Paraíba

FOME? E DAÍ?

Opinião | Em meio à fome do povo, Bolsonaro grita: que comam fuzil!

"É que ainda me revolta saber que não basta toda desgraça que fez e faz, ele olha pra nossa cara e debocha"

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
presidente da República chamou de idiota quem prefere feijão no prato do que a ilusão de comprar um fuzil.  - Foto: Carolina Antunes/PR

Já se passaram mais de 2 semanas, mas ainda me estarrece lembrar que durante o período que estamos vivendo, o presidente da República chamou de idiota quem prefere feijão no prato do que a ilusão de comprar um fuzil. 

Não que me surpreenda! Afinal, a campanha eleitoral do dito cujo deu bastante foco em ampliar a quantidade de armas de fogo nas mãos dos brasileiros. Mas é que ainda me revolta saber que não basta toda desgraça que fez e faz, ele olha pra nossa cara e debocha. Debocha dos mais de 580 mil mortos pela COVID, debocha dos mais de 14 milhões de desempregados, debocha dos mais de 19 milhões de pessoas que estão com fome.  

E mesmo com tais números urgentes, o presidente está mais preocupado em fazer com que o número de armas “quintuplique” do que em parar a hemorragia que vem ocorrendo na nação brasileira. De 2019 até os dias de hoje, segundo o Atlas da violência de 2021, Bolsonaro editou mais de 30 instrumentos normativos armamentistas com a justificativa que “quanto mais armado estiver o povo, melhor é para todo mundo”.  

Mas será que essa frase é verídica? 

Para entender a questão das armas no Brasil, é necessário voltar algumas décadas quando as armas eram de fácil acesso para a população acima de 21 anos e estavam expostas em lojas de artigos esportivos no setor para caça. Nesse período o número de assassinatos crescia consideravelmente a cada ano. De 1980 a 2003, a taxa de homicídios por 100 mil habitantes, cometidos com armas de fogo, cresceu 6% ao ano, segundo o Atlas da Violência (2020).  

A fim de tentar conter esse crescimento e diante de um aumento dos estudos que relacionam o número de assassinatos com o porte/posse de armas, o Ministro da Justiça do último mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Renan Calheiros, criou uma proposta que se tornaria um projeto de lei, tendo sua promulgação em 2005, já no governo do Ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva. 

O Estatuto do Desarmamento estabelece requisitos mínimos para a compra de arma, a saber: (a) efetiva necessidade, (b) não possuir antecedentes criminais ou estar respondendo a processos criminais ou inquéritos policiais, (c) ocupação lícita, (d) residência certa, (e) capacidade técnica, e (f) aptidão psicológica e idade mínima de 25 anos. Além disso, o Estatuto exige uma renovação periódica do registro da arma de fogo a cada 3 anos, com a comprovação de cumprimento dos requisitos.  

Dentre outras determinações da lei, vale ressaltar a proibição do porte de armas para civis (posse registrada e autorizada é permitida, mas não se permite sair à rua armado), controle sobre a venda de munições (só podendo ser efetuada por lojistas registrados e em caixas com código de barra identificando o produtor), controle sobre as munições obtidas pelas forças de segurança pública (tendo o número marcado no culote do cartucho), aumento de pena para o crime de porte ilegal de arma de fogo, e a tipificação do tráfico de armas como crime específico e distinto do tráfico de outros produtos. 

O Mapa da Violência de 2016 bem expõe que já em seu primeiro ano de vigência o estatuto foi responsável pela queda de 8,2% no número de óbitos registrados em 2003. O Atlas da Violência de 2020 mostra sob uma ótica mais abrangente, com relação ao período, que a taxa de homicídios por arma de fogo, por 100 mil habitantes, cresceu numa velocidade anual de 0,9% de 2003 a 2018, enquanto anteriormente crescia a uma velocidade 6,5 vezes maior. 

É inegável a contribuição do Estatuto do Desarmamento na diminuição do número de homicídios por armas de fogo. O que pode ser considerado como mais uma comprovação, em uma experiência brasileira, do que cientistas debatem a mais de 20 anos teoricamente: há uma relação de causalidade entre armas e crimes? 

Na busca por responder essa questão, os estudiosos se dividem. Por um lado há os teóricos que vêem no aumento da difusão de armas um possível efeito de dissuasão, ou seja, a diminuição da probabilidade de um criminoso abordar uma vítima que possa estar armada ou não. Por outro lado, teóricos apontam que com o aumento da difusão de armas, há um aumento da recompensa da atividade criminosa, ou seja, o bandido terá mais sucesso se agir armado. Não só isso, como um aumento da violência pela ampliação de ofertas de armas, uma expansão do número de acidentes com armas, etc. 

É por isso que muitos cientistas acreditam que a defesa da liberação do porte/posse de armas justificada na diminuição da violência é um posicionamento anticientífico e veem com preocupação as medidas tomadas pelo governo Bolsonaro nesse sentido. O aumento do número de armas de fogo portadas, expansão da quantidade máxima de compra de armas de fogo e de munições, e prazo indeterminado de registro de armas foram algumas medidas dos instrumentos assinados pelo Presidente Jair Bolsonaro. Essas medidas resultaram em um aumento de 4% nas mortes violentas intencionais no país, segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. 

Antônio Rangel Bandeira, em seu livro “Armas para que?”, aponta as quatro principais teses defendidas pelos bolsonaristas e o Atlas da Violência de 2021 apresenta suas respectivas contra-argumentações: 

  1. “Acesso à arma é um direito de liberdade, o Estatuto do Desarmamento diminui a legítima defesa do cidadão”: É necessário lembrar que todo direito é relativizado perante o direito de outros, o direito à saúde e o direito à segurança coletiva. Assim, quando alguém decide não tomar a vacina, corre o risco de trazer de volta uma doença já erradicada. Da mesma forma, como comprovado cientificamente, se alguém compra uma arma de fogo, aumenta os riscos de ferir ou matar um familiar, vizinho ou qualquer outra pessoa. 

  2. “O Estatuto do Desarmamento diminui a legítima defesa do cidadão de bem”: O problema da segurança pública não está dividido entre os heróis e os vilões, entre os “cidadãos de bem” e os “vagabundos”. Não é uma guerra em que há lados. Alguns estudos apontam que boa parte dos homicídios acontece por motivos pessoais ou por ataques de fúria, ciúmes. 

  3. “Armas trazem proteção”: Você está andando na rua conversando com uma amiga, ou mesmo distraído tentando lembrar o caminho de chegar em algum local. Se sente seguro pois sua arma de fogo está na cintura. Então, do nada, aparece um criminoso, aponta a arma para sua cabeça. Se você ousar tocar na sua arma, você morre. Ou seja, o bandido leva seu celular e ainda leva sua arma. Logo, de que serviu a arma? 

  4. “O problema são apenas as armas ilegais”: Estudiosos já demonstraram que inúmeros assassinatos aconteceram com o uso de armas de fogo que foram roubadas ou extraviadas, mas antes eram plenamente legais. 

Mas, aparentemente, falar e debater com os bolsonaristas não surte efeito. Negacionistas como são, veem as armas como um símbolo de masculinidade: as defendem, protegem e seguram como se fossem seus próprios órgãos fálicos. Não é à toa que posam em fotos com maior orgulho dos instrumentos de morte. 

E enquanto brincam, desejam e compram seus consolos, a população brasileira se vê em um - sem trocadilhos - tiroteio: de um lado a pandemia que ainda persiste tirando muitos dos nossos, do outro a inflação e o desemprego que matam de fome, e há ainda o futuro não muito distante do aumento dos casos de violência com armas de fogo. Em meio à fome do povo, Bolsonaro e seus aliados riem e gritam: Que comam fuzil! 

*Graduando em Direito pela UFPB, integrante do grupo de pesquisa Perspectivas Históricas do Pensamento Jurídico, do Núcleo de Extensão Popular Flor de Mandacaru e da Coordenação de Formação Acadêmica da Gestão de 2021 do DATAB. Também social Media da Associação Memória Musical da Paraíba (MEMUS-PB) e um dos administradores do Parahyba Threads.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

 

Edição: Heloisa de Sousa