Paraíba

DESIGUALDADE

Cícero Lucena beneficia setor privado e diminui arrecadação para áreas precárias

O pedido do Prefeito de João Pessoa através da Mensagem 022/2021, foi aprovado por unanimidade pelos vereadores de JP

Brasil de Fato | João Pessoa (PB) |
Prefeitura de João Pessoa beneficia setor privado da construção civil em detrimento de urbanização de áreas precárias da cidade. - Rafael Passos

Encaminhado em caráter de urgência à Câmara Municipal, o pedido do Prefeito de João Pessoa através da Mensagem 022/2021, foi aprovado por unanimidade pelos vereadores da capital. Trata-se do Projeto de Lei Complementar 01/2021, que altera dispositivos do Plano Diretor (Lei Complementar N. 3 de de 30 de dezembro de 1992) no que dispõe sobre a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), aumentando o desconto concedido à contrapartida financeira paga pelo contribuinte.

Estipulado em 25%, o abatimento em cota única favorece o setor privado e fragiliza o fundo público de urbanização, que perde fonte de receitas e, com isso, dificulta ainda mais a implementação de projetos de requalificação em áreas precárias da cidade.

A Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC)

Prevista no Estatuto da Cidade (Lei Federal N. 10.257/2001), a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC) é um instrumento jurídico de desenvolvimento da Política Urbana das cidades brasileiras. Nada mais é do que uma concessão por contraprestação do Poder Público ao particular no sentido de permitir a construção acima do chamado Coeficiente de Aproveitamento Básico. Por exemplo, se for desejo de um incorporador superar a altura estipulada de um prédio para área onde almeja construir, ampliando seu número de andares, este poderá ultrapassar o gabarito, contanto que pague aos cofres públicos pelo seu excedente, no limite do coeficiente máximo fixado pelas normas de planejamento.

Importa ressaltar que não se trata de multa, mas do recolhimento de um valor ao particular pela sobrecarga da infraestrutura naquela região, isto é, uma outorga imposta à vontade do empreendedor como condição para a satisfação do seu próprio interesse - edificar além do Coeficiente Básico.

A Outorga Onerosa trata-se, portanto, de um instituto fundamental para o desenvolvimento urbano e se manifesta a partir de duas importantes funções: o controle de adensamento através do desestímulo à construção em determinadas regiões da cidade e a indução de construção em áreas mais propícias, com infraestrutura adequada. Desta forma há um legítimo aporte financeiro aos cofres públicos (Fundurb), com a finalidade de investir na criação de infraestrutura em outras áreas mais carentes, de modo a restabelecer o equilíbrio urbano.

Fundo de Urbanização (Fundurb) já havia sido alterado no ano passado

Há menos de um ano, a Câmara Municipal de João Pessoa, também aprovou Projeto de Lei da Prefeitura com substanciais alterações no Plano Diretor Municipal. A principal modificação foi a retirada da exclusividade de uso dos recursos do Fundurb para as Zonas Especiais de Interesses Sociais (ZEIS). As ZEIS são as áreas da cidade, delimitadas no Plano Diretor, como locais com menor infraestrutura urbana, com grande concentração de população vulnerável social e economicamente, em geral localizadas nas comunidades mais periféricas do município.

A retirada da garantia do Fundurb para essas áreas significa a pulverização dos recursos para outras regiões da cidade que já têm assegurados investimentos e qualidade de vida urbana aceitáveis.

À época, a decisão de retirar a exclusividade gerou grande desconforto para os movimentos de luta por moradia. "Nesse período de pandemia, o Prefeito mandou o projeto para a Câmara para pegar esses recursos e deixar livre para qualquer uma secretaria usar.  Esse recurso era destinado às ZEIS e com essa nova formulação, o recurso fica vulnerável para ser aplicado em qualquer bairro de João Pessoa", disse Roberto Guilherme, Coordenador Executivo do Fórum Estadual de Reforma Urbana da Paraíba (FERURB).

Em 2020, o FERURB e o Instituto de Arquitetos do Brasil na Paraíba (IAB.pb) divulgaram nota em defesa da manutenção dos recursos do Fundurb para as ZEIS, que foi subscrita por 25 entidades públicas ou privadas sem fins lucrativos.

Um discurso camuflado que perpetua a desigualdade urbana

Privilegiar a cadeia produtiva com desconto na outorga onerosa não significa necessariamente a garantia de emprego e renda aos trabalhadores. Em maior efeito, a concessão de abatimentos impede a arrecadação de fundos para urbanização de áreas precárias - onde a maioria desses indivíduos vive e sofre por não ter condições dignas de moradia - em detrimento da suposta aceleração do mercado privado. Na prática, significa o repasse de um recurso que seria garantido para a urbanização de regiões com usufruto coletivo e social, para as mãos de promotores imobiliários que desenvolvem produtos privados para a alta renda da cidade.

Tal ato significa, portanto, que o poder público está abrindo mão da sua condição de gerador de emprego e renda a partir da construção civil balizada em investimentos em obras públicas, beneficiando uma cadeia de desenvolvimento social com o resultado dessas obras, em detrimento da suposta aceleração do mercado da construção civil de classe alta, para a construção de prédios de luxo.

O Brasil vive a pior e mais aguda crise sanitária da sua história, e em que pese a regressão econômica em diversos setores, o da construção civil se manteve em equilíbrio e até gerou mais empregos no período da pandemia do novo coronavírus. Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED) mostram que em todo o país o setor foi responsável por 112.174 novas contratações, 5,18% a mais que em 2019. Ainda, segundo a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), pesquisa entre as maiores incorporadoras do país anunciou que houve um aumento de 25,86% nas vendas nos primeiros meses de 2021. Não há, portanto, justificativa para concessão de descontos em razão da pandemia, nem tampouco é razoável, neste caso, usar-se do discurso de geração de emprego e renda.

Mais do que nunca, o momento atual é de assegurar a arrecadação para garantir a requalificação de áreas historicamente relegadas e que mais sofreram no último ano. Nessa estratégia, instrumentos como a Outorga Onerosa são fundamentais para planejar o futuro das cidades, possibilitando investimentos em saneamento básico, habitação, mobilidade urbana e tantos outros segmentos que demonstraram ser o principal nó durante a pandemia. A postura da atual gestão da Prefeitura de João Pessoa, em aliança com a composição da nova Câmara Municipal de vereadores, não demonstra ter essa sensibilidade, beneficiando o setor privado em detrimento dos mais necessitados.

Com substanciais alterações em menos de um ano na nossa legislação urbanística, em frontal desacordo com os princípios estabelecidos pelo Estatuto da Cidade, que estabelece a necessidade de "adequação dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira e dos gastos públicos aos objetivos do desenvolvimento urbano, de modo a privilegiar os investimentos geradores de bem-estar geral e a fruição dos bens pelos diferentes segmentos sociais", é hora de ligar o alerta na sociedade para os prejuízos incomensuráveis que a nossa cidade terá em médio e longo prazo em relação às suas áreas mais carentes. A sociedade civil organizada precisa se re-mobilizar para garantir, junto com os parlamentares, um reajuste no sentido de garantir a inclusão social nos instrumentos de planejamento, especialmente o Plano Diretor.

* Flávio Tavares é urbanista, integra o Conselho Superior de Arquitetos do IAB, a rede BrCidades e o Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas de Cidades da Fundação Perseu Abramo.

** Pedro Rossi é arquiteto e urbanista, professor, ex-presidente do IAB.pb, conselheiro estadual do CAU/PB, membro da coordenação da rede BrCidades e pesquisador do LabHab/FAUUSP.

 

Edição: Heloisa de Sousa