Minas Gerais

NEGACIONISMO

Artigo | Governo Bolsonaro despreza legado de Nightingale na formulação de políticas públicas

Segundo o Ipea, em 2019, as fontes científicas ficaram entre as menos utilizadas pelos funcionários dos ministérios

Belo Horizonte (MG) | Brasil de Fato MG |
"Florence Nightingale, uma mulher, na década de 1850, não se intimidou diante de uma organização militar" - Getty images

Talvez você nunca tenha ouvido falar em Nightingale, a não ser pela música de Demi Lovato, inspirada na perda do pai. Não, não vamos falar disso. Ou talvez você seja da área de enfermagem e pode ter ouvido falar brevemente de Florence Nightingale, sabendo onde quero chegar. Se não, é para ela que peço sua atenção nesta semana, em que atingimos o marco de mais de 22 milhões de casos de covid-19 no Brasil.

Florence Nightingale nasceu em Florença, na Itália, em 1820. Era filha de ingleses, mas foi na Crimeia, no leste da Europa, durante a guerra de 1854 a 1856, que ela nos deixou o maior legado político que o mundo viria a ter: a constatação de que nada se equivale ao desenvolvimento de políticas públicas embasadas em evidências científicas.

Nightingale foi enfermeira voluntária na guerra da Crimeia e ficou conhecida por divulgar ao jornal The Times, de Londres, um relatório detalhado sobre as condições desumanas a que os soldados britânicos eram submetidos pelo seu próprio governo. Os dados coletados por ela, retratados em pesquisas de amostragem e gráficos coloridos, geraram intensa comoção social e obrigaram o governo a construir um hospital pré-fabricado a ser instalado em Istambul. 

Em uma época em que a atuação política dava-se meramente por manifestações em artigos de opinião, discursos e poemas, a iniciativa de Florence Nightingale de utilizar dados para criticar e sugerir novos rumos a uma determinada política pública é considerada uma grande inovação. E isso viria a revolucionar o mundo, desencadeando milhares de pesquisas baseadas em evidências e coletas de dados.

Como a história nos mostra, o uso da evidência científica nas políticas públicas não é algo novo, mas, a despeito dessa possibilidade inquestionável por qualquer governo – mesmo do século 19 – agora, no século 21, essa, que deveria ser uma estratégia de evolução e progresso da espécie humana, ainda parece ser uma mera ferramenta de manobra política.

Políticas públicas e evidências científicas

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o movimento das Políticas Públicas Baseadas em Evidências (PPBE), originado no Reino Unido no final dos anos 1990, tem impulsionado o debate no Brasil, ao defender a ampliação do uso de evidências científicas pelos governos para determinar o que funciona para melhoria do processo de elaboração de políticas públicas.

Mas a dificuldade na incorporação dessa abordagem não é casual ou circunstancial, sendo, a bem da verdade, uma demonstração de desprezo ao corajoso legado de Nightingale. E o trato do atual governo à pandemia de covid-19 escancarou isso: negacionismo científico, sabotagem à vacinação e disseminação da desinformação por meio de fake news não são situações que acontecem ao acaso, de forma não intencional. Trata-se, na verdade, da política da extrema direita à frente do nosso país.

De acordo com o boletim "Evidências para Políticas Públicas", divulgado em junho deste ano pelo Ipea, em 2019, as fontes científicas ficaram entre as menos utilizadas pelos funcionários que trabalham nos ministérios da Administração Federal. Na pesquisa, chegou a 54% o índice de servidores que afirmaram que nunca ou raramente fizeram uso de relatórios de pesquisas científicas, e, ainda pior, 72% afirmaram que não existe ou não sabem da existência de uma área especializada em seu ministério para utilização de evidências. No mesmo ano, o Ministério da Educação chegou a anunciar o lançamento de um portal de evidências, o qual, até o fechamento deste artigo, encontra-se fora do ar.

Então, questionamos: e se, mesmo sabendo quão indiscutíveis possam ser evidências embasadas na ciência, tais evidências não forem convenientes às políticas públicas de um determinado governo ou governante? Bom, aqui no século 21, no Brasil, alguns de nós aprenderam sob o maior custo possível – mais de 610 mil mortes – que há sempre a alternativa de fabricar/patrocinar evidências, como no caso do suposto composto para a cura da doença causada pelo coronavírus, a cloroquina. 

Ainda segundo o estudo do Ipea, que investigou 2.180 servidores, o governo federal teve, e tem, à disposição quatro tipos de fontes de informação para a produção de políticas públicas: as internas, as experienciais, as científicas e as externas. 

As internas são aquelas produzidas pela própria Administração Federal e incluem normativos, notas técnicas, bases de dados, pareceres legais e recomendações dos entes de controle (TCU, CGU, MP e Judiciário), e apenas 50% dos servidores afirmam utilizá-las sempre ou frequentemente. Já as fontes experienciais são acessadas por 65% dos entrevistados e são provenientes da experiência profissional e pessoal dos próprios servidores e de consultas a colegas de trabalho. 

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Quanto ao uso de fontes científicas, produzidas por universidades e centros de pesquisa, apenas 30% dos servidores dizem que usam sempre ou com frequência, e apenas 19% dizem que usam na mesma frequência relatórios de pesquisa para informar o seu trabalho. Dentre os que utilizam fontes científicas, a maioria o faz pela internet, porém os portais de evidências sequer fazem parte da dezena de alternativas de busca.

Não há estatísticas na pesquisa sobre o uso de fontes externas ou não científicas, produzidas por grupos de interesse, beneficiários e instâncias participativas, mas acredito que a CPI da Covid do Senado, por exemplo, terá bastante informação proveniente dessas fontes.

Florence Nightingale, uma mulher, na década de 1850, não se intimidou diante de uma organização militar, em grande parte dirigida por nobres ingleses, não se intimidou pelo discurso ufanista que permeou a guerra, nem com a blindagem política e um exército que deixou soldados humildes morrerem de doenças evitáveis. Tampouco se intimidou pela complexidade técnica da tarefa que implicava uma pesquisa de amostragem em meio a um hospital imundo no meio de um pântano. Ao contrário disso, ela acreditou na ciência.

Que após essa experiência traumática da pandemia de covid-19, nós possamos exercer nosso papel cidadão inspirados em Nightingale, começando pelas urnas em 2022. Que ao menos nós, cidadãos brasileiros, não desprezemos esse legado.

 

Patrícia Brum é jornalista, analista política, especialista em Gestão Estratégica da Informação pela UFMG e pós-graduanda em Poder Legislativo e Políticas Públicas

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Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal

 

 

 

 

Edição: Larissa Costa