Rio Grande do Sul

Direitos Humanos

"Fechar fronteiras ou dificultar acesso não evita migrações, só aumenta o sofrimento"

Live realizada pelo Brasil de Fato RS e Rede Soberania discutiu a situação de migrantes e refugiados no país

Brasil de Fato | Porto Alegre |
A situação da migração é um fato, e vai continuar acontecendo, destacam os participantes do debate - Reprodução

“O que estamos vendo nesse momento histórico é uma brutal violação de política de Estado assegurada dentro de um Estado democrático de direito. Essa política de fechamento de fronteiras que perdura há um ano no Brasil é dirigida aos mais necessitados do processo da migração, portanto aos mais pobres no processo socioeconômico e que vulnerabiliza ainda muito mais a condição dessas pessoas”, afirmou Giuliana Redin, que é professora e coordenadora do Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional (Migraidh) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

A observação foi feita durante live realizada pelo Brasil de Fato RS e Rede Soberania na última terça-feira (20). Mediada por Saraí Brixner, a live discutiu os riscos que migrantes e refugiados vêm sofrendo durante a pandemia. Além da professora Giuliana, o debate contou a participação de Nahum Ramirez Pineda, migrante venezuelano que mora no Brasil desde 2015, e de Leticia Carvalho, assessora de advocacy e incidência política na Missão Paz, ONG que recebe imigrantes e refugiados em São Paulo, desde a década de 30. 

O flagelo trazido pela pandemia do novo coronavírus, como aumento do desemprego, perda de renda, despejo e tantas outras, acomete principalmente as camadas mais pobres da sociedade, entre eles migrantes e refugiados, que têm a situação agravada por conta da impossibilidade de realizar a renovação da sua documentação. Feita pela Polícia Federal, a renovação está suspensa até setembro por conta da pandemia. Além disso, a mais recente portaria, a 652, lançada pelo governo federal em janeiro deste ano, restringiu, em caráter excepcional e temporário, a entrada no país de estrangeiros, de qualquer nacionalidade.

Foi reforçada inúmeras vezes durante o debate a questão da documentação como um direito básico e fundamental, pois ela dá acesso aos demais direitos e à cidadania. “Se banaliza uma situação diante de um sujeito extremamente vulnerável. A condição mais básica é poder acessar um documento, e isso é negado pelo Estado. A política jamais poderia ser, para essa população, do fechamento de fronteira. Pelo contrário, deveria ser uma política entendendo a situação da acolhida humanitária”, frisou Giuliana.

De acordo com o Relatório Anual do Observatório das Migrações Internacionais (OBMigra), de 2011 a 2019 foram registrados no Brasil 1.085.673 imigrantes, considerando todos os amparos legais, sendo 399.372 de mulheres.

Em junho de 2020, nos primeiros meses da pandemia, o Brasil de Fato RS apresentou a realidade dos migrantes e refugiados no RS. Situação que agravou em mais de um ano de pandemia, segundo os relatos dos participantes da live.

Em março deste ano, diversas entidades lançaram um manifesto sobre a violação de direitos humanos decorrentes do fechamento de fronteiras a refugiados e migrantes vulneráveis.

Vulnerabilidade social e política 

Nahun Pineda veio da Venezuela em 2015, como estudante, e vive no Brasil desde então. Sua mãe e irmão vieram para o país em 2018, na condição de migrantes. A vinda da família, por motivos distintos, foi feita por meio terrestre e, de acordo com relato de Nahun, foi um processo considerado simples. Tanto a mãe como o irmão fizeram toda a documentação, como por exemplo, carteira de trabalho.

Contudo em 2020, entre dezembro e janeiro, no auge da pandemia, a situação mudou. A chegada de seu primo, a esposa dele e dois filhos foi o oposto vivenciado por Nahun. De acordo com o estudante, a saída da família do primo, da Venezuela, foi para buscar uma melhor condição de vida à família, processo comum a muitos imigrantes, entre eles brasileiros.

“Eles chegam em uma fronteira fechada onde não tinha garantia de nenhum direito. Chegam na fronteira sem a possibilidade de voltar, e encontram também um outro problema, de não conseguir entrar no Brasil de forma regular”, relatou Nahum.

Apesar da ajuda de instituições como Cáritas, Agência da ONU para Refugiados (ACNUR), órgãos governamentais e outras entidades importantes no apoio aos migrantes e refugiados, o estudante destaca que há diferentes problemas enfrentados por quem está na condição de migrante. Entre os problemas está a questão da regulamentação da documentação para ficar no país.  

“Tu não tem documentação, é exposto a trabalhar no que tu achar, depende do que o patrão disser. Tu coloca na frente que tu tem que trabalhar antes de te cuidar”, aponta. "É uma situação mais complexa do que parece mas é uma situação real. Quem vem pela via terrestre, por que eles têm menos direito daqueles que têm dinheiro de vir de avião e consegue fazer a documentação?”, questiona, reforçando que além da perda de emprego, muitos trabalhadores após a demissão acabam tendo anulado o direito ao seguro desemprego.

Conforme apontou Giuliana, a renovação não foi colocada como serviço essencial, com isso o migrante não consegue renovar essa documentação. “Diante dessa situação se cria o ambiente onde muitas empresas preferem não ter os migrantes trabalhando, mesmo com contrato formal, carteira de trabalho, usam como argumento para despedir o migrante. A situação de insegurança que se estabelece a partir disso é muito grande”, afirmou.

Segundo relatou Letícia, no trabalho desenvolvido na Missão Paz observam-se as vulnerabilidades dos imigrantes no setor econômico, como a manutenção do trabalho formal, dificuldade de encontrar trabalho, dificuldades em realizar o trabalho informal e a redução da renda. Assim como relatos de despejo e uma extrema vulnerabilidade sobretudo do tema da mulher migrante e das crianças migrantes, que conforme ressalta, estão cada vez mais expostas no contexto de pandemia.

Segundo ela a necessidade de distribuição de cesta básica aumentou muito durante a pandemia, assim como a exclusão digital, já que por não estar documentado, o migrante não tem acesso ao auxílio emergencial. “Apesar do sistema de saúde e assistência social ser universal no país, e que pela legislação eles (migrantes) têm o direito de acessar independente de sua situação documental, na prática ali na ponta há negação de serviço e de atendimento para pessoas que estão em situação indocumental. A pessoa, por não ter documentos, ou estar com o documento vencido, ela acaba tendo dificuldade para acessar direitos que são essenciais sobretudo no contexto que a gente vive”, relatou.

Assista à live na íntegra

  

É preciso resistência 

Desde 2017 o país possui a Lei de Migração, conquista dos migrantes no país, da sociedade e dos movimentos ligados ao tema. Conforme frisado por Letícia e Giuliana, foi uma conquista do ponto de vista de direitos humanos, que envolve a acolhida humanitária, tornando um princípio da política de Estado.

“Um princípio que não pode ser atropelado, atravessado por uma política de governo que vai na contramão da assistência aos mais vulneráveis. Não é possível aceitar, não há justifica, no estado de calamidade que foi decretado desde o ano passado, para restrição de direitos fundamentais da população mais vulnerável do processo migratório que são os migrantes que buscam acolhida humanitária, que são solicitantes de refúgio”, frisou Giuliana.

Segundo recordou Letícia, o Brasil por cerca de 30 anos teve uma lei de migração que era do tempo da ditadura militar. “Uma lei que via o migrante como uma ameaça. Uma lei pautada no que a gente chama de segurança nacional, esse era o paradigma dessa lei”. De acordo com ela, a partir da redemocratização do Brasil, coletivos migrantes e pessoas migrantes vivendo no Brasil, juntamente com a sociedade civil, academia, organismos internacionais, que sempre fizeram mobilização, conseguiram com que fosse estabelecida a renovação da lei, uma das últimas a ser atualizadas.

“A lei de migração tem esse marco, uma conquista, porque ela traz uma mudança desse paradigma, que era o que mais lutávamos, baseada no princípio da não discriminação, da igualdade de direito e do acesso à justiça”, pontuou Letícia, destacando que a renovação aconteceu em um ano de ruptura política e início de muitos desmontes.

Contudo, ressaltou a assessora, logo em seguida, a partir do momento que a lei foi aprovada, já tiveram alguns vetos causando perdas. “A regulamentação já começa a trazer algumas dificuldades, e isso vem se sequenciando desde então. O que a gente vê nesse momento e também no contexto da pandemia é a necessidade de fazermos resistência, de estarmos juntos ligados na nossa rede de atuação”, afirmou.

“Em um contexto de pandemia mundial, entendemos que há necessidade de medidas de fechamento de fronteira para reduzir a circulação de pessoas, conter a contaminação. Mas o que vemos no Brasil desde a primeira portaria, que foi lá em março de 2020, é uma sequencia de instrumentos que são seletivos e discriminatórios. Cada vez mais o governo se usa da pandemia para justificar e validar políticas de retirada de direitos e isso traz consequências graves na vida dessas pessoas”, complementou.

Segundo destacou Giuliana, a política restritiva que está sendo aplicada no país, através da portaria de janeiro, viola claramente a política de Estado brasileiro, pois cria a deportação imediata, o que a lei brasileira impede. “Quando nós já avançávamos, inclusive em colocar como princípio de política de Estado a não criminalização das migrações, nós temos um ambiente que se estabelece a partir da deportabilidade. Se produz a suposta ilegalidade, se produz a situação de criminalização das migrações”, destacou.

Desafios

Ao final do debate, os participantes pontuaram sobre os desafios diante dessa situação. Para Letícia a documentação deveria ser primordial para que o Estado possa conhecer de fato quem está no país, e pensar políticas públicas a partir disso. Ela também destacou a questão da visibilidade dos migrantes e refugiados. “Muitas vezes o tema migratório acaba ficando em dualidade, ou ele é completamente negligenciado, ou há o preconceito. Parte da população não conhece esse tema, e quando vem a conhecer, em muitos casos, não todos, existe a questão do preconceito”, afirmou.

A assessora destacou que mais de 3 milhões de brasileiros também migraram para outros países, pelo direito humano de migrar. “A mobilidade urbana, a migração faz parte da natureza humana e da nossa sociedade. Fechar fronteiras ou dificultar o acesso dessas pessoas não vai evitar de que elas migrem, só vai aumentar o sofrimento delas. É preciso buscar caminhos, trabalhar em rede, seguir em diálogo”, concluiu.

Na avaliação de Giuliana a questão da migração hoje é uma questão da luta de classe, que envolve a luta de igualdade de condições por igualdade de oportunidade. “Não é fechando uma fronteira que a necessidade de migração vai parar, a migração é um fato social, é preciso encarar dessa forma. A migração não estanca por conta de um documento, se não houver documentação ela vulnerabiliza pessoas, coloca pessoas em situação de risco, em situação de violência”, pontuou.

De acordo com ela, com um Estado que aceita exclusão de qualquer pessoa por raça, classe e nacionalidade, pode-se chegar à situação que a humanidade já vivenciou de grandes perversidades e sistemas totalitários. “Temos que ficar atentos diante disso tudo e não banalizarmos esse tipo de discurso porque somos nacionais”, finalizou.

Assim como apontaram Letícia e Giuliana, Nahun afirmou que a situação da migração é um fato, e que vai continuar acontecendo. “É uma coisa forte para o migrante, ele não quer deixar sua nação, sua família, só porque quer. Ele vem a outro país para ir adiante, progredir junto com o país em que está. Há um abalo psicológico maior quanto tu chega e no teu rosto sai três portarias que fala que tu é criminoso, tu cai. Todos sabemos que grandes nações foram construídas por população migrante, como o caso do Brasil, dos Estados Unidos. O que tem que ser feito daqui para frente é continuar educando as pessoas para construirmos um Brasil melhor, é o que a gente quer, o que a gente precisa, tanto brasileiros quanto estrangeiros que moram aqui”, concluiu.


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Edição: Marcelo Ferreira