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No Brasil não se dá à luz: só se apaga

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A manobra de Kristeller, cuja prática deve ser abolida por recomendação da OMS, foi defendida por Raphael Câmara em evento de lançamento da nova Cartilha da Gestante - Foto: Raphael Câmara
Relatório da ONU aponta que violência obstétrica é tão naturalizada que nem é considerada violência

Entre os dias 16 e 22 de maio de 2022 aconteceu a Semana Mundial do Parto Respeitado, uma iniciativa que nasceu na França em 2004 e foi disseminada por vários países. No Brasil, no entanto, nada a celebrar, em que pese o Programa Nacional de Humanização do Pré-natal e Nascimento, lançado há 22 anos e cuja discussão tenha evoluído em direção à Política Nacional de Humanização em 2003, e a criação e estruturação da Rede Cegonha em 2011, agora oficialmente desmantelada para chamar-se Rede de Atenção Materno-Infantil (Rami).

Em um governo onde presenciamos o genocídio de povos indígenas e cerca de um milhão de mortes por covid-19 quando já havia vacina disponível aos países; sem esquecer dos homicídios culposos, senão dolosos - considerada a incompetência de gestão nunca antes vista desde a fundação do Sistema Único de Saúde - por asfixia nas unidades de terapia intensiva do Amazonas, e menos ainda do assédio moral e tortura psicológica a que foi submetida uma menina de 10 anos de idade, na porta do hospital que aceitou realizar o procedimento de aborto legal; o que mais poderíamos esperar deste Ministério da Saúde no último e turbulento ano de orquestração do trágico?

A resposta é autoexplicativa pela nova Caderneta da Gestante, que terá 3 milhões de exemplares distribuídos até o final de 2022. Sem eufemismos, trata-se de dizer que, em nome da assistência hospitalar para a atenção ao parto e nascimento, no Brasil a condição de gestante - tal como sucede no cárcere - representa a autorização para a prática deliberada da tortura, garantindo assim o aprendizado de obsoletas técnicas em obstetrícia e o avanço da violência e do medo como método de controle dos corpos e das subjetividades.

Assumindo o viés materno-infantilista como diretriz desde o nome (quem sabe assim, finalmente, fique nítida a razão da crítica feminista a este paradigma), o documento expressa a retórica do estatuto do nascituro ao defender a episiotomia como uma prática possível de ser realizada para o bem do bebê. O corte é uma mutilação genital que tem servido, ao longo das últimas décadas, como argumento para o ensino de práticas que violam direitos fundamentais: não raro, estudantes de medicina realizam sua primeira sutura em vaginas cortadas desnecessariamente e sem evidências científicas que se sustentem.

Não é por acaso que as pesquisas recentes no campo da assistência obstétrica no Brasil apontam os hospitais universitários como os locais de parto com menor incidência das boas práticas preconizadas, e maiores práticas iatrogênicas. Ou seja, nossos corpos como meros campos de aprendizado. Assim como as cesarianas e anestesias negligenciadas, a episiotomia é também uma questão racial, e o bisturi tem um peso diferente sobre os corpos negros. A moderna obstetrícia brasileira segue a cartilha de James Marion Sims. 

Ao contrário de outros países da América Latina, como Argentina, Venezuela, México e Chile, que reconhecem a violência obstétrica sob distintos prismas - desde leis integrais, que versam ao direito a uma vida livre de todas formas de violência e discriminação, a leis específicas sobre direitos reprodutivos - o Brasil vai na contramão dos direitos humanos na região. O que expõe as fragilidades institucionais frente a uma categoria que não é apenas profissional, mas oligárquica.

Reconhecida pela Organização das Nações Unidas como um problema de violação de direitos humanos em dimensão global desde 2019, o relatório apresentado durante a 74ª sessão aponta a violência obstétrica como tão naturalizada que sequer é considerada violência. Mas devemos nos perguntar: por que, no mesmo ano, um projeto de lei que versa sobre o parto seguro proíbe o uso do termo foi apresentado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul?

Já não bastava ser o país com a maior mortalidade materna durante a pandemia de covid-19. No Brasil, a ditadura começa cedo, muito cedo: a cada 22 minutos, uma criança entre 10 e 14 anos é obrigada a gestar e parir em nosso território.

* Lara Werner, sanitarista

** Este é um texto de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira