Coluna

Dezenove tiros e 50 anos depois

Imagem de perfil do Colunistaesd

Ouça o áudio:

Dezenove tiros e 50 anos depois, o empresariado graúdo continua onde sempre esteve, de caso firme ou flertando com a solução autoritária - Reprodução
Boilesen era um ativo e entusiasta colaborador da ditadura militar, sobretudo das masmorras

Era uma manhã tranquila em São Paulo, no começo do outono de 1971, quando um homem bem trajado, claro, alto e forte, na casa dos 50 anos, entrou no Ford Galaxie azul no Morumbi. Sem perceber que era seguido, rumou para o Jardim América, outro bairro de classe média alta.

Na alameda Casa Branca, o Galaxie foi fechado por dois fuscas. O homem alto largou o volante e tentou correr na direção de uma feira livre. Não houve tempo. Ouviu-se o espoucar dos tiros. O fogo de submetralhadoras e fuzis o atingiu nas costas e na cabeça. Caiu com o rosto na sarjeta. Um dos matadores se aproximou e fez o último disparo.

Nesta quinta-feira, 15 de abril, a cena completa 50 anos. O homem alto era Henning Albert Boilesen, dinamarquês de nascimento e brasileiro por adoção, presidente da Ultragás e diretor da Federação das Indústrias/SP, a FIESP. Junto ao corpo ficaram panfletos onde dizia “Boilesen foi justiçado. Não pode mais fiscalizar pessoalmente as torturas e assassinatos na Oban”.

Boilesen era um ativo e entusiasta colaborador da ditadura militar, sobretudo das masmorras do regime. Fora o grande arrecadador de fundos para a Operação Bandeirante, a Oban, conluio de generais com as cabeças coroadas do empresariado nacional para alimentar com muito dinheiro a máquina de moer carne da repressão.

As coletas na FIESP sempre renderam. Empresários como Gastão Bueno Vidigal (Banco Mercantil), João Batista Figueiredo (Itau e Scania), Peri Igel (Ultra), Sebastião Camargo (Camargo Corrêa), Walter Bellian (Antarctica) além de executivos da Ford, Chrysler, Volkswagen, Nestlé, Alcan, Supergel entre outros maiorais do mercado bancaram a Oban.

Dos grandes, é mais fácil apontar quem não aceitou sujar as mãos: José Mindlim (Metal Leve) e Antônio Ermírio de Morais (Votorantim).

Boilesen gostava de visitar os antros de tortura. Atribui-se a ele a invenção da “pianola Boilesen”, tipo de teclado eletrônico unido a fios elétricos e pensado para causar terrível sofrimento às vítimas. Cada nota tocada representava uma descarga elétrica de intensidade diferente imposta ao supliciado.

Mas ele não caiu apenas por seu currículo de mecenas dos porões. Houve uma vingança. Uma semana antes, o torneiro–mecânico Devanir José de Carvalho, de 28 anos, militante do Movimento Revolucionário Tiradentes, o MRT, havia morrido nas mãos do delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Capturado após receber uma rajada de metralhadora, mesmo ferido foi torturado durante dois dias. Apesar da chacina, limitou-se a dizer o seu nome e o da sua organização, reagindo com palavrões e cuspindo sangue na cara de Fleury.

A resposta do MRT foi juntar-se à Ação Libertadora Nacional, a ALN, formar o comando “Devanir José de Carvalho” e fuzilar o mais notório patrocinador dos torturadores.

Boilesen foi uma vítima solitária. Empresários que financiaram a barbárie nunca foram investigados, processados, julgados ou mesmo questionados pela imprensa. Punido brutalmente à margem da lei, Boilesen foi a exceção.

Dezenove tiros e 50 anos depois, o empresariado graúdo continua onde sempre esteve, de caso firme ou flertando com a solução autoritária. Durante 21 anos, a indústria, a banca, o comércio, a mídia corporativa e o latifúndio perfilaram-se à ditadura que ajudaram a criar. Em 2016, FIESP à frente, respaldaram o golpe e o mandato predatório de Michel Temer.

Seu crush da hora é Jair Messias Bolsonaro. Parte do PIB, hoje, rejeita delicadamente aquele a quem elegeu. Outra parte não. Um seleto grupo dessa segunda galera, na qual despontam alguns pujantes devedores da União, recebeu o presidente em jantar na quarta-feira, 9 de abril, em São Paulo.

Estavam lá, entre outros, José Roberto Maciel (SBT), Rubens Ometto (Cosan), André Esteves (BTG Pactual), Rubens Menin (Banco Inter), Alberto Saraiva (Habib`s), Washington Cinel (Gocil), Tutinha Carvalho (Jovem Pan), Flávio Rocha (Riachuelo), Luis Carlos Trabucco (Bradesco), além do inescapável Paulo Skaf, presidente da FIESP e menos votados. Bolsonaro foi aplaudido.

:: Leia também: Quem é Washington Cinel, bilionário ruralista, ex-PM e anfitrião de Bolsonaro ::

Naquele dia, 3.693 pessoas morreram de covid-19 no Brasil. Ou seja, 696 vítimas além do total de mortos no atentado do World Trade Center. Cinco óbitos a cada dois minutos. Mas o fato não causou comoção entre os comensais.

Como a comilança, regada a champanhe Veuve Clicquot – R$ 600 reais a garrafa – durou algo como duas horas, uma conta simples indica que, partindo-se dos coquetéis, passando-se pela entrada, logo o prato de resistência, daí à sobremesa, em seguida ao cafezinho, fechando-se com a discurseira final, morreram 317 brasileiros e brasileiras durante o banquete.

Era apenas um pormenor. Não se tratou de morte, desemprego, fome, doença. Havia temas mais candentes, como a privatização da vacina, a inadiável venda do patrimônio público e a manutenção do teto de gastos. Embora muitos, os cadáveres não empanaram o brilho da noite.

Edição: Poliana Dallabrida