Paraná

Exclusivo

Torturas e castigos coletivos escancaram violações em presídios do Paraná na pandemia

Reportagem teve acesso a cartas e relatos que apontam série de irregularidades no sistema penal do estado

Pato Branco (PR) |
Reportagem do Brasil de Fato Paraná teve acesso a documentos, cartas e depoimentos que apontam série de violações - Foto: CDH/Alep

A dona de casa Marcia*, de 45 anos, preparou uma farta sacola para aquela segunda-feira de outubro de 2021. Depois de a filha ter denunciado em uma vídeochamada que o alimento servido era azedo, lembrou-se do quanto ela gostava do pão quentinho servido aos fins de tarde e decidiu que sua filha não passaria fome.

Recolhida na Cadeia Pública de Dois Vizinhos (PR) há cerca de oito meses, sua filha Ana* aguardava o julgamento de recurso em segunda instância para tráfico de drogas. Às segundas, era quando recebia o calor da família na forma das sacolas, enquanto as visitas seguiam restringidas devido à pandemia da covid-19.

A daquele dia tinha um pouco de tudo: pães, leite, arroz, feijão, suco, bolacha, pipoca, azeite e frutas. Mas depois de pouco mais da uma hora que separa a cidade de Marcia à cadeia em que a filhava estava, foi surpreendida: fazia três dias que Ana fora transferida para a unidade de Palotina.

“Eu desmaiei”, lembra Marcia. “Me deu um pânico na minha cabeça. Onde que é esse lugar, meu Deus? Porque você sai levar as coisas pra comer, e encontrava ela toda segunda-feira, e agora não sabe mais nada.”

De Palotina, a filha foi para a Penitenciaria Estadual de Foz do Iguaçu, uma distância de pouco mais de 200 quilômetros entre uma unidade e outra, de onde a família não conseguiu mais contato e permanece até agora sem informações.

Pouco antes da transferência surpresa, a qual também só foi informada ao advogado da família após ter sido realizada, Ana não falou apenas sobre a má alimentação. Em vídeochamada com a família, contou sobre uma operação, deixando seu corpo transparecer a marca de alguma violência, visível naqueles olhos arroxeados. 


Detalhe de print de tela feito pela família durante videochamada mostra olhos roxos de Ana (parte do rosto foi borrada digitalmente, para evitar a identificação) / Reprodução

“Acho que jogaram spray de pimenta”, disse Márcia. “Ela falou que teve uma operação. Que entraram e chegaram atirando e batendo. Teve bala de borracha. Ela disse que parecia que estava numa guerra, que ela nunca tinha visto essas coisas”.

De acordo com a mãe, a filha contou que uma colega de cela chegou a ser atingida no pé com uma munição letal, precisando de atendimento médico. Depois disso, é que Ana foi transferida.

“Ela pediu ‘peloamor de Deus’ que tirassem ela de lá”, conta a mãe, sem imaginar que o pedido seria entendido como uma transferência às escuras. “Depois dessa confusão que teve lá dentro ela foi pra Palotina. Nem 15 dias depois ela foi pra Foz do Iguaçu e eu não sei mais nada da menina.”

Violência coletiva 

Operações realizadas pelo Setor de Operações Especiais (SOE) em unidades espalhadas por todo o estado aparecem em denúncias feitas pela Frente pelo Desencarceramento do Paraná e em relatórios elaborados pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Paraná (Alep).

Além dos documentos, pessoas que estiveram presas durante o período da pandemia e que aguardam o julgamento em liberdade, denunciaram as mesmas irregularidades.

A reportagem do Brasil de Fato Paraná teve acesso, com exclusividade, aos documentos e relatos que mostram uma verdadeira barbárie no sistema penal.


Documentos, cartas e depoimentos denunciam série de violações nas penitenciárias do Paraná / Foto: CDH/Alep e Assessoria Nupep

Bombas de efeito moral, spray de pimenta e arma de choque

Por oito meses preso na Unidade de Capitão Leônidas Marques, Pedro** narrou sessões de tortura a que teria sido submetido enquanto estava recolhido, entre 2020 e 2021.

Segundo ele, há um padrão nessas operações, começadas sempre na madrugada, por volta das 5h, quando todos estão dormindo, com a justificativa de busca por aparelhos celulares ou drogas.

“Somos tratados como lixo, como eles mesmos nos chamam,‘preso maldito’. Somos torturados, humilhados. Eles entram dentro da unidade já jogando bombas de efeito moral, spray de pimenta e [usando] arma de choque. Eles pegam um detento de cada vez, algemam com as mãos para trás, colocam de joelho, enquanto outro [policial] pega você pelo pescoço e outro abre bem os seus olhos e joga spray de pimenta bem dentro dos olhos, e começam a sessão de porrada. Batem até você desmaiar. Depois te levam até o vaso sanitário, colocam sua cabeça dentro, até você acordar pra eles bater de novo”, relata Pedro.

Em uma dessas ações, Pedro disse que precisou ficar sentado por cerca de oito horas no chão, apenas de cueca, com a cabeça baixa e com um cão farejador próximo a ele. Ele se recorda que era frio e que se tremesse levava tiros de bala de borracha nas costas.

Hoje, aguardando o julgamento do processo em liberdade, ele se vê com sequelas da violência. Para ele, o isolamento causado pela pandemia, que impedia a visita presencial de familiares, deu mais força à própria polícia, que passou a agir com mais brutalidade.

“Tenho braço quebrado, costela quebrada, minha visão [prejudicada] por conta do spray de pimenta. E fora o psicológico, né. Por várias noites temos insônia. Acordamos no meio da noite achando que ainda estamos lá dentro”, conta, referindo-se no plural, pois diz que as mesma sensações são compartilhadas por outros colegas que estiveram com ele na unidade.


“Somos tratados como lixo, como eles mesmos nos chamam,‘preso maldito’", relata ex-detento / Foto: CDH/Alep e assessoria Nupep

Quinze dias após chegar à Penitenciária Estadual de Francisco Beltrão, em junho de 2021, foi Marcelo** quem sentiu o peso das ações do SOE. 
Passado o tratamento que recebeu no dia em que chegou, quando disse ter ficado das 10h até próximo das 17h sem receber alimentação, foi em uma madrugada que ele viveu o pânico que trata até hoje com comprimidos de cloridrato de fluoxetina.

Era por volta das 5h quando acordou com seus colegas de cela ouvindo o barulho da operação. Os companheiros lhe disseram para ficar quieto e obedecer. Quando a equipe chegou no local, disse ter recebido chutes na perna em que possui pinos, deixando ela completamente roxa.

Da mesma forma como relatou Pedro, Marcelo também foi colocado junto aos demais detentos no pátio. Aquele dia chovia e eles precisaram ficar sem roupa e com a cabeça entre as pernas. Em caso de movimento, também eram alvejados com balas de borracha.

Marcelo disse ter vivido o horror dentro do presídio, um lugar onde, diz, não há ressocialização, mas desejo de vingança após passar pelo sistema. “Você entra uma pessoa e você sai pior de lá, entende?”, sentencia a si mesmo.


Marcelo disse ter vivido o horror dentro do presídio / Foto: CDH/Alep e assessoria Nupep

Da Penitenciária Estadual de Piraquara 1 (PEP 1), localizada na Região Metropolitana de Curitiba (RMC), pelo menos duas cartas chegaram à Comissão de Direitos Humanos, na qual também é citado o procedimento violento da SOE.

O documento cita uma operação que teria ocorrido no dia 26 de março de 2021, quando agentes da SOE e da Rocam-PM “agrediram fisicamente 20 internos, deixando hematomas, roxos pelo corpo e lesões psicológicas.” A carta lista cinco nomes que estariam entre essas 20 pessoas agredidas, às quais as autoridades, a quem a carta foi remetida, deveriam procurar para identificar os danos do procedimento.

“Os educandos são humilhados na frente da Diretoria e chefe de segurança (...), pelo grupo SOE, GSI e pelos próprios diretores, que agem com agressividade e violência contra presos algemados e com marca passo nos pés”, aponta.

Assinada pela “massa carcerária”, a carta denuncia tentativas de homicídio dentro da unidade, com a inclusão de vidros, parafusos, plásticos e barbeadores dentro das marmitas. Assim como quando citando as operações da SOE, a carta lista outros cinco nomes de apenados que teriam passado pela situação.

A mesma denúncia é feita pela Frente pelo Desencarceramento do Paraná, que também teve acesso a relatos sobre o encontro de cacos de vidro dentro da marmita.


Em carta de quatro páginas escritas a mão, detentos denunciam arbitrariedades / Reprodução

Em março de 2020, devido à pandemia, todas as 113 unidades do Estado do Paraná, segundo o Sistema de Informações do Departamento Penitenciário Nacional (Sisdepen), passaram a adotar um protocolo para evitar os casos de covid-19 entre as unidades. A primeira coisa a ser limitada foram as visitas de familiares, que passaram a ocorrer apenas por meio de vídeochamadas, e as entregas das sacolas.

Ainda em 2020, uma carta, também assinada pela massa carcerária da PEP 1, apontou o que seria o início dessa série de castigos dentro da unidade, que teriam se estendido até 2021. O estopim seria o assassinato do policial penal Lourival de Souza, em 12 de agosto de 2020.

Lourival foi assassinado dentro de casa, no município de Piraquara, enquanto tomava banho. Seis pessoas foram indiciadas pelo crime. De acordo com o inquérito da Policia Civil, o mandato de assassinato partiu de dentro da unidade, por detentos aliados ao crime organizado e que estariam incomodados com ações táticas realizadas por policiais penais dentro do presídio. A família ainda teme falar sobre o assunto.

A partir desta data, a carta aponta que a alimentação foi reduzida, precisando ser complementada pelos Sedex enviados pelos familiares. Como muitas pessoas presas na PEP 1 são de outros municípios, o custo do Sedex é elevado e nem todas as famílias têm condições de enviar. Assim, muitas remessas eram compartilhadas na cela. Além disso, a qualidade do alimento é colocada em xeque.

“Muitas vezes, por conta do mau preparo, o cheiro chega a ser enjoativo, horrível, só vendo pra crer. Macarrão, polenta, sem tempero algum, muitas vezes prestes a azedar”, apontam. Em outro trecho, a massa carcerária cita que já recebeu “hambúrguer ‘cru’” e “calabresa, muitas vezes ‘esverdeada’”. Hoje, a comida é terceirizada.

“Estamos sendo testados ao extremo, tanto psicologicamente como fisicamente. A aparência dos presos é intrigante, sem contar que tanta pressão psicológica e física pode e deve ser considerada como tortura (...) Aonde encontrar forças para se regenerar, sendo que o próprio ‘Estado’ – representado pelos agentes penitenciários – nos mostram outros caminhos?"


Relatos denunciam que presos já receberam marmitas com cacos de vidro e alimentos estragados / Foto: CDH/Alep e assessoria Nupep

O que as autoridades dizem

A reportagem levou os casos para a Defensoria Pública, o Ministério Público e Departamento Penitenciário do Estado do Paraná (Depen).

A defensora pública Andreza Lima de Menezes, coordenadora do Núcleo da Política Criminal e da Execução Penal (Nupep), esclareceu que já foi solicitado que o Depen estabeleça protocolo de atuação do SOE, que deveria atuar apenas em situações claras de crise.

O Ministério Público do Paraná (MPPR) respondeu, por meio do Grupo de Atuação Especial de Segurança Pública, unidade especializada do órgão, que evitou falar sobre casos e denúncias específicas trazidos pela reportagem, alegando que cada caso é remetido para a localidade onde os fatos ocorreram.

Informou, porém, que foi formado o Comitê Gestor da Crise da Covid-19 no Sistema Prisional, coordenado pelo Poder Judiciário, através do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF/PR), para apurar violações. Quando encontradas irregularidades, disse que são adotadas as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis.

No entanto, nem defensoria e nem MP falaram sobre Ana e o porquê, até agora, ela permanece sem contato com a família logo após denunciar as arbitrariedades do sistema.

A reportagem ligou para o Depen, mas em todas as tentativas a chamada deu como ocupada. Também enviou e-mail para a assessoria e aguarda posicionamento oficial, deixando o espaço aberto para manifestação.

*O nome de Ana e o da mãe, Marcia, foram dados pela reportagem para resguardar os familiares que pediram anonimato. Para os órgãos competentes a reportagem solicitou informações sobre a jovem com nome verdadeiro.

**Os relatos de pessoas que estiveram presas também foram dados sob anonimato e os nomes aqui descritos são fictícios.

Leia a segunda parte da reportagem.

Edição: Lia Bianchini