Rio de Janeiro

Alvo certo

Análise | As armadilhas do uso de reconhecimento facial pelas polícias do RJ

Instalação de câmeras de vigilância será feita no Jacarezinho, palco da chacina mais letal que já se teve notícia no Rio

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
A sofisticação da tecnologia pode se transformar em requinte de crueldade com alvo certo
A sofisticação da tecnologia pode se transformar em requinte de crueldade com alvo certo - Justin Sullivan/Getty Images North America/AFP

Em 2019, em pleno carnaval, a Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio de Janeiro, sob comando do governador Wilson Witzel (PSC), implementou projeto-piloto para videomonitoramento por reconhecimento facial. As câmeras, instaladas inicialmente no bairro de Copacabana, logo chegaram aos entornos do estádio do Maracanã e do aeroporto Santos Dumont, na região central da cidade.

Aquele que mandava “mirar na cabecinha”, se foi. E se era possível piorar os riscos e ameaças à população fluminense, especialmente pretos e pobres favelados, o seu substituto conseguiu a proeza. Cláudio Castro (PL), que não se sabe em quantas cabeças autoriza que suas polícias mirem para acertar, infla o peito para anunciar a instalação de câmeras de vigilância exatamente na combalida comunidade do Jacarezinho, palco da chacina mais letal de que se tem notícia em território fluminense, que resultou em lastimáveis 28 mortes.

É sobre vulnerabilidades de políticas de segurança pública que precisamos falar.

Como bem define o projeto Panóptico, desenvolvido pelo Centro de Estudo de Segurança e Cidadania para acompanhar e analisar o uso do reconhecimento facial pelas polícias fluminenses, tratam-se de “olhos seletivos”. São olhos também cruéis e perversos, eu acrescento os adjetivos. Segundo dados do próprio CESeC cerca de 90% das pessoas presas com o uso dessa tecnologia eram negras.

Em apenas um ano, desde que Cláudio Castro assumiu o lugar do deposto Wilson Witzel, foram registradas 182 mortes em 40 chacinas. Doze meses após a tragédia no Jacarezinho, a comunidade da Vila Cruzeiro, na Zona Norte da capital, teve de enterrar 23 vítimas. Responsável pelos massacres que nos afetam a todos, o governador, mirando a eleição e a permanência no cargo, lançou o projeto Cidade Integrada, a partir do qual pretende instituir as tais câmeras de vigilância no Jacarezinho.

Segundo anunciado, serão 22 duas câmeras, das quais quatro terão a função de reconhecimento facial. Sob o pretexto de dar segurança - e com isso obter votos -, estima gastar R$ 493.288,20 apenas para o videomonitoramento. E o que é possível fazer com tanto dinheiro é assunto que também precisamos discutir em quaisquer ocasiões.

O tema da proteção de dados e privacidade é relativamente novo no Brasil.

Passou a ser mais discutido a partir dos debates sobre a Lei 13.709, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD),  de 14 de agosto de 2018, que teve repercussões, sobretudo, na esfera empresarial. O grande referencial para o estudo desse tema é o Regulamento EU 2016/679, do Parlamento Europeu e do Conselho, que entrou em vigência plena em maio daquele mesmo ano. Conhecida como Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD, em português; ou GDPR, em inglês), essa norma resulta de um acúmulo de muitas décadas de produção acadêmica, processos judiciais e muitas outras experiências nos países da União Europeia.

Por conta desse longo caminho percorrido, o RGPD traz um longo texto, com 99 artigos bem detalhados, no qual se encontram uma grande quantidade de ideias bem amadurecidas e precisas. Antes dos artigos do regulamento, há um elenco de 173 considerações que introduzem o documento e fornecem não só uma boa chave de leitura do que vem em seguida, mas também a consolidação de compreensões que podem servir para o estudo do tema em todo o mundo.

Se as interfaces de reconhecimento facial promovem ganhos e euforia no setor privado, na esfera pública, por sua vez, a sofisticação da tecnologia pode se transformar em requinte de crueldade com alvo certo, assim como avança a insegurança jurídica. Estão em jogo a inviolabilidade da moral, da não garantia do direito de ir e vir, a ameaça de que o controle social massivo e opressivo trará uma ideia de vigilância permanente e constante. 

Não à toa, 50 parlamentares, em 15 estados, nas esferas  municipal e estadual, estão apresentando, a partir de hoje, projetos de lei para banir o reconhecimento facial em espaços públicos. É urgente que façamos barulho sobre o tema, é crucial que a prática seja banida em todo o país. 

*Dani Monteiro e deputada estadual (Psol/RJ) e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Alerj.

**Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Mariana Pitasse