crise econômica

"Não é dono do próprio negócio, mas escravo do próprio negócio", diz motorista de app

Alta dos combustíveis e redução no valor repassado pelas empresas leva motoristas a deixarem plataformas

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Motoristas de aplicativo relatam perda de renda com aumento da gasolina e congelamento das tarifas - Luiza Castro/Sul21

É uma notícia que não sai das manchetes: o preço dos combustíveis aumentou de novo. Em alguns lugares do Brasil, a gasolina já passa de R$ 7. Em Porto Alegre, está na casa dos R$ 6. Como consequência, e por ser um insumo essencial para praticamente todas as cadeias econômicas, a alta tem puxado a inflação para cima e afetado indiretamente a renda do trabalhador brasileiro. Contudo, para algumas categorias, cada variação para cima significa perda direta de renda, como é o caso dos motoristas de aplicativo, o que tem levado muitos a desistirem de atuar nas plataformas.

“Antigamente, a gente tinha um faturamento bem melhor com um desgaste menor. Hoje, nós temos um consumo e um desgaste maiores, trabalhando mais, para tentar manter o mesmo nível”, diz o presidente da União Gaúcha dos Motoristas Autônomos (Ugama), Mauro Souza.  “A gente já perdeu muita gente que está voltando para a CLT, porque está complicado”.

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Para compensar as perdas, as empresas oferecem promoções para os motoristas, concedendo um bônus financeiro a quem cumpre uma série de metas ou condições, que vão desde realizar um número X de corridas durante um período de uma semana, por exemplo, a taxas melhores para quem circula em determinados horários e aceita alguns tipos de corrida que não seriam vantajosos.

Mauro ressalta, contudo, que são os motoristas com as melhores classificações nas plataformas que recebem esses incentivos. Atualmente na categoria diamante da Uber, a principal do setor, ele teve acesso a uma promoção que lhe daria um bônus de R$ 100 ao completar 90 corridas na semana passada. Contudo este valor de bônus é inferior ao que ganhava a mais por dia, ou a cada dois dias, antes da disparada dos combustíveis e das mudanças nas taxas cobradas dos motoristas pelas plataformas.  “A bem dizer, fica R$ 1 real por corrida. Mas o que desanima o motoristas é tu pegar, por exemplo, uma corrida de R$ 20 e ver o que teu valor é R$ 11. Isso te desmotiva um pouco perante a plataforma”, diz.

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Recentemente, a BBC Brasil publicou uma reportagem em que informa, citando dados da Associação de Motoristas de Aplicativos de São Paulo (Amasp), que 25% dos motoristas de aplicativo deixaram as plataformas desde o início de 2020. Mauro diz que a Ugama tenta fazer um levantamento sobre a situação em Porto Alegre, mas que ele é dificultado pelo fato de que as plataformas preservam os números.

Procurada pela reportagem do Sul21, a Uber informou apenas os números nacionais, dizendo que “são mais de um milhão de motoristas e entregadores parceiros” do aplicativo.

Jefferson Peixoto é motorista de aplicativos há três anos. Ele diz que, hoje, são vários os fatores que o levam a repensar a atividade, entre os quais está o preço da gasolina. Contudo, ressalta que não é só a gasolina que é afetada pela variação do petróleo.

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“Quando a gente fala da alta do petróleo, a gente fala do diesel, do óleo que vai no carro, das borrachas de porta, das pastilhas de freio, são várias coisas que sobem em cascata, direta ou indiretamente. Isso, para o motorista, não dá mais. Hoje o item mais caro de um carro é a gasolina, não é nem imposto, nem os juros abusivos da prestação”, diz.

Como consequência do aumento dos custos, o presidente da Ugama, Mauro Souza, afirma que muitos motoristas acabam adotando a prática de escolher corridas, isto é, cancelar chamadas nos aplicativos que não considerem vantajosas. Por exemplo, quando é preciso percorrer uma longa distância para chegar ao passageiro. “Às vezes, a busca de uma corrida é cinco, seis quilômetros, para o cliente andar um quilômetro e alguma coisa. Não nos compensa”, complementa Jefferson.

Jefferson trocou a gasolina pelo GNV, o que lhe permitiu uma economia ao menos de R$ 1,1 mil. Como leva todos os gastos anotados na ponta do lápis, ou melhor, numa planilha, diz que os R$ 2,2 mil a R$ 2,4 mil que gasta hoje com o gás natural seriam cerca de R$ 3,5 mil com a gasolina no valor atual.

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“O motorista, hoje, começa pagando para trabalhar. Não é esse negócio de ser dono do próprio negócio, mas escravo do próprio negócio, porque a relação dos aplicativos conosco é massacrante”, diz. “A gente fica preso a uma coisa chamada livre mercado, mas que livre mercado é esse que eu não tenho livre arbítrio em relação a algumas coisas? Eu tenho que trabalhar um mínimo de horas, sou avaliado a cada passo, e acho justo ser avaliado, mas e a contrapartida?”, complementa.

Ele defende que a Uber deveria adotar uma política de reajuste no preço da tarifa que siga a variação do preço dos combustíveis. “A Uber nunca repassou a gasolina e todas as alterações da tarifa foram para menos. Quando eu entrei na Uber, o litro de gasolina era R$ 3,19, R$ 3,29, e a tarifa era R$ 7,20. Hoje, a gasolina está R$ 6 em média, com descontos e promoções, mas a tarifa é R$ 5,21”, diz.

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Além da alta dos combustíveis, Jefferson aponta que os motoristas vêm sendo prejudicados por reduções promovidas pelos aplicativos no valor do quilômetro rodado, na tarifa inicial e por promoções oferecidas aos passageiros. Segundo ele, os motoristas sequer sabem quanto vão receber de cada corrida, uma vez que as taxas da Uber, por exemplo, são variáveis, podendo ser de 20% a 40% do valor total da corrida.

“Uma coisa que não é transparente quanto à tarifa é que a gente não sabe qual é a base matemática que eles usam para fazer isso. Uma hora eles vêm com tarifa, outra com premiações, uma hora eles vêm com horário dinâmico, outra eles vêm com a necessidade de fazer x corridas para ganhar tanto de premiação. No final, quando a gente põe na ponta do lápis, a gente acaba não chegando no valor que nos foi repassado, estamos sempre perdendo em relação a isso”, diz.

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Mauro Souza acredita que o mais complicado é o não reajuste de valores pelas empresas. Segundo ele, quando começou a trabalhar com a Uber, o valor do quilômetro rodado pago pela empresa era de R$ 1,20, mas caiu para R$ 0,90. “Isso dificulta muito o nosso dia a dia”. Ele diz que aplicativos como 99, o maior concorrente da Uber no País após a saída do Cabify, e inDriver remuneram melhor o motorista, mas oferecem menos condições de segurança, permitindo, por exemplo, o cadastro de pessoas usando apenas o Facebook, sem exigir comprovação de identidade.

Na reposta encaminhada à reportagem, a Uber afirma que, originalmente, cobrar uma taxa fixa de 25% para “intermediação de viagens”, mas que, a partir de 2018, passou a torná-la variável para permitir uma “maior flexibilidade” para concessão de descontos e promoções. “Em qualquer viagem, o motorista parceiro sempre fica com a maior parte do valor pago pelo usuário – há confusão entre os parceiros sobre o valor da taxa porque em algumas viagens ele pode aumentar enquanto, em outras, pode diminuir. É por isso que todos os motoristas parceiros ativos recebem semanalmente, por e-mail, um compilado sobre os seus ganhos que mostra quanto ele pagou de taxa Uber naquela semana”, diz a empresa.

A Uber também argumenta que, em razão do aumento da demanda por aplicativos desde o início da pandemia, potencializado com a retomada dos serviços e do comércio em razão da vacinação, os ganhos dos motoristas têm aumentado, especialmente nas últimas semanas. “Os ganhos de quem dirige com o app da Uber têm sido os maiores desde o início do ano. Em Porto Alegre, por exemplo, os parceiros que dirigiram por volta de 40 horas ganharam, em média, de R$ 1.200 a R$ 1.300 na semana. Em um mês, significa que os motoristas estão com média de ganhos superior à média salarial de várias profissões no país, como fisioterapeutas, intérpretes, nutricionistas ou corretores, por exemplo, de acordo com o site da empresa Catho, que compila informações do mercado de trabalho”, diz a nota da empresa.

A empresa diz ainda que compreende a insatisfação causada pelo aumento dos combustíveis e que, para mitigar o aumento dos custos, tem adotado iniciativas para ajudar os motoristas, como a Uber Pro, que reúne iniciativas que vão desde parcerias com postos de combustíveis para garantir desconto no reabastecimento, parcerias com empresas de telefonia e na área de saúde, e as promoções citadas por Mauro, que dão bônus financeiros a motoristas que cumprirem algumas metas estipuladas pela empresa.

“Lançamos o Turbo+, um novo formato de promoção para os parceiros que adiciona um valor fixo em cada nova oferta de viagem em locais e horários específicos. Também criamos promoções com ganhos adicionais para viagens curtas e estamos testando uma nova forma dos parceiros acompanharem as promoções disponíveis, tudo no mesmo lugar do app, para que ele possa se programar e avaliar os melhores momentos para dirigir”, diz a empresa em nota.

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Já a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa todas as empresas do setor, também diz que compreende as “consequências do aumento do valor dos combustíveis aos seus parceiros” e que trabalha para ajudar motoristas e entregadores a reduzir gastos fixos, mas ressalta que a variação de preço dos combustíveis foge do controle das plataformas.

“As associadas da Amobitec também implementaram, desde o início da pandemia, diversas ações de apoio aos profissionais, como a distribuição gratuita ou reembolso pela compra de equipamentos e materiais de higiene e limpeza, e a criação de fundos que somam mais de R$ 200 milhões para o pagamento de auxílio financeiro para parceiros diagnosticados com COVID-19 ou em grupos de risco. Desde março de 2020 foram distribuídos ou reembolsados mais de 4 milhões de itens de proteção como máscaras e álcool em gel para os parceiros cadastrados nas plataformas. A Amobitec reforça que em nenhum momento houve a redução de taxas de remuneração dos parceiros, mesmo em um período de instabilidade econômica do país”, diz a associação, em nota encaminhada à reportagem.

Em busca de alternativas

Mauro destaca que muitos motoristas estão partindo para outras plataformas ou, aqueles que conseguem, trabalhando como motoristas particulares por demanda, o que tem pago valores maiores. Jefferson é um dos motoristas que têm atuado cada vez mais com alternativas. Ele firmou uma parceria com uma rede de hotéis para realizar o translado dos hóspedes ou ficar à disposição dos clientes.

“Hoje, a chamada do aplicativo para você ir a Gramado ou para Caxias do Sul, gira entre R$ 188 e R$ 245, dependendo da plataforma. Pela tabela que eu deixei a disposição do hotel, é R$ 400, eles tiram 20% e para mim entra líquido R$ 320”, diz, explicando que também faz viagens para outros municípios. “Se eu fizer uma viagem a Gramado por dia pelo hotel, eu não preciso ligar o aplicativo e, no final do dia, eu vou ter uma renda superior, com muito menos desgaste do carro, físico e mental”.

Os motoristas também veem com bons olhos a chegada de concorrentes locais às plataformas internacionais, como a Liga e o Guri. Criado pela Cooperativa de Mobilidade Urbana do Rio Grande do Sul (Comobi-RS), a Liga é um aplicativo que funciona atualmente em Caxias do Sul que diz que tem como diferencial buscar uma relação mais humana com os motoristas, o que passa por melhorar as condições de trabalho.

“Os motoristas de aplicativo não podem nem ser considerados como trabalhadores autônomos, porque eles não conseguem nem negociar o valor do seu trabalho. Aqui, ele vai ser um cooperado da empresa, onde ele vai ter a divisão de sobras do exercício fiscal da cooperativa, como se fosse um 13º, um PPR, já é uma primeira vantagem”, diz Guilherme da Silveira, diretor-financeiro da cooperativa.

Guilherme diz que o objetivo do aplicativo é ser uma alternativa que permita jornadas inferiores às praticadas nos aplicativos atuais com o intuito de ter um atendimento de maior qualidade. Para isso, também oferece assistência jurídica, assistência psicológica e faz parceria com postos de combustíveis de Caxias do Sul, bem como com lojas de peças e seguradoras de veículos.