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O colapso do transporte público é o colapso do direito à cidade

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A garantia da frequência é tão necessária quanto o valor da tarifa para podermos dizer que o transporte é efetivamente público - Foto: Karoline Barreto CMBH
Um sistema de ônibus só cumpre sua função se as pessoas puderem contar com sua disponibilidade

Por Letícia Birchal Domingues

Quem acompanha os noticiários sobre o transporte público de Belo Horizonte tem visto uma série de negociações entre empresas de ônibus, prefeitura e vereadores para o subsídio tarifário. Acompanhamos o tema de perto e já trouxemos para cá, em outras colunas, debates sobre o que está em jogo nos já longos meses de negociações.

Um novo projeto de lei (PL) está em tramitação – e é bem possível que esse PL seja aprovado. Ele dará recursos para as empresas de ônibus por um ano, de forma a não aumentar a passagem e garantir o retorno de 30% das viagens que foram reduzidas de forma abusiva e unilateral.

O sistema de ônibus de BH precisa urgentemente de um resgate e esse PL do subsídio consegue dar alguma sustentação a um sistema que está ruindo: afinal, mais um aumento tarifário seria insustentável, tanto para os passageiros de ônibus quanto para as empresas. Contudo, ele é insuficiente para resgatar o essencial, que é o direito à cidade.

Não à toa, o transporte público é um direito social garantido pela Constituição: ele é um direito que garante outros direitos. Saúde, educação, trabalho, lazer e cultura precisam ser fisicamente acessados nas cidades. Ou seja: para que uma pessoa possa ter um atendimento de saúde ou ir ao parque no fim de semana, é necessário que a cidade ofereça meios para tanto. Isso pode se dar de forma privada ou pública.

Em sua dimensão privada, a pessoa pode pegar seu carro ou moto, sair de sua garagem e acessar os recursos disponíveis na cidade. Em sua dimensão pública, os ônibus e metrôs passariam em um quadro de horários razoável, com qualidade e com abrangência territorial ampla para garantir que as pessoas possam chegar com dignidade nos lugares necessários.

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Contudo, o que temos visto é uma deterioração cada vez maior da própria noção de “público” do transporte público. O “público” requer que o transporte seja disponível universalmente para a população – e o valor da tarifa e a frequência do transporte público compõem essa dimensão.

Quanto à tarifa, o histórico da cidade e o próprio modelo de contratação das empresas de ônibus levou a aumentos tarifários abusivos desde o início da concessão, em 2008. A fórmula é conhecida: quanto mais aumenta a passagem, menos passageiros conseguem usar o ônibus, fazendo com que seja necessário reduzir a qualidade do serviço e aumentar novamente a passagem para que o lucro dos empresários seja garantido. Isso exclui a população mais pobre do ônibus, o que significa excluí-la do usufruto do direito à cidade.

A garantia da frequência, assim como outros elementos de qualidade da operação do serviço de ônibus, é tão necessária quanto o valor da tarifa para podermos dizer que o transporte é efetivamente público. Um sistema de ônibus só consegue cumprir sua função de garantidor de direitos se as pessoas puderem contar com sua disponibilidade a qualquer hora do dia, nos mais diversos territórios da cidade. E o colapso do transporte público em Belo Horizonte mexe exatamente na oferta do serviço.

As empresas de ônibus têm reduzido drasticamente o número de viagens e da frota disponível para operação na cidade. No dia 29 de abril deste ano, as empresas de ônibus de Belo Horizonte anunciaram que diminuiriam ainda mais a oferta, de forma a passar apenas os ônibus que sejam “suficientes para cobrir seus custos”.

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Essa lógica é absurda: é necessário que existam linhas e horários deficitários para que haja a disponibilidade que sua dimensão pública requer. No final, as próprias empresas impõem à população a busca de soluções privadas para a falta de prestação do serviço público.

A volta da oferta de ônibus prevista no PL do subsídio tarifário é muito pequena: apenas 30% em relação à operação já reduzida de março de 2022. E mais: o projeto de lei corrobora com a lógica privatista que as empresas de ônibus estão tentando impor para a cidade ao cortar horários e trajetos que dão pouco retorno econômico.

É preciso que o sistema de ônibus de Belo Horizonte retome sua condição de “público”. É necessário ir além do repasse financeiro para as empresas e que elas cumpram seu dever e ofereçam mais do que linhas e horários limitados para a população. Uma nova contratação é necessária. E construir um novo sistema de transporte público é urgente e possível.

Letícia Birchal Domingues é integrante do movimento Tarifa Zero BH e doutoranda em Ciência Política pela UFMG.

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

Edição: Wallace Oliveira