, há referência a movimentos, grupos e associações. A maior parte das coletivas (73%) é formada, no entanto, pela justaposição dos nomes de mais de três pessoas físicas.

Além disso, constatou-se a baixa mobilização de institutos do Código de Processo Civil, como as audiências de justificação e inspeção judicial. Ao final, o relatório apresenta propostas importantes, que merecem a devida consideração, tais como a criação de um observatório nacional de conflitos fundiários e possessórios e a fixação de critérios para a admissão da citação indeterminada e genérica da coletividade no polo passivo da ação. 

Na contramão do relatório, o CNJ extinguiu em 2021 o fórum de assuntos fundiários, que havia sido criado pela Resolução nº 110/2010. De caráter nacional e permanente, o fórum tinha por objetivo monitorar os assuntos pertinentes aos conflitos oriundos de questões fundiárias, agrárias ou urbanas. A recriação dessa estrutura poderia contribuir para reduzir a judicialização e aumentar a participação social na solução dos conflitos em um momento marcado pelo acirramento dos conflitos no campo e na cidade, mesmo em contexto de pandemia. 

Por fim, cumpre trazer as contribuições do Projeto de Lei nº 1501/2022, de autoria da Deputada Natalia Bonavides (PT/RN), que tramita na Câmara dos Deputados. O PL estabelece procedimentos de análise, decretação e efetivação de medidas judiciais, extrajudiciais ou administrativas que acarretem desocupação ou remoção forçada coletiva em imóvel privado ou público, urbano ou rural, a serem observados após 30 de junho de 2022, quando cessarem os efeitos da Lei nº 14.216, de 7 de outubro de 2021, e da decisão do Supremo Tribunal Federal na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 828.

A Lei nº 14.216/2021 já continha uma previsão importante, ainda vigente, sobre eventual fim da suspensão: a audiência de mediação entre as partes, com a participação do Ministério Público e da Defensoria Pública, e a inspeção judicial na área do litígio. A previsão legal menciona não apenas a audiência de mediação, em diálogo com o art. 565 do Código de Processo Civil, com caráter obrigatório, mas também a necessidade de realização de inspeção judicial na área.

O PL 1501/2022, por sua vez, aprofunda a solução legal e estabelece uma etapa prévia na análise de pleitos de remoção forçada, ao estipular uma nova análise de atos ou decisões  para serem avaliados aspectos como o exercício da posse efetiva do bem e a existência de título válido por quem demanda ou determina a desocupação, o cumprimento da função social do imóvel e a própria comprovação da propriedade por quem alega ser dono. Resgata, também, a necessidade de análise da possibilidade de desapropriação judicial em favor dos ocupantes, na forma do art. 1228, § 4º, do Código Civil.

Quanto à remoção propriamente dita, o PL enfatiza que certas medidas preparatórias são inafastáveis, como a intimação pessoal dos ocupantes que permanecem no imóvel, a elaboração de laudo de serviço social e de saúde sobre os impactos da pandemia, além da própria audiência de mediação e da inspeção judicial.

As medidas contidas no projeto de lei dialogam com as propostas apresentadas pelo relatório do Conselho Nacional de Justiça sobre o tema, impondo-se a construção de uma interpretação e de uma atuação jurisdicional que leve em conta não apenas a ideia de “reintegração digna”, mas também assegure a efetivação de direitos fundamentais para que as decisões proferidas nessa matéria sejam fundamentadas e contemplem uma efetiva participação das partes, com a observância do contraditório, e de instituições destinadas a defender os interesses de grupos vulneráveis, como a Defensoria Pública e o Ministério Público.

A manutenção da suspensão dos despejos e a construção de diretrizes mais atentas ao direito à moradia e ao direito à terra atendem ao texto constitucional e às diretrizes internacionais da matéria, além de seguirem as orientações da Resolução nº 10/2017, do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), e da Recomendação nº 90/2021, do CNJ. A ADPF 828 pode ser o caminho para materializar esses direitos e finalmente garantir um tratamento mais justo ao tema, desde que a subordinação à propriedade privada e a violação do contraditório não sejam os pressupostos do raciocínio de ponderação do tribunal.

**Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Mariana Pitasse