AGRONEGÓCIO

Submundo bolsonarista barganha alimentação escolar

Deputado-major, defensor do voto impresso e da liberação das armas, ameaça merenda nas escolas

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Para ser eleito como senador ou governador, o Major precisa conquistar votos em Goiás, estado que é o quarto maior produtor de leite do país, de acordo com a Embrapa. . - Agência Brasil

Em maio deste ano, o Projeto de Lei nº 3.292/2020, que propõe alterações no Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), foi aprovado na Câmara dos Deputados, mesmo com os protestos da sociedade civil e de parlamentares de todos os espectros políticos – do Novo ao Psol.

O PL propõe mudanças significativas. A de mais evidência é a inclusão da obrigatoriedade de que 40% das compras de leite, realizadas com recursos transferidos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para o PNAE, sejam de leite fluido, adquirido em laticínios locais, devidamente registrados no Serviço de Inspeção Federal, Estadual ou Municipal, sendo dispensada a realização de licitação.

“Nós queremos privilegiar os pequenos produtores de leite”, disse o deputado Major Vitor Hugo (PSL/GO), autor do PL, em uma audiência pública realizada em abril. E completou: “de um lado, nós temos a intenção de prover para as nossas crianças um alimento mais saudável, como é o leite fluido, natural. De outro nós queremos, sim, ajudar esses produtores”. 

Parece inocente, mas tem caroço nesse angu.

O Major estreou na política em 2019, surfando na onda de Bolsonaro – e se mantém fiel escudeiro do presidente até hoje. Seja por ideologia, seja por recursos públicos em forma de dinheiro – o ex-líder do PSL na Câmara, delegado Waldir Soares, acusou o Major de ter recebido mais de R$300 milhões do “orçamento secreto” de Bolsonaro, em entrevista ao The Intercept Brasil

Apesar de novato, o Major é líder do partido na Câmara e alimenta o sonho de se eleger governador ou senador nas eleições de 2022. Já está em franca campanha. Porém, para alcançar a vitória, precisa conquistar votos em Goiás, estado que é o quarto maior produtor de leite do país, de acordo com a Empresa Brasileira de Pesquisa  Agropecuária (Embrapa). É em território goiano que fica a maior empresa de laticínios do país, a Piracanjuba, que desbancou a Nestlé no último ranking da Associação Brasileira de Produtores de Leite (Abraleite).

Em sua carreira política, não faltam projetos de lei controversos – para facilitar o acesso a armas, para combater um suposto “terrorismo” no país, para dar “poderes de guerra” ao presidente durante a pandemia, para impedir que estados e municípios implementem o passaporte vacinal  –, mas o único a ser aprovado foi o PL 3.292/2020, da merenda, fato que o Major fez questão de ressaltar: “Tenho grande orgulho em dizer que esse é meu primeiro projeto de lei aprovado no plenário”, disse na sessão de votação da proposta. 

A pergunta que fica é: o que levou o Major Vitor Hugo, sempre tão envolvido em pautas bolsonaristas, como o “liberou geral” das armas e o voto impresso, a pautar a alimentação escolar, que nunca protagonizou a plataforma do parlamentar? 

Não resta dúvida de que o governo Bolsonaro é um grande balcão de negócios, que barganha até vacina, com empresas e pessoas vindas diretamente do submundo da política e de empresas. 

Lembremos que o governo ignorou mais de cem e-mails oficiais da Pfizer, mas atendeu prontamente supostos atravessadores de vacinas, como o cabo Dominguetti, um policial que nunca havia trabalhado com isso e apareceu no Ministério da Saúde oferecendo 400 milhões de doses da vacina Astrazeneca. Na época, a farmacêutica negou trabalhar com atravessadores no Brasil.

O que o Major Vitor Hugo fez foi colocar a merenda na mesa, como moeda de troca. Mais uma, no arsenal montado para o ano que vem.

A reportagem do Joio acompanhou por meses grupos de empresários da cadeia leiteira, bolsonaristas, no Facebook e Telegram, e encontrou os verdadeiros proponentes do PL do Major e de outras iniciativas do parlamentar em Brasília, como a Frente Parlamentar em Apoio ao Produtor de Leite (FPPL), lançada em outubro último.

República do toma lá, dá cá

O que o Major não disse na sessão de votação do PL é que a proposta foi construída junto com grupos ligados ao agro, que estão no submundo da base bolsonarista – e também representam um público estratégico para a campanha eleitoral de 2022, porque ainda não abandonaram o barco. 

No entanto, nem todos tiveram o mesmo pudor do Major. Em uma publicação no Facebook, o produtor e líder do grupo Construindo Leite Brasil, Joel Dalcin, parabenizou os deputados que defenderam o PL e postou uma lista dos que votaram contra a proposta. Ainda disse: “Lembrem dessa lista nas próximas eleições. Apenas o primeiro passo. Lembrando que este projeto de lei foi criado com a participação dos produtores de leite dos movimentos de base Construindo Leite Brasil, Inconfidência Leiteira, Aliança e Ação, União e Ação, Aproveite Goiás”. 

Enquanto o Major trabalha em Brasília, Dalcin trabalha na base. 

No Facebook, líder de grupo do submundo bolsonarista publica lista de parlamentares que votaram contra PL 3.292/2020 e pede que produtores de leite lembrem-se desses nomes nas eleições de 2022.

Ainda assim, é provável que você nunca tenha ouvido falar de nenhum desses grupos, que assumiram posição central nas tomadas de decisão. 

Não encontramos nenhum registro oficial deles. Nem um CNPJ e muito menos um estatuto ou ata de fundação. Também não há site oficial. Apenas grupos e páginas no Facebook. Todos criados de 2018 para cá. Uma publicação do Major Vitor Hugo diz que esses grupos “reúnem milhares de pecuaristas em grupos nas mídias sociais e aplicativos de mensagens”.  Notemos que, no plenário, o deputado os chama de “pequenos produtores”, mas em suas redes, os chama de “pecuaristas”.  

Para encontrar mais informações sobre esses movimentos e a relação deles com o Major, a reportagem precisou acompanhar por meses publicações em redes sociais e no canal do deputado no Telegram. 

Em comentários feitos por membros dos grupos no Facebook, é possível identificar que nem todos os participantes são, de fato, produtores de leite. Alguns são apenas apoiadores de Bolsonaro. Contudo, os grupos se apresentam como “representantes de produtores e empresários”.

O Aliança e Ação e o União e Ação reúnem produtores de Goiás, estado do Major, e são liderados pelo empresário Marco Sérgio Batista Xavier, de Orizona (GO), que também é presidente da Associação dos Produtores de Leite de Goiás (Aproleite), fundada em 2020. 

O Inconfidência Leiteira, que, pelo nome, já demonstra certo apreço por conspirações, reúne produtores de Minas Gerais, maior produtor de leite do país, e é liderado por Awilson Viana, de Candeias (MG). 

O Construindo Leite Brasil é de âmbito nacional e liderado por Joel Dalcin, de Doutor Maurício Cardoso (RS), e Rafael Hermann, de Boa Vista do Cadeado (RS). A reportagem tentou contactá-los, mas não obteve retorno. 

Joel é o que tem mais presença digital. Em um vídeo publicado no Youtube, ele conta que tem uma propriedade com aproximadamente 11 hectares, na qual produz leite há mais de uma década. Os animais são criados em confinamento, “um sistema em que o investimento é alto”, diz. Em outro vídeo, conta que a propriedade chegou a ter sete funcionários e 120 vacas, que eram ordenhadas três vezes ao dia e produziam cerca de quatro mil litros de leite.

Atualmente, em função da crise no setor – causada especialmente pelo aumento dos preços de combustíveis e insumos usados na alimentação dos animais, além da falta de uma política de garantia de preços mínimos que tire o produtor da posição de refém dos preços praticados por grandes laticínios –, o rebanho e o quadro de funcionários foi reduzido.

De acordo com as publicações analisadas pela reportagem, a relação entre Joel e as outras lideranças desses grupos com o deputado Major Vitor Hugo se dá da seguinte forma: em Brasília, o Major abre as portas para os interesses e encontros das lideranças com representantes de ministérios, e até Jair Bolsonaro. Nas bases, os grupos fazem campanha para o parlamentar. 

Já em Brasília, o deputado articulou o encontro de Joel, Rafael Hermann, Marco Sérgio Batista Xavier e Awilson Viana com técnicos dos ministérios da Agricultura e da Economia. A reunião consta da agenda oficial do ex-subsecretário de Competitividade e Melhorias Regulatórias, Adriano de Carvalho Paranaíba. De acordo com publicação do site Agro em Dia, também participaram da reunião o subsecretário de Advocacia da Concorrência, Andrey Vilas Boas de Freitas, e um assessor da secretaria executiva do Ministério da Agricultura, Luis Rangel. 

Ainda de acordo com o site, empresários pediram ao governo mais previsibilidade nos preços praticados no mercado, além de isenções fiscais, incentivo à exportação e ações que estimulem o consumo de leite no país.

Nas redes, representantes de todos os grupos citados fizeram campanha pela criação da Frente Parlamentar em Apoio ao Produtor de Leite (FPPL), iniciativa do Major, em Brasília.  

No lançamento da Frente, em outubro, participaram o presidente da Câmara, Arthur Lira; a ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Tereza Cristina; o empresário Marco Sérgio, dos grupos Aliança e Ação e União e Ação, e da Aproleite Goiás, além dos principais coordenadores da Frente: o presidente, Major Vitor Hugo; a vice, Aline Sleutjes (PSL/PR), que também preside a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados; o também vice, deputado Evair de Melo (PV/ES), e o secretário, Ubiratan Sanderson (PSL/DF). 

O Major, na ocasião, pediu que Marco Sérgio se levantasse, além de solicitar à plateia uma salva de palmas. Em seguida, disse: “O Marco é, também, um dos grandes responsáveis. Foi quem trouxe, no passado, essa demanda pra mim. Eu não preciso fazer qualquer rodeio”. Depois, apresentou o PL 3.292/2020 como outro resultado da parceria, rasgou elogios à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA) e anunciou Marco como secretário executivo da FPPL, “aquele que vai fazer o planejamento estratégico da Frente”, disse.

Dentre os objetivos da Frente, estão a proposição e apoio de projetos de lei que promovam a cadeia leiteira e ainda a aproximação desses grupos de produtores com o Congresso. É, literalmente, o grupo do “zap” assumindo o papel de legislador – por meio do Major Vitor Hugo – para fazer lobby de propostas que visam ao benefício do mercado e não das políticas públicas de alimentação escolar. 

“Há uma possibilidade de se abrir a porteira”

Quando o PL do Major foi apresentado à Câmara, ainda em 2020, a alimentação escolar passava por maus bocados. Depois que as escolas foram fechadas, em função da pandemia, estados e municípios demoraram a redirecionar os recursos da merenda às cestas entregues às famílias dos alunos – quando o fizeram. Faltou comida na mesa do estudante e sobrou prejuízo para os agricultores familiares que fornecem alimentos ao PNAE. O Joio e o Trigo já abordou essa questão no episódio “O vazio no prato das escolas”, do podcast Prato Cheio, e no especial “Merenda não é lucro”.

O período de tramitação do projeto foi curto. Em menos de um ano, estava aprovado. Em junho de 2020, foi apresentado. Em março de 2021, passou a tramitar em regime de urgência – ainda que as urgências da alimentação escolar, naquele momento, fossem outras. Em maio, foi aprovado, com 243 votos favoráveis, 177 votos contrários e três abstenções. Agora, o PL aguarda apreciação do Senado. 

O deputado Thiago Mitraud (Novo/MG) resumiu o cenário da sessão de votação do PL: “Não se trata de uma visão da esquerda, da direita, de centro ou o que for. É basicamente de todo e qualquer parlamentar, de todo e qualquer partido, que, minimamente, entende o funcionamento do PNAE e os incentivos perversos que estão criados aqui com esse projeto de lei”.

O texto ameaça pontos sensíveis do PNAE, frutos de anos de construção da legislação que orienta o programa. Hoje, 30% dos recursos repassados pelo FNDE devem ser destinados à compra direta da agricultura familiar, sendo que as comunidades indígenas e quilombolas têm prioridade. O PL retira essa prioridade. “Tentando, inclusive, contrapor essas comunidades ao pequeno produtor, o que é inadmissível. A gente sabe bem a quem serve esse PL”, destacou a deputada Talíria Petrone (Psol/RJ).

Hoje, o cardápio da merenda é elaborado por nutricionistas, respeitando a cultura alimentar e a vocação produtiva da região. O PL sugere a “possibilidade de se introduzirem, paulatina e respeitosamente, experiências gustativas que aumentem a qualidade do cardápio”, uma forma mais branda de dizer o que o Major e outros defensores do projeto afirmaram em outras ocasiões. “Não é porque você tem uma cultura alimentar que você não vai gradualmente trabalhar com a coisa que é melhor”, enfatizou o deputado Afonso Hamm (PP/RS), em uma audiência pública, na qual defendeu o leite e a carne suína como “alimentos nutricionalmente superiores”. Vale lembrar que Afonso Hamm não é nutricionista, mas engenheiro agrônomo.

“A gente considera que incluir alimentos A ou B, sem respeitar os hábitos alimentares locais, infringe a legislação”, argumentou a representante da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Maria Elza da Silva, na audiência.

A legislação atual garante autonomia para as nutricionistas elaborarem os cardápios e é com base neles que os gestores fazem as compras. Já o PL propõe a criação de uma cota para o leite.

“Há uma possibilidade de se abrir a porteira”, ressaltou Talíria Petrone, na votação. Isso porque, há outros projetos de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, que querem tornar obrigatória a inclusão de um ou outro alimento na merenda escolar – da carne suína, proposta de Afonso Hamm, até mel e suplemento de vitamina C. 

“Isso não é matéria de lei. Se um deputado quer fazer lobby pra produtor de leite, vá fazer de outra forma”, criticou o deputado Daniel Coelho (Cidadania/PE), na sessão. 

O discurso do Major e de outros defensores do PL no Congresso seguiu duas linhas: uma muito típica do bolsonarismo, que é desqualificar o adversário, sugerindo que os parlamentares contrários à proposta ou não tinham lido o projeto ou estavam votando por “birra ideológica”, como disse Carlos Jordy (PSL/RJ). Outra, que soa muito nova, é a aparente defesa de pequenos produtores e da agricultura familiar. 

“Nova”, porque o bolsonarismo anda de mãos dadas com a indústria do agronegócio. “Aparente”, porque já vimos que esses “pequenos produtores” são, na verdade, pecuaristas, que não tem nenhuma relação com a agricultura familiar.

Bolsonaro e apoiadores, dentre eles o deputado Major Vitor Hugo (à esquerda), em visita a Sorriso (MT), conhecida como a capital nacional do agronegócio. Foto: Alan Santos/Presidência da República.

Tanto é que os movimentos que representam a agricultura familiar, como a Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares (Contag) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), se posicionaram contra o PL. Eles assinaram, junto com entidades representativas de nutricionistas, povos tradicionais e movimentos que defendem o Direito Humano à Alimentação Adequada e Saudável, uma nota técnica do Observatório da Alimentação Escolar (ÓAÊ), na qual o PL é caracterizado como uma ameaça. 

“Apesar de intencionar uma alimentação com menor nível de processamento – o que as organizações e movimentos que assinam a nota também defendem, de forma alinhada ao Guia Alimentar para a População Brasileira –, ao criar cota específica para a aquisição de um determinado tipo de alimento, a presente proposta abre precedente para uma série de possíveis reservas de mercado, que respondem aos interesses dos mais diversos tipos de lobby”, diz a nota. 

O texto afirma que “se a intenção é ajudar os agricultores familiares produtores de leite fluido, o que concordamos, é possível acionar mecanismos existentes”, como a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), ambos alvos de sucessivos cortes de verba nos últimos anos. 

Até porque, de acordo com dados do Sistema de Gestão de Prestação de Contas (SIGPC), do FNDE, compilados pelo ÓAÊ, a maior parte dos fornecedores de leite da merenda não vem da agricultura familiar, que jamais será a prioridade do bolsonarismo.