Rio Grande do Sul

Coluna

As cicatrizes invisíveis da violência psicológica

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"Uma em cada quatro mulheres foi vítima de algum tipo de agressão, tanto física como psicológica, segundo levantamento do Datafolha encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho desse ano" - Divulgação
Não basta ter consciência e coragem para denunciar se a sociedade segue duvidando da vítima

Domínio não é afeto. Não é amor se dói, se agride, se machuca. Não é porque não há marcas físicas, que não é violência. Por vezes, a situação de vulnerabilidade emocional e econômica nos traz a falsa sensação de que controle é carinho, que atitudes violentas são excesso de zelo. Por isso, assistir Maid é um mergulho profundo em gatilhos e traumas do passado, um resumo ficcional do peso da bagagem histórica de muitas de nós. Essa narrativa é uma adaptação do livro lançado no Brasil como “Superação, Trabalho Duro, Salário Baixo e o Dever de Uma Mãe”, de Stephanie Land. Uma história sobre sobrevivência de uma mãe solo, vítima de violência doméstica, que tenta reconstruir a sua vida trabalhando como faxineira.

A série mostra também que o “sonho americano” não é para todas as pessoas. Não existe meritocracia numa sociedade desigual, onde mulheres encontram em subempregos o único meio de sustentar seu(s) filho(s). Na verdade, a sequência triste de exploração de Maid é a rotina diária de milhares de brasileiras. Quando a gente romantiza a sobrecarga de trabalho, chamando essas mulheres de “guerreiras” estamos desqualificando o sofrimento, normalizando os problemas financeiros, a solidão, o medo.

O padrão familiar e o ciclo se repetem

A invisibilidade social, a impotência financeira e o fracasso nos silenciam. Não somos ensinadas que para ser violentadas nem sempre precisa de marcas no corpo. Geralmente, vítimas de violência doméstica são filhas de mulheres que também viveram essa violência. Carregam consigo cicatrizes emocionais da infância que refletem na idade adulta. A codependência vem do berço. E isso também é sustentado pelo capitalismo que ignora os pedidos de socorro, permitindo que mulheres sejam humilhadas, agredidas e abandonadas à própria sorte com seus filhos.

É a partir de ameaças, ofensas, de implorar dinheiro para o básico e viver num mundo sem perspectiva que o relacionamento abusivo é construído. A violência psicológica causada por ele é, muitas vezes, o estágio inicial de outras ações agressivas que podem resultar em feminicídio. E o período pandêmico no Brasil tornou essa realidade ainda mais evidente. Uma em cada quatro mulheres foi vítima de algum tipo de agressão, tanto física como psicológica, segundo levantamento do Datafolha encomendado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em junho desse ano. Portanto, a interpretação do que é ou não violência não pode ficar nas mãos de quem não sente nossas dores.

Não basta ter consciência e coragem para denunciar se a sociedade segue relativizando e duvidando da palavra da vítima. A violência psicológica é grave e não pode ser banalizada. São falas e comportamentos sutis que muitas vezes nem são identificas pela vítima. Por isso, a falta de uma tipificação concreta prejudicava a responsabilização penal dos agressores. Isso mudou em julho desse ano, agora humilhação, insultos, manipulação, entre outras práticas de relacionamentos abusivos passaram a ser consideradas crime previsto no Código Penal. A Lei 14.11/2021 caracteriza abusos psicológicos como condutas criminosas, resultando em reclusão de seis meses a dois anos e multa. Mas ainda não é suficiente para garantir a segurança da mulher, é preciso que ela funcione na prática.

Punir não mudará a estrutura. Para a lei fazer diferença, é preciso ter uma rede de enfrentamento e apoio preparada para receber uma mulher vítima de maus-tratos, independente das provas que ela apresentar. É fundamental que o SUS tenha papel ativo na prevenção e assistência em casos de violência doméstica. Mais um motivo para ir contra qualquer tipo de privatização ou sucateamento da saúde pública. A falta de empatia e o desprezo do atual governo contra as mulheres têm que chegar ao fim. Devemos compreender, reconhecer, prevenir e atuar contra ações violadoras dos direitos humanos das mulheres. As feridas só cicatrizarão com acolhimento, cuidado e luta.

* Morgana Virgili - jornalista e militante feminista

** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko