Rio Grande do Sul

Quilombos Urbanos

“O que os meus ancestrais passaram, a gente ainda passa nos dias de hoje de modo diferente”

Memória viva da história de seus antepassados, Sandro Lemos se dedica à luta pela demarcação do território onde nasceu

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Quilombo da Família Lemos, localizado na zona Sul de Porto Alegre, abriga atualmente 30 pessoas - Foto: Clara Aguiar

“É tempo de formar novos quilombos, em qualquer lugar que estejamos, e que venham os dias futuros. A mística quilombola persiste afirmando: ‘a liberdade é uma luta constante’.” Conceição Evaristo.

É entre os terrenos do Asilo Padre Cacique e da Fundação de Atendimento Socioeducativo do Rio Grande do Sul (Fase) que está situada a sétima comunidade autorreconhecida quilombola de Porto Alegre: o Quilombo da Família Lemos. Com 60 anos de existência, sua história traz marcas das tentativas questionáveis de desterritorialização por parte de um de seus vizinhos. Desde 2009, o quilombo encontra-se ameaçado por ação de reintegração de posse movida pela Sociedade Humanitária Padre Cacique, que alega ser dona da propriedade. 

Como réus no processo, aparecem a matriarca, Délzia Gonçalves Lemos, e o patriarca, Jorge Alberto Rocha Lemos, ambos já falecidos, que trabalharam no Asilo por 35 e 44 anos, respectivamente. Na época, o casal se instalou no território devido à proximidade do local de trabalho. Ali, ergueram uma modesta casa de madeira azul, conceberam seis filhos e constituíram a família Lemos. De acordo com Sandro Lemos, sexto filho e atual representante da comunidade, durante os anos de vida de seus pais, o terreno nunca foi exigido pela instituição. 


Primeira casa a abrigar a família no território / Foto: Clara Aguiar

“Eles nunca questionaram a estada da minha família, só após o falecimento dos meus pais que eles entraram com um pedido de reintegração de posse, dizendo que é deles. Esperaram 50 anos! Isso é um fato que chama atenção. Quando meus pais vieram pra cá, se realmente fosse deles [do Asilo Padre Cacique], eles diriam: ‘Ó, seu Jorge, aqui é do Asilo e não dá pra vocês ficarem’. Seria o mais prudente, é o que todo mundo faria e faz até hoje se o seu terreno é invadido”, indaga. Embora certificada pela Fundação Cultural Palmares como remanescente de quilombo, a família vivenciou em 2018 um episódio ilegal e violento envolvendo a disputa pela área. 

Era manhã do dia 7 de dezembro de 2018, quando o Batalhão de Choque da Brigada Militar - acompanhado de um caminhão de mudança e um trator - acordou os integrantes da família Lemos, em sua maioria mulheres e crianças, na tentativa de despejá-los. As incessantes batidas no portão de ferro que carrega o nome da comunidade reverberaram no território, mas a comunidade não se intimidou. Unida, a família armou uma barricada, resistiu ao cerco policial e se negou a ir embora. No mesmo dia, a ordem de desocupação foi suspensa por não respeitar a presença da Defensoria da União e não incluir um plano de ação e de acolhimento para as pessoas do local. 


A casa azul continua sendo morada para parte da família após 60 anos / Foto: Clara Aguiar

Segundo a 17ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre, qualquer ação movida contra ou pelo Quilombo da Família Lemos deve tramitar em âmbito federal, junto aos órgãos e às instâncias responsáveis pelas questões quilombolas - fator que garante os direitos constitucionais assegurados pela certidão de autodefinição da Fundação Cultural Palmares. “A gente se autodeclarou em 2018, um pouco antes do que ocorreu em dezembro. De repente, se a gente tivesse feito antes, as coisas poderiam ter sido diferentes. ‘Ah! Mas porque vocês nunca falaram?’ Porque a gente não precisa estar com uma bandeira dizendo que é quilombola, a gente quer o respeito como cidadão. Se é uma maneira de a gente buscar o que é nosso, a gente vai atrás”, esclarece Sandro. 

Em meio ao processo de reintegração de posse, a Família Lemos aguarda o prosseguimento da demarcação do território. Após a emissão da certidão de autorreconhecimento, Sandro se reuniu com representantes do Ministério Público Federal para cobrar o início da identificação. “Eles disseram que o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] tem que fazer o laudo antropológico. Desde então, a gente está tentando fazer com que isso se concretize e que o Incra cumpra a determinação judicial do MP”, explica.

Segundo estudo publicado pelo projeto Achados e Perdidos, iniciativa da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e da Transparência Brasil, apenas três territórios quilombolas foram titulados pelo Incra durante todo o governo Bolsonaro. Nesse cenário, a única certeza é a de que, sem demarcação, prevalece a disputa pela terra.


Sandro Lemos, hoje com 46 anos, nasceu e cresceu no quilombo / Foto: Clara Aguiar

Família Lemos: dos ancestrais aos dias atuais

Sandro, de 46 anos, destaca-se por ser a atual liderança comunitária do Quilombo da Família Lemos, assim como também é a memória viva da história de seus antepassados. Nascido e crescido no território onde se desenvolveu o quilombo, no bairro Santa Tereza, ele conta que seus pais foram um dos primeiros a chegar na região: “Não existia a Fase, não existia o [Estádio] Beira-Rio… não tinha nada, só tinha o Asilo naquela época”.

Com o esforço de seu trabalho no Asilo, o casal Délzia e Jorge construíram em 1964 a casa que abrigou os primeiros parentes da família. Uma peça simples com dois quartos, um para os seis filhos e a avó e outro para o casal. Mas a ancestralidade dos Lemos antecede o espaço geográfico. Sandro narra que suas origens estão entrelaçadas ao Quilombo Maçambique, localizado na fronteira entre Canguçu e Encruzilhada do Sul, onde sua avó materna, Dona Anna Júlia Ribeiro Gonçalves, viveu na juventude. “As nossas raízes quilombolas vem de lá. A minha avó veio para Porto Alegre após perder o meu avô, ela veio para trabalhar em casa de família e trouxe a minha mãe”, conta. 


Vó Julica na casa azul / Foto: Arquivo Pessoal

A Vó Julica, como era conhecida D. Anna Júlia, possuía um profundo conhecimento sobre as potencialidades das ervas e preservou seus saberes no Quilombo da Família Lemos.  No quintal, Vó Julica plantou abacateiro, aroeira, bergamoteira, goiabeira, limoeiro, entre outras variedades. Ao cultivar um jardim alimentício e medicinal, proveu cura e benzeduras à família enquanto estava viva. “Minha avó era benzedeira e isso vem se passando também pela parte religiosa”, comenta Sandro. Praticante de religiões de matriz africana e filho de Xangô com Oxum, ele diz encontrar força nos Orixás para seguir lutando. 

Para Cristiele Maria Lemos Sanches, 39, prima de Sandro, a relação com a natureza é inerente ao ser quilombola. “A gente gosta de plantar e de ensinar as crianças a mexer na terra. É algo diferente do que a gente vê fora daqui, essas coisas estão se perdendo um pouco, as crianças não fazem mais isso. Daí a gente vai fazer e põe eles pra fazer também.” Cristiele desabafa que, devido às pressões do processo de reintegração de posse, essa conexão com o meio tem sido prejudicada. 


Cristiele Maria Lemos Sanches, 39, vive no quilombo desde o seu nascimento / Foto: Clara Aguiar

Há quatro anos, quando houve a tentativa de despejo, a água e a luz da comunidade foram cortadas. Com a falta dos recursos, a horta até então cultivada pela família acabou morrendo. “A luz a gente conseguiu recuperar, mas nós não temos ainda uma água que venha do Dmae [Departamento Municipal de Água e Esgotos] e que a gente possa dizer que é nossa, estamos em negociações. Até o momento, a gente está colhendo água emprestada”, complementa Sandro. 

Outras ameaças

Além da reintegração de posse movida pela Sociedade Humanitária Padre Cacique e das negociações a respeito da ligação da água com o Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), o Quilombo da Família Lemos enfrenta outra ameaça: a intenção do Sport Club Internacional de construir duas torres ao lado do Beira-Rio. A proposta do clube prevê a construção de dois edifícios (um com até 130 metros de altura) em um terreno de 2,5 hectares. Apesar da Prefeitura de Porto Alegre ter autorizado o projeto, ele esbarra no Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental (PDDUA) da Capital, que não permite a construção de atividades residenciais e comerciais na localidade. 

A comissão do Inter segue avançando com o projeto, contudo, como aponta Sandro, sem ouvir a comunidade. “Foram feitas duas ou três audiências sem o quilombo. Na que eu consegui participar, falei e fui ignorado. Passaram por cima das nossas reivindicações. O certo seria fazer uma consulta prévia com os moradores do entorno, e isso não foi feito. A gente acha que foram passando por cima de várias etapas para o projeto poder tramitar e sair do papel. A gente está reivindicando isso”, relata.

Ele denuncia a violação do direito que comunidades tradicionais possuem de serem consultadas de forma livre e informada, antes de serem tomadas decisões que possam afetar o seu modo de vida. “Isso é preocupante, a gente sabe o que está acontecendo na cidade. É uma remodelação que parte do prefeito Melo. Essas torres podem impactar diretamente o quilombo.” Nesse caso, de acordo com Sandro, o projeto causaria impactos urbanísticos e ambientais negativos. Um exemplo seria o impedimento da livre circulação de ar na região, o que ocasionaria o aumento médio da temperatura local. 

Para o advogado da família Lemos, Onir Araújo, o projeto das torres do Beira-Rio afronta a própria Constituição Federal que albergou a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Não houve fornecimento de informações sobre estudos de impacto. E o quilombo está ali, há aproximadamente 150 metros de distância de onde supostamente ocorreria a obra”, comenta. 

A Frente Quilombola e a luta coletiva dos Lemos

Integrante da Frente Quilombola do RS, formada por diversos movimentos sociais que acompanham de perto a realidade das comunidades da região, Sandro destaca o trabalho feito pela entidade. Trabalho esse que ele define como “de formiguinha”, mas necessário. “Nesses últimos anos, a Frente Quilombola fez muito por muita gente, por muito território. E não só quilombolas, mas indígenas, população de rua… a Frente Quilombola é isso, é estar sempre articulando. Se alguém precisa de algum apoio financeiro, a gente corre e briga pelos nossos direitos”, diz.

Em relação às iniciativas idealizadas dentro do Quilombo da Família Lemos, Sandro destaca aquelas que compartilham a cultura e a identidade quilombola: piqueniques com escolas, rodas de conversa e capoeira. “Também temos o projeto da Quilomboteca que será um espaço para aulas no contraturno para jovens, mas não conseguimos terminar ainda.”

Sandro comenta que está retomando as atividades aos poucos. Por conta da pandemia de covid-19, os projetos não puderam ser plenamente colocados em prática. Em um esperado futuro próximo, ele vislumbra uma espécie de praça, com um quiosque ao ar livre para as crianças ficarem mais confortáveis.


Quilomboteca Délzia Gonçalves Lemos / Foto: Clara Aguiar

Como explica Sandro, a realidade quilombola se constitui coletivamente, princípio ensinado desde o início da vida. “A gente tem o nosso modo de viver, as crianças já nascem e se criam com a mentalidade do coletivo, de se ajudar, de lutar e de saber quem é.” Ele ainda ressalta: “A gente anda junto, não individualiza nada, nem aqui dentro e nem com outros quilombos. Também não segregamos, todos são bem-vindos, independente de sua raça, credo ou orientação sexual.”

O Brasil é um grande quilombo

Caracterizado como um quilombo urbano, o Lemos possui particularidades que o diferenciam dos rurais. Ainda assim, se iguala na essência, naquilo que define um quilombo: ancestralidade, luta, resistência e resiliência. “Toda a força que os meus ancestrais tiveram é o que me ampara, que faz com que eu continue. Porque o que eles passaram, a gente ainda passa nos dias de hoje de modo diferente”, elucida Sandro. 

Completando a frase, sua prima Cristiele Maria Lemos Sanches diz: “Ser quilombola é resgatar a nossa história. A gente lê e estuda bastante nossos antepassados, a gente leva isso muito em consideração na nossa vida e passa para as crianças”. Para Sandro, o Brasil todo é um grande quilombo. “Só que as pessoas, infelizmente, não tem um entendimento. Inclusive tem pessoas que possuem uma certa resistência em dizer que é quilombola, porque acha que quilombola ainda vive em uma maneira do passado”. 


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Edição: Marcelo Ferreira