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Papo Esportivo | Brasileiro: a ditadura do 'geladão' e a precarização do jornalismo esportivo

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Só quem estava no campo ou nas cadeiras de São Januário viu que o gol do Vasco havia sido anulado no último domingo (19) - Rafael Ribeiro/Vasco
A presença de profissionais em campo de jogo é combatida há bastante tempo pelas emissoras

Muita gente ficou sem entender absolutamente nada diante da sucessão de lambanças ocorridas nos minutos finais da transmissão do empate entre Vasco e Cruzeiro pelo Brasileirão da Série B.

Enquanto os narradores da TV Globo, do Premiere, da Rádio Globo e de todas as outras emissoras que estavam "penduradas" falavam em vitória do time de Fernando Diniz por 2 a 1, os jogadores e todos os que estavam em São Januário naquele momento viam o gol de Daniel Amorim ser anulado e a Raposa empatar a partida no último lance.

Isso porque as imagens que esses mesmos locutores estavam vendo nos estúdios da detentora dos direitos de transmissão não mostraram o VAR invalidando aquele que seria o segundo gol do Vasco. Ao mesmo tempo, os repórteres deveriam estar se dirigindo para o lado direito das cabines de rádio e TV (onde se localizam os vestiários) para fazer as entrevistas com os jogadores após o jogo.

Houve até quem tentasse (em vão) avisar os locutores da gafe cometida no corte das imagens. Certo é que tudo que aconteceu nesse domingo (19) serve para escancarar um problema que tomou conta das principais emissoras do país.

Me refiro à ditadura do 'geladão'.

O termo se refere às transmissões nas quais os locutores, comentaristas e repórteres fazem suas jornadas esportivas assistindo às partidas dos estúdios das emissoras. São as famosas transmissões off-tube que vemos por aí. Mas que ganharam o apelido de "geladão" por conta do frio gerado pelo ar-condicionado dos estúdios.

Esse recurso permite, por exemplo, que uma determinada rádio do nordeste possa transmitir um jogo de qualquer time da região que acontece em outra cidade ou estado sem os custos das viagens dos profissionais até o local onde acontecem as partidas apenas narrando o que se passa na televisão.

É verdade que essa mesma rádio acaba se tornando refém das informações passadas por quem quer que esteja exibindo os jogos em questão. Por outro lado, os ouvintes das cidades mais afastadas podem ficar por dentro das últimas notícias e das partidas dos seus times preferidos.

O problema é que esse recurso vem escondendo uma prática que já dura pelo menos 10 anos: a precarização do jornalismo esportivo.

A presença de profissionais (principalmente do rádio) trabalhando no campo de jogo é combatida há bastante tempo pelas emissoras que detém os direitos de transmissão dos nossos principais campeonatos. Tudo em defesa da chamada "imagem limpa", da imagem livre de todo e qualquer ser vivente que tampe as placas de publicidade na hora de um gol ou um lance polêmico. A consequência direta disso é a disseminação dos "geladões" em emissoras tradicionais do nosso país.

Vale lembrar que só quem estava no campo ou nas cadeiras de São Januário viu que o gol do Vasco havia sido anulado. O repórter que estava na transmissão da Globo ainda tentou avisar, mas ele não foi ouvido sabe Deus o motivo. Pode ter sido desatenção dos produtores, de quem cortava as imagens ou até mesmo de quem estava narrando. Acontece nas melhores famílias e emissoras.

Mas o ponto aqui é outro. Tem muito chefe de redação que acha "legal" diminuir os custos de uma transmissão colocando um único repórter para cobrir os dois lados do campo, pegar substituição e informar de tudo o que acontece no jogo enquanto o resto da equipe narra a partida do conforto do estúdio. Ou cobrar desse mesmo repórter que traga a informação correta estando a quilômetros de distância do local dos jogos.

São esses mesmos chefes de redação que brecam viagens de repórteres e coberturas in loco alegando que é "tudo a mesma coisa". Conheço vários que posam de "amiguinhos" dos repórteres quando interessa a eles, mas que agem por baixo dos panos para aparecer "bem na fita" com seus gestores.

São chefes de redação quando precisam liberar viagens e se transformam nos repórteres mais solícitos do mundo quando pinta uma oportunidade de viajar às custas da emissora.

Como dizem nas redes sociais, 'a mão de marcar chega a tremer'.

Seja como for, a precarização do trabalho do jornalista esportivo já deixou de ser uma tendência e se transformou em projeto. Os "geladões" tomaram conta de tudo. E isso é muito grave.

"Mas e a pandemia? Não é mais seguro fazer tudo do estúdio?". Não, quando você tem pelo menos cinco pessoas se acotovelando dentro de um local fechado e, às vezes, com uma única saída de ventilação. Por mais que todos os cuidados sejam tomados (máscaras, higienização do material de trabalho e distanciamento social), fazer uma transmissão de quase três horas de duração de dentro de um estúdio pode ser tão perigoso quanto ir para o estádio.

A TV Globo até tem certa razão quando diz que a pandemia do novo coronavírus fez com que as transmissões dos jogos fossem feitas à distância. Mas é preciso lembrar que essa prática já tem pelo menos uns 10 anos e que serve de fachada para a precarização de todo o trabalho do jornalista esportivo que ainda está em curso. A pandemia não pode servir de desculpa para práticas que já duram mais de dez anos.

Difícil saber se as coisas vão mudar com a vacinação acontecendo e com o fim da pandemia (se é que ela terá um fim). Mas ficou bem claro que esse empate entre Vasco e Cruzeiro e toda a lambança causada na transmissão teria sido evitada se locutores e comentaristas estivessem em São Januário.

No final das contas, ficamos com a certeza de que repórter no campo não é gasto.

É a certeza de que uma emissora terá credibilidade com a informação correta. E o mais importante de tudo: é o respeito para com quem está assistindo.

Edição: Mariana Pitasse